Carlos dormiu mal, despertando diversas vezes, banhado em suor. Seus sonhos foram pontilhados por imagens de Débora, que o perseguia ferozmente na cadeira de rodas, Chegava a ser engraçado agora. O ruído das rodas no tapete permanecia ainda alguns minutos depois que ele acordava, mas Carlos percebeu que era apenas o vento uivando lá fora. Quando começou a clarear ele caiu num sono profundo, do qual foi despertado por Jenny com sua bandeja de café.
Arrastou-se para fora da cama e tomou uma xícara de café, pensando que não ia ficar mais nem um dia naquela casa. Felizmente era sábado e não teria aula com Laura naquela manhã.
Ainda estava de calça de pijama, tomando sua segunda xícara de café, quando bateram na porta. Tentou ignorar as batidas, mas Laura chamou do outro lado:
— Sr. Douglas! Está aí?
Abriu a porta e Laura entrou, alegre e agitada como sempre.
— Está se sentindo bem? — a menina perguntou, ao ver o rosto de Carlos pálido, com olheiras profundas.
— Tudo bem — disse ele com firmeza. — Levantou cedo.
— Mamãe mandou dizer que quer falar com você. Tem umas perguntas, acho. Você demora?
— Ainda nem estou vestido. — Carlos sentou-se na cama, sentindo-se como se o sonho fosse se tornar realidade, ele estava fraco demais para enfrentar Débora Borges.
— A que horas você acha que ela vai querer me ver?
— Agora mesmo. O mais cedo possível. — Laura estava ansiosa. — Quinze minutos?
Carlos estava surpreso com a ansiedade da menina. Até aquele momento nunca tinha visto Laura levar tão a sério as ordens da mãe.
— Meia hora — disse afinal. — Pode ir dizer. Vou tomar banho.
— Tudo bem — respondeu Laura, sorrindo. — Até mais, então. Espero que você concorde — disse misteriosamente antes de fechar a porta. Deu vontade de fugir.
Carlos tomou um banho e se vestiu. Sentiu-se tentado a começar a arrumar as malas, mas as palavras de Laura não tinham sido nada hostis e não podia acreditar que a menina desejasse que partisse dali.
Débora o estava esperando na sala de estar. Revê-la depois dos sonhos que tinha tido era um tanto enervante, mas Carlos afastou essas fantasias infantis e entrou na sala, confiante.
— Queria me ver, Sra. Borges? — perguntou.
— Ah, Sr. Douglas, queria sim. Laura lhe deu meu recado? Claro que deu, senão você não estaria aqui, não é mesmo?
— Sra. Borges. . .
— Sr. Douglas — disse Débora, ignorando a intenção de Carlos de falar —, quero lhe pedir um favor. Laura precisa de roupas novas e evidentemente ela mesma quer escolher. Infelizmente eu não posso circular pela cidade com ela. . . E esperava convencê-lo a fazer isso por mim.
— Ira cidade? Escolher roupa? — murmurou Carlos. Ele era a porra de um tutor, não um personal Stylist.
— Isso mesmo. Gustavo pode levá-los, é claro, e apanhá-los depois. Sr. Douglas, deve conhecer a cidade muito melhor do que eu, tenho certeza. E saberia exatamente o que Laura precisa. Gays são quase uns estilistas.
Carlos não sabia se sentava ou se dava na cara dessa mulher. Suas pernas amoleceram. O que queria dizer tudo aquilo? Como podia Débora dizer aos outros que seu marido tinha estado envolvido com o professor da filha e, em seguida, pedir ao mesmo professor que escolhesse roupas para a própria filha? Alguém estava mentindo. Será que John tinha inventado a história toda? Não havia como descobrir a resposta e ele ficou olhando para Débora, louco para entender o que se passava debaixo daquela fachada aparentemente tranquila.
— Algo errado, Sr. Douglas? — Débora inclinou a cabeça, curiosa. — Como vai jantar com os Lester hoje à noite, pensei que não tinha feito planos para o dia.
