- Não é o lugar mais incrível do mundo? – Alexandre quis gritar para todos os ventos. – Tanta gente bonita, corada e inteligente. Eu viveria aqui pelo resto da minha vida – ele terminou de falar de lançando em alguns rodopios, sentindo a brisa levíssima acariciar sua pele alva.
De fato Paraty ficava especialmente bonita naquela época do ano. As ruas de pedra, ora estreitas, ora largas demais, nos presenteava com um charme histórico de encher os olhos e estavam abarrotadas de pessoas. Naqueles dias acontecia um importante festival literário e talvez o mais bonito – e bem localizado – do país. Como se fosse possível, a cidade se pintava ainda mais com cores vibrantes e o tom festivo irradiava dos sorrisos fáceis que chegavam até nós. Pelas calçadas e ruas sem carros, mesas e cadeiras ofereciam descansos em sombras convidativas de arvores grandiosas. Crianças corriam soltas entre as pernas caminhantes e o pais, atentos, observavam de longe a brincadeiras dos pequenos. Das janelas dos casarões, balões coloridos balançavam ao vento em uma dança divertida. Alexandre e eu tínhamos separado um tempo para aquietar os pensamentos e fugir de nossas rotinas pesadas. Não queríamos nos isolar no meio do mato ou fugir para um litoral desértico, pelo contrário, queríamos ver gente. Queríamos ser gente. Paraty era o lugar perfeito para isso.
Logo que estacionamos o carro nos colocamos em uma caminhada despreocupada. Eu vestia uma bermuda leve e uma regata nada cavada e jamais perderia a oportunidade de deixar os dedos livres em um chinelo confortável. Alexandre vestia também uma bermuda, uma camiseta de estampas coloridas e um tênis levinho que me causava uma certa inveja. Logo as pedras faziam meus pés chorarem. Mas eu não estava lá para lamentações. Tudo, menos isso!
- Veja só! Participaremos de uma dessas reuniões, não é? – Ele quase afirmou em um entusiasmo apaixonante ao passar em frente de um casarão poemas eram lidos por pessoas aleatórias.
- Você e poemas – eu disse averiguando o interior abarrotado de pessoas atentas ao homem que recitava algo sobre encontros e perdas. – Que combinação mais inusitada – eu completei.
- Ironia não combina com você. – E sorriu dando um leve tapa em meu ombro.
Eu estava contente por estar ali e não perder o foco ao escutar a palavra ‘encontros’, visto que os dias últimos dias tinham me dado uma amostra do quão inusitada pode ser a vida. Eu sorri com o entusiasmo de Alê e o puxei, seguindo adiante.
- Ao menos podemos comer algo antes de suas aventuras pelo mundo maravilhoso da leitura?
- Você sempre com as melhores idéias nos momentos certos – ele concordou, animado.
- Já no seu caso a ironia é sempre o melhor acessório, não é?
- Não seja cretino, eu não estava sendo irônico – ele disse numa sequência eloquente de risadas.
Não demorou e logo encontramos o lugar perfeito para o almoço. Uma espécie de casarão antigo mantinha suas imensas portas pintadas de um azul vibrante abertas para a rua, ali mesmo na ponta da calçada. Lá dentro mesas e cadeiras de madeira eram dispostas sobre o espaço como num grande encontro de uma feliz família. Era o restaurante mais intimista que eu já tinha visto na vida. Aos sorrisos e apaixonados pelo lugar, escolhemos uma mesa que de tão próxima da rua, parecia namorar a vista alegre que ela oferecia. Juntos, não tínhamos maturidade suficiente para fazer pedidos distintos. Pedimos um bonito filé de peixe deitado sobre uma cama de também coloridos legumes cozidos. Os pratos e talheres faziam parte da história contada e quase nos levavam em uma viagem pelo Brasil colonial.
