Meu despertar foi lento e preguiçoso. Era um dia absurdamente claro e um friozinho gostoso me dizia que ainda era começo da manhã. Meu corpo expressava o que a noite anterior tinha me causado. O final de minha coluna doía e eu lembrei, num quase sorriso, da posição que ele tinha me colocado. As marcas em meu corpo quase me faziam voltar no tempo e reviver tudo aquilo. Eu não senti a presença do corpo de Vincenzo na cama e imediatamente soube que ele tinha saído em silêncio. Até quando isso existiria entre a gente? Não haveria uma manhã decente juntos? Talvez isso me trouxesse saudades violentas de Alexandre. Ele gostava de manhãs e corpos grudados. Ele gostava da presença do outro e isso me deixava especialmente confortável. “Droga” eu lamentei comigo mesmo em voz alta, sabendo que estava sozinho no minúsculo apartamento.
- Você acorda de mau humor?
A voz de Vincenzo cortou o cômodo e me encontrou na cama. Eu quase sorri.
- Você está aí – eu falei me virando na cama esperando ver seu rosto por cima do pequeno balcão que separava o quarto da cozinha.
- Onde mais eu poderia estar?
Eu sorri. Ele tinha escolhido ficar e isso dizia muito sobre qual poderia ser o próximo passo.
- Tome um banho. Estou preparando algo para comer.
Eu levantei num pulo. Aquilo não tinha tom de ordem, mas eu jamais recusaria um pedido saído daquela boca charmosa e madura. Entrei no banheiro com pressa, escovei os dentes, o cabelo, o corpo e então estava banhado numa fração de minutos. Saí do banheiro pequeno demais e o vi encostado no balcão preparando qualquer coisa como café da manhã. Ele estava descalço e vestia apenas a calça. Muito justa, ela fazia o contorno perfeito de sua bunda, até criava aquela linha que divide as nádega das coxas. Coxas consideravelmente grossas, aliás. Sorri subindo meu olhar pela linha da sua coluna, admirando a envergadura bonita de suas costas. Me aproximei sem avisos e grudei meu corpo no dele. Cheirava incrivelmente bem: uma mistura de aromas suaves e exóticos. Rocei meu nariz um pouco abaixo dos ombros dele e deixei alguns beijos descansando ali.
- Bom dia, Caio.
- Belo dia.
- Belo dia – ele completou, confortavelmente. –Comprei alguns pães e café.
- Café? – eu perguntei ainda com meu rosto enfiado em suas costas.
- É. Comprei também uma garrafa. Não tinha como trazer o café da padaria.
- Não era mais fácil me acordar e pedir para fazer?
Eu desgrudei do seu corpo e me coloquei na ponta do balcão, olhando seu rosto de perfil enquanto ele cortava o queijo em cubinhos. Aquele queixo marcado e bem desenhado ainda me mataria.
- Você não tinha garrafa – ele disse me dando um pedaço do queijo na boca. – E ela é azul, poxa.
Eu sorri mastigando o queijo. Ele aparentemente pertencia ao grupos dos que parecem uma criança pela manhã. Ele sorriu contagiado pelo meu sorriso. Eu debrucei meu tronco sobre o balcão e deixei meu rosto próximo do seu e então ele me deu o selinho que eu não precisei pedir.
- Obrigado então.
Ele serviu o café em duas xícaras iguais. Na única bandeja que havia no armário, ele colocou os pães organizados pelo tamanho. Primeiro, obviamente, pequenos pãezinhos com queijo derretido por cima. Depois outro tipo de pão que eu nunca tinha visto e por último dois pães médios. Exageros!
- Podemos comer na cama?
- Ela é cama, cadeira, mesa e o que mais servir, então sim, podemos – eu disse aos risos indo na frente, levando as duas xícaras.
Já sentados eu mastigava um daqueles pães pequenos com queijo. Aquilo parecia caro.
- O que faz de manhã?
Ele tomou outro um gole do café forte, mas gostoso. Eu estava pensando.
- Não tenho um ritual, se é isso que você está perguntando. Eu acordo, faço o que tiver que fazer e só. Ultimamente eu ficava girando na cama até que meu corpo reclamasse então eu ia para o computador.
Ele me escutava mastigando seu pedaço de pão. Ele sorria com os olhos.
- E os outros clientes? – perguntou olhando para a bandeja, evitando manter qualquer contato visual.
- Não existe isso de outros clientes.
- Não? – Ele estava me olhando. A curiosidade cheirava mais forte que o queijo.
- Não. Só você. Acredite!
Ele sorriu e tomou outro gole de café.
- Como chegou até mim?
- Um amigo. – E ao lembrar de Alexandre meu estômago naturalmente gelou. Eu estava com saudades do cretino. Continuei sem demonstrar nada. – Ele era, digamos, do ramo e para matar minha curiosidade deixou eu ir no lugar dele.
