Seis meses depois.
Vincenzo mantinha seu rosto muito próximo do meu enquanto enfiava seus dedos ossudos e cuidadosos entre os fios dos meus cabelos na região da nuca. Eu gostava de ver seus olhos, mas para o meu desespero eles estavam fechados. Tentei esquecer esse fato e então arrastei meus lábios pela lateral do rosto do meu homem, que sorria como se minha barba despreocupada fizesse cócegas em sua pele. “O que foi?” eu soltei em seu ouvido. Alegrando-me por completo, ouvi ele dizer que gostava de estar ali comigo. Ele se referia ao bar do hotel Milano. Estávamos ancorados no balcão enquanto o barman sorria para nós, deixando claro que estava gostando da cena que fazíamos. Enfim seus olhos estavam abertos quando ele me olhou, atravessando o meu olhar, e disse com a calma que lhe caía bem demais: “Está na hora de acordar.”
“Está na hora de acordar.”
“Está na hora de acordar.”
“Está na hora de...”
Subitamente eu abri meus olhos e a claridade do dia fizeram eles arderem e lacrimejarem automaticamente. Levei as mãos até as pálpebras e as esfreguei com violência.
- Calma, garoto! – Me disse o homem aparentemente deitado ao meu lado.
A voz era suave, agradável e muito familiar. Virei meu corpo fugindo da claridade da janela e meu movimento fez com que meu rosto parasse no peito de Matias. Ele apertou minha nuca e massageou meus cabelos bagunçados demais naquela região.
- Pesadelo?
- Não exatamente – eu murmurei, quase inaudível.
- Mas parecia – ele insistiu.
- Não era um pesadelo, já disse.
Meu rosto ainda estava colado nos pelos que Matias cultivava em seu peito.
Depois do nosso primeiro encontro “oficial”, Matias continuava me seguindo pelo prédio e vez ou outra me pressionava, dizendo o quanto tinha sido bom estar comigo. Também achei bom estar com ele, mas não era satisfatório. Eu estava cometendo o erro de compará-lo com quem tinha passado antes dele. E o pior, não tínhamos criado uma relação concreta durante a curta passagem. Era difícil de entender e seria difícil de explicar, caso Matias ousasse perguntar sobre um possível motivo para evitá-lo da forma como eu fazia.
Após uma investida dotada de uma sinceridade impressionante, eu resolvera dar uma chance para as possibilidades. Lembro-me bem quando eu estava no jardim interno do prédio comercial onde funcionava o escritório da revista e fui abordado por Matias. Como todas as vezes em que ele se aproximou de mim, sua voz grossa viajou primeiro pelas minhas costas e só depois escalou meus ombros até meu ouvido:
- Odeio quem me rouba a solidão sem em troca me oferecer verdadeira companhia.
Praticamente rodei sobre meus calcanhares quando identifiquei a voz próxima demais.
- Quando trocamos Lispector por Nietzsche? – eu perguntei, sarcástico.
- É o tipo de frase que você postaria num mural do Orkut. Sua solidão é palpável.
- Orkut? É sério isso? Em que ano estamos, Matias?
Minhas perguntas saíram emolduradas por um sorriso sonoro e verdadeiro demais.
- Se relançassem a tal plataforma tenho certeza que você migraria apenas pela oportunidade de ficar sozinho por lá.
- É muito cedo para provocações, só posso revidar depois do almoço – eu disse cobrindo a parte inferior do meu rosto com o típico e exagerado copo do único café do prédio.
Ignorando todas as posições que eu tomava em todas suas investidas, ele se aproximou de mim e acariciou meu antebraço com as pontas dos seus dedos grandes demais. O toque se mostrou ousado quando ele subiu os mesmos dedos e deixou que eles invadissem a abertura da manga da minha camiseta. Eu deixei que ele fizesse aquilo. Estava com saudade de sentir outras mãos que não fossem as minhas.
- Qual o motivo do isolamento? – ele perguntou.
Se eu pensasse demais daria espaço para outras questões, então escolhi ser sincero. Ele merecia isso:
- O passado.
- Ah, sempre ele. – Disse Matias ainda acariciando a pele sensível coberta pelo tecido. – Desprendimento é um exercício necessário – completou.
- Desde quando virou conselheiro? – e então quase fui sarcástico novamente.
- Se for pra te convencer que eu posso ser legal às vezes. Até faço uso das frases clichês. Eu citei Nietzsche, poxa.
E então eu ri. Meu riso preencheu o jardim e fez as pessoas ao redor notarem nossa presença. Ao perceber que éramos vistos, me afastei em vão, pois ele novamente estava muito próximo, quase me abraçando.
- Quando não está sendo exibido, você é quase sedutor, sabia?
- Viu? Já está admitindo.
- Não faça uso de minhas palavras para benefício próprio – eu disse ainda sorrindo.
Ele ignorou meu aviso:
- Deixa?
- Diga o quê – eu indaguei.
- Deixa eu me aproximar? Sem promessas de esquecimento e essas coisas todas. Só vou me aproximar e te usar vez ou outra.
