Fiquei o resto da semana em casa. Meus pais estavam viajando e meu irmão me servia de companhia, aproveitei que ele trabalha na matina e não fui à escola. Sábado à tarde, fui até a biblioteca pública, escolhi dois livros, não me interessava pelo romantismo, sempre o achei maçante na tentativa de vender uma utopia: o amor. Porém a capa do Sofrimento do jovem Werther chamou-me atenção e decidi leva-lo, o outro livro foi um compêndio para aprender matemática. No caminho para casa me deparo com meu amigo Wellison, ele estava vestido com sua camisa xadrez, calças jeans justas – ele ficava uma maravilha com aquelas calças –, sua bunda era um bolo de carne branca comprimido naqueles panos azuis, a saliência era de tirar o fôlego, as vezes não resistia e ficava muito tempo olhando o traseiro dele. Ele percebeu para onde eu olhava, resmungou:
-- Humpp... – tossiu – responde minha pergunta, seu retardado!
-- O que? Retardado... não estava prestando atenção... puta merda... o que perguntava?
-- Por que não apareceu no colégio esses dias?
-- Sobre isso, eu simplesmente achei melhor não ir – respirei – olha, você sabe que eu acho esse sistema educacional uma grande merda, e se eu tenho a oportunidade de não olhar na cara dos fracassados daquela sala eu simplesmente a agarro...
-- Vá se foder! Tu pensas que todo mundo é inferior a você!
-- Como está sua mãe?
-- Ela continua doente, eu comprei o remédio dela, olha.
Me mostrou uma caixa branca com listras vermelhas.
-- Espero que o gosto não seja ruim – eu disse.
-- Eu não sei, vou perguntar a ela... O que aqueles caras estão fazendo?
Eu olhei na direção do ombro esquerdo. A uma distância de alguns quarteirões uma vã escura estava dando a volta em alta velocidade pela esquina, o som dissonante de pólvora cortou a avenida, vários estrondos e pressões no ar, me ergui para ver melhor. Tiros cortavam a vã acima na esquina, e do lado dela algumas pessoas corriam para dentro das lojas com as mãos encima da cabeça. Mais tiros. E pessoas caiam no chão, eu não adivinhava se estavam mortas ou tentavam se proteger. Wellison me puxou para trás do muro da biblioteca. “Espera porra, eu quero ver o que está acontecendo”. Repreendi ele. “Caralho, ‘cê’ é maluco? Quer levar um tiro. Se abaixa filha da puta! ” Eu me abaixei, sua voz estava me recriminando, tinha um quê de autoridade que me deixou por um segundo acolhido, seus olhos me fitavam assustados. O estampido das metralhadoras se aproximavam, estavam a poucos metros, olhei acima da cabeça e a vã escura passava a nossa esquerda a 100 km por hora, não, 120 km por hora, em um segundo dois carros baixos cinzas acompanhavam-na pela rua, um homem de frente para mim no banco do carona apontava um fuzil para vã. Atirou. Tra-tra-tra-tra-tra-tra! Meu coração estourava no peito. Tra-tra-tra-tra-tra-tra! Wellison passou os braços sobre meu pescoço e caiu, senti o corpo dele por cima do meu, soltei um grito, sangue jorrava na sua camisa xadrez. Tudo ficou escuro depois.
Acordei em alguns minutos, uma afluência de curiosos estava ao derredor, vários barulhos de sirenes e a pletora de cabeças curiosas me olhando. Observando. Empertigados. Que filhas das putas. Lembrei do Wellison. Caralho... uma poça de sangue estava no lugar onde ele estava, levantei a cabeça um pouco, entre algumas pessoas a minha frente seis ou oito passos, um homem com roupas brancas levava meu amigo nos braços. As pessoas estavam esperando que eu estivesse morto, quando me ergui, se surpreenderão.
-- Opa, calma aí rapaz – disse um homem atrás de mim – você tem que ir com calma.
-- Não, eu estou bem...
Vozes me pediam para ser condescendente.
-- É melhor deixar que tenhamos certeza disso, vamos deite-se aqui, eu vou examinar você.
-- Examinar porra nenhuma, eu já disse que estou bem merda!
-- Não fale assim criança, o médico... ele está apenas tentando ser gentil com você – uma voz de senhora me admoestava.
-- Eles estão colando ele naquela ambulância, eu só quero ir até lá, poderiam fazer o favor se sumirem da minha frente – levantei e corri em direção a ambulância deflagrando o círculo de pessoas – saiam da frente suas mulas, saiam da frente – eu tinha a situação sobre controle, nesses momentos você pode abusar da empatia alheia e tratar eles como merecem.
Cheguei em cinco ou seis pulos. Eles fechavam a porta da ambulância.
-- Eu sou irmão dele! Eu sou irmão dele! – Gritava e batia na porta – Eu sou irmão dele porra!
O enfermeiro que tentou me examinar se aproximou, abriu a porta do carona.
-- Aqui menino, entre aqui.
Obedeci. Ele olhou para o motorista. “Esse aqui tem o gênio forte”. Disse e fechou a porta. “Pro caralho vocês. “ Eu pensei. “Vai! ” A ambulância partiu.
A ambulância passou pela avenida, o cenário era desolador. Poças de sangue pessoas chorando e carros de polícia fechavam esquina norte e sul.
Chegamos no hospital em pouco tempo. Eu não conseguia escutar o Wellison. Os enfermeiros se movimentavam atrás, um estalo, saíram da ambulância e levaram-no na maca, o motorista me fitava. “Ei menino, qual é o seu nome? ” “Matheus, senhor? ” “Não fique tão preocupado com seu irmão, já vi piores, ele vai escapar ” “Maldito, isso aqui não é uma competição. ” Pensei comigo. “Matheus, seu nome certo? Venha comigo, eu vou mostrar a você onde poderá fazer uma ligação para seus pais, quantos anos você tem?
Respondi as perguntas insistentes e o acompanhei até uma salinha dentro do hospital, tinha um telefone no gancho. Liguei, meu irmão atendeu. Lhe pedi que não contasse nada para mãe do Wellison, depois expliquei a situação. Ele entendeu. Não sabia no que pensar, mas seria melhor a mãe do Wellison não saber que seu filho estava no hospital baleado, uma notícia mordaz viria para piorar a situação de alguém convalescente. Meu irmão compreendeu instintivamente, era início da noite; estava sem meus livros, Wellison sem seu remédio e tudo tinha cor branca e cheiro de alvejante de hospital.