Após o almoço decidimos que precisávamos deixar nossas coisas na pousada reservada e talvez tomar um banho. Havia muita coisa para descobrir na cidade e não perderíamos tempo por nada no mundo. Escolhida exatamente por isso, a pousada era um dos inúmeros casarões restaurados da cidade. Divertidamente, corredores largos se cruzavam e davam em um imenso e bem cuidado jardim, rodeado por quartos de portas coloridas. Ali haviam mesas onde era servido o café da manhã e eu já me imaginava sentado em uma daquelas cadeiras, servindo-me do mais puro e tímido primeiro raio de sol na manhã seguinte. Entramos no quarto que dividiríamos e nos divertimos com as camas enormes, numa mobília tipicamente colonial.
- Viajamos no tempo. Me chame de Senhorzinho – disse Alexandre jogando suas coisas sobre a cama e adquirindo uma pose classuda que não lhe cabia bem.
- Você é o pior ator que já vi na vida, Alexandre.
Eu ria enquanto admirava o quarto espaçoso e absurdamente confortável, também deixando minhas coisas sobre a cama gigante.
- Me avise quando começar a implicar pra valer, seu cretino.
Rimos e nos jogamos em nossas camas. Não era um dia típico de litoral. O sol se escondia entre nuvens levemente carregadas, mas não havia sinal de chuva naquele dia, somente uma leve brisa fria que atravessava os janelões e faziam as cortinas finíssimas dançar ao ritmo de nossos risos.
- Prometa-me uma coisa – começou Alexandre ainda deitado. – Quando estivermos bem velhos, mas gostosões é claro, nos mudaremos para cá e viveremos o resto de nossos dias entre a praia e a cama com garotões saudáveis.
Eu gargalhei, também deitado.
- Previsível! – Eu respondi.
- Vai dizer que não é convidativo?
- Muito. Mas a parte dos garotões... Que preguiça disso. Vê lá se eu sou desses.
- Você não é, mas vai ser. Espere só a idade bater em sua porta.
Não se deu um segundo após a fala de Alexandre e mão secas bateram na porta dura demais, fazendo o som das batidas ecoarem pelo quarto. Num pulo, Alexandre atendeu a porta com gargalhadas exageradas.
- Pois sim – ele disse ainda sorridente.
Um moço muito apresentável vestindo os uniformes da pousada nos sorria, ainda mais convidativo que o clima lá fora. Presumi que não deveria passar dos vinte e dois anos. A pele dourada pela combinação perfeita de sol e água salgada exibia uma saúde que eu invejei logo de cara. Seus olhos azulados contrastavam com sua pele e isso era quase exótico. O moço era mesmo muito bonito.
- É uma honra receber os senhores – ele começou dizendo enquanto Alexandre me olhava com cara de quem dizia “estamos podendo”. – Meu nome é Ícaro e vocês podem me chamar sempre que precisarem apenas apertando o número um no telefone – ele completou olhando Alexandre numa proximidade muito suspeita antes de desviar o olhar para mim, ainda com um sorriso que beirava a ingenuidade.
- Sempre que precisar? – perguntou Alexandre claramente tendencioso.
- Sempre – o garoto confirmou.
- Entendemos – eu os interrompi me divertindo ao cortar o barato de Alê. – Nós entendemos, Ícaro!
- Dessa forma, até mais.
Imediatamente após a saída do garoto, Alexandre manteve a porta aberta e correu ao telefone, apressadamente discou o número um e continuou pendurado ali como se o garoto fosse atender do outro lado da linha. Com nítida ansiedade nos olhos, Ícaro apareceu na porta. Um sorrio muito faceiro e jovial surgiu no canto dos lábios carnudos e avermelhados.
- Testando?
- Não exatamente – respondeu Alexandre se aproximando da porta como um felino em caça. – Seus olhos!
- Meus olhos? É... O que tem meus olhos?
- Eu queria revê-los.
- Não há nada de mais neles.
O sorriso ansioso do garoto naquele momento era quase constrangido, mas ele estava gostando de ser galanteado. É clara que estava.
- Aparentemente você não sabe nada sobre seus próprios olhos – Alexandre disse mais convincente que o normal. – Não é, Caio?