E então sua mão estava em minha cintura. Ele era esperto. O seu toque mais profundo naquela região me mostrava o segundo sentido da sua afirmação ambígua. Eu novamente sorri e deixei que ele me tocasse sem a malícia impertinente que ele costumava expressar.
- Sem seriedade?
- Sem seriedade – ele me respondeu.
Eu diminui o espaço entre nós e o fiz sorrir quando pousei minha meus dedos em seus braços, ao senti-lo segurar minha cintura com as duas mãos. “Segundo encontro: almoço” eu disse alegrando-o. Ele concordou e me roubou um selinho rápido. Aparentemente nossos “vizinhos” não se importaram, pois quando olhei ao redor já preparado para os olhares de reprovação, me surpreendi ao saber que estávamos sendo totalmente ignorados. Assim como minha solidão, o conforto acabava de tomar forma física e se aninhava em meus ombros, dizendo que estava tudo bem seguir em frente.
Mas dizem por aí que a pior mentira é a que você conta a si mesmo, não é? Eles estão certos, aliás.
Começamos a sair com frequência. Ele fazia questão de me levar para jantar ou apenas caminhar por aí. Dizia que ficar enfurnado num apartamento pequeno demais não me fazia bem. Eu queria perguntar quem ele era para me dizer o que faria bem ou não. Mas no fim ele estava certo. O sexo era bom, as conversas eram intensas e ele f.i.n.a.l.m.e.n.t.e tinha desistido das suas sessões torturantes de exibicionismo. Isso até se tornou uma piada entre nós. Evitando a intimidade excessiva, só dormíamos juntos em ocasiões necessárias. Eu não queria perder por completo a lembrança boa de Vincenzo acordando ao meu lado.
Está aí a mentira: eu não seguiria em frente. Não mesmo!
Finalmente desgrudei meu rosto daqueles pelos quentes e novamente esfreguei meus olhos, completamente acordado.
- Bom dia – sussurrei dando um cheiro leve em seu peito.
- Finalmente. Bom dia – ele disse dando outro cheiro em meu cabelo, ignorando meu pequeno surto ao acordar daquilo que não era nem de longe um pesadelo.
Fizemos um café rápido e em minutos estávamos indo para o trabalho, já banhados. No caminho liguei para Alexandre. Era cedo demais e eu não estava me importando em escutar alguns palavrões. Ele finalmente me confessou que estava planejando entrar como sócio numa promotora. A agência estava mudando de donos e agora se chamaria Petrov Eventos. Era tudo que ele precisava: organizar festas. Era a cara dele! A outra notícia veio quando ele disse que logo estaria de volta na cidade, pronto para “mostrar quem manda no pedaço”, como ele mesmo dissera. Isso me assustava e me animava ao mesmo tempo. A saudade fez meu peito inflar mais que o normal. Meu garoto estava voltando. E é claro que não teríamos a mesma relação de antes. Chega de confusões sentimentais.
- Alguém importante, não é?
Eu desviei o olhar do celular e mirei o perfil de Matias. A barba grande e sua modelagem quadrada deixava seu rosto maior do que já era. Era bonito e quase rude demais para mim. Sorri e alisei a região abaixo de sua orelha, tocando o comecinho da barba daquele canto.
- Ah, sim. – Eu o respondi. – Um amigo de tempos antigos está voltando para a cidade.
- Devo me preocupar? – ele perguntou encenando uma expressão séria.
- Não mesmo. – Respondi levando minha mão até a altura de seus lábios,fazendo-o beijar meus dedos. As pontinhas deles. Depois as costas da mão e então meu pulso, em seguida dando uma leve mordidinha, ainda de olho no trânsito.
Ao final daquele dia o impedi de ir para a minha casa. Eu tinha duas matérias para terminar e não precisava de um corpo musculoso e gostoso chamando mais atenção que as pesquisas esperando para serem lidas. Ele entendeu, afinal, também tinha suas coisas para fazer. A não seriedade daquela relação que mantínhamos nos permitia ter espaço quando queríamos. Não havia reclamações ou explicações desnecessárias. Eu não estava seco de sentimentos. Eu não espalhava por aí o discurso da frieza após as “frustrações amorosas”. Eu estava satisfeito daquela forma. Aparentemente ele também.
.
Outro mês depois.
.
Contrariando as previsões, o dia estava quente como nenhum outro. Técnicos arrumavam os aparelhos de ar-condicionado e por causa disso todas as janelas da sala estavam abertas, mas isso parecia piorar o ar ali dentro. A impaciência nos abraçava. “Impossível! O sol deve estar mais perto da gente hoje” disse Liz, uma das designers da revista. “A morte se aproxima” ela completou levando sua própria mão até a testa, fingindo estar tonta e quase desmaiar. Todos presentes na sala riram de sua performance divertida e então meu celular tocou, anunciando o recebimento de uma nova mensagem. Era Matias direto do andar de baixo.
“Você não esqueceu algo no banheiro?”