- Isso é sério?
- Muito. E sobre os seus outros garotos? – eu perguntei.
- Não era muitos. Funcionava como uma espécie de esquema. A recepcionista selecionava o melhor rosto. Ela é de confiança, sempre soube das minhas necessidades.
- E nunca usou isso contra você?
- Ela é uma boa pessoa.
- Imagino que seja – eu disse lembrando o quanto ela tinha sido grossa ao me recepcionar em uma das minhas visitas. – E depois de mim? – eu ousei perguntar.
Ele sorriu olhando diretamente em meus olhos. Em qualquer outra ocasião eu teria evitado aquele tipo de olhar. Me ameaçava, me deixa constrangido e desorientado, mas o dele prendia toda minha atenção.
- Depois de você? Ninguém.
- O que eu fiz, afinal?
- Me provocou. – Ele deixou a xícara ao lado da minha sobre a bandeja e sentou um pouco mais perto de mim. – Você ousou falar, me questionar e se posicionar.
Eu sorri quase sem jeito, mas eu estava me divertindo com isso. Ele continuou:
- Aparentemente as pessoas sentem medo de mim. Você não sentiu medo. Parecia estar lá por você e gostou de estar. Eu gostei de vê-lo gostar de mim. Não havia obrigação no que fazia. – Ele estava próximo demais e me deu um selinho rápido. – Você é diferente.
- Diferente é bom, afinal.
- Diferente é maravilhoso. – Ele sorriu me beijando, enfim.
O beijo era salgado pois nossas bocas tinham gosto de queijo. Ele procurou minha língua e eu a entreguei fácil demais. Ele me chupou com gosto levando sua mão direita até meu rosto. Ele acariciou minha pele com cuidado. Ele era experiente demais para saber que a manhã pedia toques suaves. Terminamos nosso beijo com o mesmo sorriso que começamos.
- Eu preciso ir. Há algumas coisas importantes para resolver.
Eu quase protestei, mas não tinha esse direito. Não correria o risco de cobrar por algo em uma relação que estava começando naquele momento ou talvez nem isso. Pelo menos eu estava pensando com clareza, mesmo depois daquele beijo de arrebentar todas as estruturas que já estavam abaladas.
- Vá. Eu te vejo de novo?
Sua resposta demorou demais. Ele sorria, mas seu olhar estava distante o suficiente para me causar uma mini crise de ansiedade. Eu apertei o lençol entre meus dedos temendo escutar qualquer coisa fora das pequenas expectativas que eu criava naquele momento.
- É claro que sim. E sem surpresas.
E então sorriu. Me deu sorriso brincalhão cheio de marcas, linhas e dentes perfeitos.
Ele vestiu sua roupa e eu o levei até a garagem. Não me importei de estar vestindo apenas o short. Antes de entrar no carro ele novamente me beijou. Suas mãos, ainda precisas, sabiam onde exatamente onde eu queria que elas estivessem. Primeiro ele tocou minha cintura, pressionando-me contra o seu corpo e depois elas estavam em minha bunda, provocativamente me fazendo sentir seus dedos roçarem minha pele sensível por cima do tecido fino. “Me espere ansioso” ele disse no meio do beijo molhado demais. Eu concordei completamente sem forças e excitado. Do porta-luvas ele tirou uma pequeno bolo de dinheiro. Havia muita coisa ali. Eu recusei, me sentindo estranho novamente fazendo aquilo em pleno dia. Em meu imaginário, era o tipo de coisa que se fazia na calada da noite ou em qualquer outro canto onde nenhuma das parte se vissem, mas o olhar dele dizia que eu não tinha escolhas. Aceitei o que ele tinha para me dar e o deixei ir embora.
Inspirado, tirei a sexta-feira para limpar o apartamento. Havia coisas desnecessárias espalhas pelo chão e com a promessa de outro encontro, eu não queria que ele encontrasse aquele buraco tão desarrumado. Sorri quando tirei a poeira do pôster pendurado na parede. Lavei minhas roupas, limpei o chão, arrumei o guarda-roupas, a cozinha e verifiquei a data da entrevista. Seria na semana seguinte, ou precisamente, segunda-feira.
Almocei sozinho ouvindo a televisão emitir o som das programações televisivas. No celular, duas mensagens esperavam para serem lidas. Visualizei a primeira que vinha do celular de Alexandre.
“ESTOU BEM, SEU CRETINO. ESTOU ME RECUPERANDO E PAQUERANDO OS BOYS DA CIDADE. EU TINHA ESQUECIDO O QUANTO GOSTO DO SUL. VOU TE LIGAR DEPOIS. ME ATENDA!”