- O quê?
- Os olhos dele. O que acha?
- Ah, são especialmente bonitos – eu disse do meu canto.
O garoto se encolheu, totalmente sem jeito.
- Viu só? São especialmente bonitos – repetiu Alexandre.
- Poxa... É... Obrigado, senhor.
- Me chame de Alexandre dá próxima vez.
- Agora eu preciso ir – o garoto quase sussurrou.
- Ah claro, eu te segurei demais. Vá! – disse o meu companheiro de quarto.
Alexandre deitou em sua cama aos risos e eu me juntei a ele.
- Bonitinho, vai...
- Bonitinho? O garoto é perfeito. Mas mantenha-se distante – eu o encarei sério. – Não quero sair daqui preso por assediar garotos.
Novamente rimos de forma exagerada e divertida. Não demoramos e nos tacamos no banho, eu primeiro e Alexandre em seguida. Queríamos sair, mas nosso corpo optava por outra coisa. A cama confortável demais pedia por mais alguns abraços e eu não recusaria o pedido daquela gostosa convincente. Ficamos deitados até que o sol de pôs mais rápido que o normal. Convencidos de que tínhamos perdido tempo demais, nos arrumamos batendo nosso recorde. A noite do primeiro dia de festival nos chamava e como o chamado da cama, aquele também era irrecusável.
A noite estava pintada de dourado quando saímos da pousada. As ruas continuavam enfeitadas de pessoas e cores que pareciam envelhecidas sob a influência da luz amarelada da cidade. Não queríamos beber ou pousar na varanda de alguma casa de bebidas. Estávamos ali para ser gente e precisávamos estar entre elas. Eu me divertia com as bandeirolas penduradas nas fachadas das casas quando Alexandre disse que tinha esquecido o celular na pousada. Seu olhar, seus lábios apertados e seu corpo vacilante denunciava que aquilo não passava de um truque. Ele queria fugir de mim e eu estava confortável em deixá-lo curtir a cidade ao seu modo. Pessoas são diferentes e vivem em ritmos diferentes. Este é um entendimento que ganhamos como presente da maturidade.
Aos passos lentos e contemplativos, eu seguia o fluxo que caminhava aparentemente da mesma forma que eu. Admirador do sossego, eu estava totalmente confortável em apenas caminhar e observar como todos riam e se divertiam ao meu redor. As mesas dispostas ali mesmo na rua eram ocupadas por amantes que se acariciavam apaixonadamente entre um sorriso e outro, imersos em conversas que só eles entendiam. Famílias inteiras ocupavam mesas espaçosas e pareciam ter saído direto do frame de um filme antigo. Um rapaz surpreendia uma moça com um abraço apertado, no bolso ele carregava uma única rosa e eu queria ter ficado ali para ver a ração dela ao receber tal mimo. Eu estava completamente fascinado pelas várias cenas que compunham aquela noite poética quando senti minha mão quase ser segurada por dedos fortes que sabiam o que estavam fazendo. Girei meu corpo entre os outros transeuntes e aparentemente tinha sido despropositado, pois ninguém ao meu lado tinha se mostrado o autor daquele toque. Olhei para frente e entre os vários caminhantes uma figura me parecia familiar demais. A nunca alongada, o cabelo bem cortado e as olheiras levemente projetadas para a frente faziam as pontas dos meus dedos relembrarem uma sensação antiga, de quando eu tocava a nuca macia de Vincenzo. Somente quando o homem virou seu queixo para o lado a fim de saber se eu ainda estava ali que acreditei no que meu corpo dizia: era mesmo o homem misterioso que fazia meu corpo acordar. Ele sorriu da forma que só ele sabia fazer e o sorriso me mostrava uma diversão admirável. Apressei meus passos e quando me aproximei de seu corpo o vi estender o braço para trás. Toquei os dedos esticados em minha direção e ele apertou a pontinha dos meus, soltando-os logo em seguida propositalmente. Ele aumentou a velocidade do seu caminhar e me forçava a desviar quase rudemente de alguns componentes daquela pequena aglomeração. Novamente os dedos estavam esticados em minha direção e seu corpo quase virado para trás. Com aquele movimento do seu tronco, eu conseguia ver perfeitamente seu queixo de perfil. Seu olhos possuíam um brilho especial e sua pele marcada em um sorriso fazia cada centímetro do meu corpo se arrepiar: eu estava tocando-o novamente. Eu não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Novamente me fiz crer que aquele toque era real e eu não estava experimentando um momento de alucinação. Evitei pensar em qualquer outra coisa e afastar de mim todas as auto-sabotagens. Eu precisava estar presente naquele momento e vivenciar aquela realidade. Me dei a liberdade de piscar os olhos com força e então ele soltou meus dedos quando chegamos no que seria o final daquela rua estreita. Ali, outras pessoas caminhavam paralelamente ao grupo de caminhantes que eu pertencia e todos se juntavam em uma colorida e barulhenta onda que se dirigia à praça. Não havia sinal algum de Vincenzo naquele momento. Mesmo andando mais rápido que os outros, eu não consegui ver seu corpo sumir no meio da multidão.