Não entendi. Respondi curioso:
“Do que você está falando? Nem fui ao banheiro ainda.”
“Isso era uma forma de dizer pra você ir lá, lesado!” ele me respondeu de volta.
Digitei “em dois minutos” e enviei.
Não demorei e logo entrei no banheiro espaçoso. Sem ver vestígios de Matias no ambiente, me curvei sobre uma das três pias que existia ali, lavando meu rosto. Me secava com um papel quando senti meu corpo ser pressionando contra a pedra fria. As mãos pesadas de Matias apertavam meu quadril enquanto minhas costas enquanto seu peitoral e barriga preenchiam minhas costas. Seu volume marcou presença em minha bunda. Estava gostoso, mas era perigoso demais.
- O que é isso, apressadinho?
- Tesão. Puro tesão.
A voz dele saiu muito próxima do meu pescoço e não demorou até que senti sua barba roçar minha pele, provocando arrepios violentos. Meu cabelo preso em um coque liberava o caminho da minha pele sensível. Seus lábios eram carinhosos ao me beijar.
- Você está incontrolável esses últimos dias.
- Estou mesmo – ele continuou me beijando.
- Pois controle-se. Aqui é perigoso.
Olhando-o atacar meu pescoço pelo reflexo no espelho à nossa frente, eu quase conseguia projetar em nós a cena que eu e Vincenzo tínhamos feito no bar do Hotel Milano. Fui obrigado a afastar as lembranças para longe daquele banheiro e girei meu corpo com pressa. Seu membro completamente acordado pressionava o meu, não tão vivo assim. Ele beijou meus lábios e eu parei um beijo num sorriso quase constrangido.
- Calma, Matias. Você pode dormir lá em casa hoje. – Eu disse colocando minha mão sobre seu peito inflado.
Ele sorriu e eu pude jurar que a malícia estava ali novamente ao me perguntar:
- Como seu namorado?
Eu parei de respirar por muitos e duradouros segundos. Voltei para a realidade num susto e tomei uma inspiração forte demais. Eu estava incrédulo.
- É o quê?
- Namora comigo? – Ele perguntou emoldurando meu rosto com suas mãos grandes.
“Impossível” eu ensaiei comigo mesmo. “Nunca” eu repeti para mim mesmo. Ao invés disso me desvencilhei com pressa daqueles braços fortes e caminhei para distante dele.
- Eu não esperava por isso, hein... – disse sem jeito, passando meus dedos pela nunca com força. “Acabe logo com isso, Caio!” eu disse mentalmente para o meu reflexo no espelho.
- Eu também não esperava por isso. Mas as coisas mudam, não é? – Ele novamente se aproximou de mim e eu senti suas mãos apertarem meus ombros. Novamente ele me perguntou, agora mais baixo e calmamente:
- Quer namorar comigo?
- Não... Não dá! Não posso, Matias! – Minha voz falhava.
- Como assim não pode?
- Não complique as coisas – eu falei alto demais outra vez me afastando dele.
- Não complique as coisas? Você é insano quando quer.
- Não me julgue – eu me virei e ele estava encostado na pia, me olhando incrédulo. – Eu não posso e não posso por você.
- Papinho clichê não faz seu tipo – ele disse sem tentar outra aproximação.
Eu encurtei a distância entre nós e colei na parede à frente dele.
- Há coisas travadas em mim, Matias. Sentimentos complexos que fariam você se arrepender de se aproximar demais. Você é ótimo... – Ele revirou os olhos, prevendo meu discurso nada original e eu continuei: - Você é ótimo... mas não é o que eu preciso.
- Não o vejo tentar se desprender do que um dia aconteceu aí em algum lugar de você – ele quase sussurrou.
- Aconteceu algo, é claro. Algo que ainda está vivo e eu nem sei o porque de continuar pulsando. Não vou iniciar uma partida com você sabendo que eu serei o jogador que abandonará o jogo.
- Eu estou levando um fora – ele disse apertando os olhos e eu quase sorri.
Me aproximei e acariciei seu braço forte. Os pelos grossos de sua pele provocavam algo gostoso na ponta dos meus dedos. Ele me puxou e me ancorou em seu peito farto da forma como ele costumava fazer.
- Eu tentei – ele disse enfiando seus dedos nos cabelos da minha nuca.
- E tentou bem... – eu sorri em seu peito. – Mas não tente mais.
- Está dizendo que não vamos mais sair?
- Exatamente – eu confirmei já longe de seu corpo.
- Ao menos vou saber o que aconteceu?
- Não vai – eu disse colocando minhas mãos no bolso da calça enquanto dava paços curtos para trás.
- Que típica cena de filme – ele murmurou.
- É bem típico de um filme, não é? Mas neste filme você não é o protagonista, Matias... Infelizmente!
E em um sorriso, talvez o mais sincero de todos que eu lhe presenteei, saí do banheiro com a certeza de que não mais sairia com o homem que deixei lá dentro. A pergunta que ele carregava cuidadosamente entre os dedos fortes servia para qualquer outra pessoa, menos para mim.