Eu ri pensando no quão incorrigível ele poderia ser. Deixei para comentar sobre sua mensagem na prometida ligação. A segunda vinha do celular de Vincenzo:
“DIFERENTE É MARAVILHOSO.”
Curta, precisa e encantadora. Ele fazia questão de manter a imagem que tinha me seduzido. Esperto!
Ao entardecer aproveitei a baixa temperatura para ir ao mercado. Comprei o que faltava para meu armário parecer realmente o depósito de alguém vivo e então me enfiei em alguns episódios de algumas séries. Nem Vincenzo nem Alexandre me ligaram naquela noite. Eu estava bem com isso. Não por estar bem com eles, mas por estar de bem comigo. O interesse de Vincenzo me fazia pensar que eu ainda poderia ser desejável e que não era assim um completo tédio. Eu tinha alguma coisa para oferecer. E não lembrava do meu corpo enquanto pensava isso.
O sábado chegou luminoso e pedia praia. Eu costumava ir até o calçadão com Alexandre. Era divertido como as pessoas nos olhavam, ou melhor, olhavam para ele metido naquelas roupas que só ele tinha. Ainda assim, cheio de si, Alexandre era a pessoa mais acessível do mundo. Falava com todos, ria de tudo, brincava com o mundo de uma forma muito leve. Mas é claro que às vezes era perigoso estar com ele.
Se aproximava do horário de almoço quando eu cheguei na extensa faixa que acomodava um número gigantesco de pessoas e seus guarda-chuvas coloridos. Eu precisava de Alexandre ali, nem que fosse atrás de uma linha telefônica. Saquei o celular e digitei o novo número dele, mas com os adicionais do estado. Um toque. Dois toques. Três.
- Porra, eu disse que ligava – ele atendeu do jeito brincalhão que só ele tinha.
- Você esqueceu do alô.
- Ah, sim. Oi amor da minha vida. – Sua voz adquirira outro tom. Eu ria.
- Esquece de mim e eu vou aí arrebentar sua cara.
- Ou o resto dela, né? – ele completou.
- Não brinque com isso, seu merda. Vai, como você está?
- Eu diria que bem, viu. – Ele deu um tempo para si mesmo. – Ando trabalhando umas idéias. Coisas simples. Estou muito melhor e adivinha? Estou adorando meus pais. Acho que eles foram picados pelo mosquitinho da simpatia.
- Maldoso – eu o julguei, rindo.
- E você? Ainda apaixonado pelo carinha lá?
- Então... – eu também me dei uma pausa. – Ele dormiu comigo ontem. Na minha casa, aliás.
- Não pode ser!
- Pode. E como pode. Ele prometeu voltar. E ainda me deu dinheiro, mesmo sabendo dos vários níveis que nós elevamos.
- Olha só. Você me surpreendeu – ele parecia incrivelmente divertido do outro lado da linha. Eu ri, feliz com a reação.
- De verdade? Acho que eu gosto dele...
- Você gosta. É claro que você gosta, mas escute, eu preciso desligar agora. Estou no meio de uma conversa com os velhos e provavelmente eles ficaram com raiva de ouvir isso.
Nós gargalhamos e nos despedimos com pressa. É claro que ele estava aprontando alguma coisa. Eu bem conhecia Alexandre.
As horas passaram depressa. Entre um mergulho e outro encontrei alguns amigos que sempre via por ali nos finais de semana. No meio de tanta insistência, concordei em ir para o que chamam de barzinho, ali na praia mesmo. Não havia barulho e muito menos aglomeração de pessoas. Admito que é mais suportável. Não passei dos limites mas também não me contive e bebi uma ou outra bebida. Não fui além no álcool pois sabia que Vincenzo poderia me ligar. Aliás, o celular ficava sempre à vista na ponta da mesa. Eu poderia jurar que via o visor iluminado e o toque insistente me avisando que ele me esperava do outro lado da linha. Eu ria de mim mesmo quando me flagrava imaginando isso.
Cheguei razoavelmente cedo em casa. Pedi comida de um delivery qualquer e comi sem vontade. Tonto pelo efeito tardio das bebidas, caí em um sono profundo sem lembrar que eu poderia perder um encontro naquela noite.
Acordei assustado na manhã do domingo. Meu celular tocava insistentemente. Havia uma urgência explícita nos toques que se repetiam. Me estiquei até a mesinha onde ele vibrava enlouquecidamente e vi que Vincenzo me esperava do outro lado da linha. Atendi com pressa:
- Pronto.
- Eu te acordei.
- Não, sim. Digo... acordou, mas tudo bem – eu o confortei.
- Está tudo bem mesmo?
A voz dele guardava uma ansiedade e hesitação nada animadora.
- Sim, está. Aconteceu alguma coisa? – eu perguntei temendo a resposta.
- Vai acontecer – ele disse pausadamente, ainda hesitante. – Eu vou embora do Brasil.