Sob o efeito de uma incredulidade massacrante, não consegui pensar e muito menos me mover e me deixei ser levado pela multidão alegre. Aquele era mais um dos encontros dolorosamente surreais. Eu não poderia estar ficando maluco.
Somente “acordei” algumas horas depois quando ouvi Alexandre gritar no meio da aglomeração. Havia um palco à minha frente e uma banda tocada algo particularmente regional. Completamente desorientado, Alexandre correu em minha direção e me segurou pelos ombros. Ele falava qualquer coisa quando Ícaro, o moço bonito da pousada, apareceu atrás dele com um sorrio sem jeito.
- Vamos, pode ir dizendo o que aprontou.
- Eu... Eu só andei por aí – não menti.
- Mentiroso. Você estava aprontando. Você não sabe mentir – Alê se divertia com a possibilidade de não ser tão culpado assim ao me deixar sozinho.
- Aparentemente alguém está se divertindo mais – eu disse coçando meu queixo, ainda meio desorientado e direcionando meu olhar ao garoto.
Alexandre sorriu quase maliciosamente e puxou o garoto para perto de nós. Ele cabia exatamente no abraço de Alê.
- Ele demorou a cair na minha lábia, mas você sabe... Eu sempre consigo o que quero.
O garoto sorriu e os dois trocaram alguns beijos curtos.
- Vamos sair daqui – eu continuei. – Não consigo respirar.
Nos distanciamos do pequeno palco e eu não conseguia evitar meu silêncio. Meu cérebro e meu corpo ainda estavam sob o efeito do encontro com Vincenzo e novamente a situação se mostrava fantasiosa demais para ser entendida por Alexandre no ápice de sua excitação com o garoto. Ainda assim, meio atordoado, eu me recusava a perder aquela noite por causa de algo que eu começava a admitir que poderia estar acontecendo somente em minha cabeça.
Continuamos perambulando pelas ruas perfeitamente tingidas de dourado. Mais aberto e falante, tomei algumas bebidas e me deixei curtir o resto da noite com Alexandre que não largava o garoto um minuto sequer. Ícaro não poderia voltar para a pousada naquela noite conosco ou poderiam notar algo suspeito nisso. Não queríamos colocá-lo em alguma situação de risco e o deixamos em casa. Na pousada, sob o efeito leve do álcool, meu corpo parecia mais mole que o normal e o cansaço daquele primeiro dia chegava de mansinho. Alexandre mesmo excitado dormiu assim que caiu na cama, como um dito Senhorzinho. Eu fiquei mirando o teto de telhas avermelhadas enquanto me permitia viajar pelas muitas lembranças que os últimos dias criavam em mim e o sono chegou sem avisos. “Não enlouqueça, Caio. Não enlouqueça” eu sussurrei para mim mesmo enquanto apagava lentamente.