— É verdade — disse Carlos com dificuldade. — Sra. Borges. ..
— Tudo certo, então? — Era Laura entrando na sala, com as mãos enfiadas nos bolsos da calça jeans.
— Acho que sim, Laura — respondeu a mãe. — Estou louca para ver você vestida com roupas decentes!
— Tem certeza de que está se sentindo bem, Sr. Douglas? — perguntou a menina, encarando Carlos. — Se não estiver, podemos deixar para outro dia.
— O que é isso? — perguntou Débora, preocupada. — Não me disse que estava doente, Sr. Douglas.
— Não estou, não. — Carlos sacudiu a cabeça. Confusão mental não podia ser chamada de doença. — Sra. Borges, poderia falar a sós com a senhora um momento?
— Desculpe, mas agora não posso — disse Débora, dobrando o jornal que tinha nas mãos. — Tenho muito o que fazer. Vá com Laura, se é que se sente bem. Pode deixar que será devidamente remunerado por isso.
Carlos olhou para ela um momento mais, mas a expressão de Débora era distante. Laura já estava saindo da sala, impaciente, e , Carlos percebeu que não poderia dizer nada na frente da menina. Virou-se para sair, mas James apareceu na porta bem nesse momento. Vestia calça de veludo cor de creme e camisa de seda azul-marinho, que enfatizavam ainda mais a sua masculinidade.
— Papai! — gritou Laura, contente. — Pensei que já tivesse ido. Ah, então vai me dar carona, afinal? No carro esporte! Ótimo!
— Gustavo vai levar vocês, Laura.
A voz de Débora soou um tanto alta demais e ficou evidente que ela não gostava nada daquela interferência em seus planos. Mas James não se intimidou com aquilo.
— Prometi a Laura que ia levá-la, se pudesse — disse ele, calmo. — Quanto à volta, Gustavo pode ir buscá-la à tarde.
— Você vai para o escritório, James — insistiu Débora com firmeza. — Não tem tempo para ficar pajeando Laura.
— Não vou pajear Laura. Vou levá-la até a cidade. Só isso. Está pronta?
— Prefiro que ela vá com Gustavo, James — continuou Débora. — Além disso, o Sr. Douglas vai também e esse seu carro é muito apertado para três.
— O fabricante não ia ficar nada contente em ouvir você falar isso — ele disse com um humor seco e cortante. — E eu já sabia que o Sr. Douglas ia também. Está pronta?
Carlos tentou protestar, mas não podia dizer nada, a situação já estava péssima sem ele abrir a boca. Era apenas um empregado. Olhou para Débora e por um segundo viu o ódio brilhar nos olhos dela.Etaa, ela vai me perseguir com a cadeira. Não soube entender bem a quem era dirigido aquele sentimento tão forte, mas bastou para convencê-lo de que aquela mulher seria capaz de tudo.
— Vou pegar minha carteira — disse, saindo da sala.
Quando desceu, Laura esperava no hall, inquieta. Ao ver Carlos, ela correu para o carro e saltou para o banco de trás. James fechou a porta depois que Carlos se acomodou na frente e sentou-se à direção.
Assim que entraram na estrada, o carro começou a ganhar velocidade. Laura estava inclinada para a frente, cotovelos apoiados nas costas dos bancos dianteiros.
— Não é ótimo, Sr. Douglas? — exclamou, excitada. — Garanto que nunca andou num carro destes antes, andou?
— Não devia dizer esse tipo de coisa, Laura — protestou James. — o Sr. Douglas é bem mais velho que você. Já deve ter andado em carros assim outras vezes.
— Tudo bem! — Laura fez uma careta. — Mas ele não é assim tão mais velho. Eu só estava querendo conversar, mais nada. Quanto é que eu posso gastar, papai? Mamãe disse que eu preciso de vestidos e mais algumas coisas. Mas eu acho que preciso mesmo de tudo.
Carlos já não estava ouvindo. Observava as mãos de James pousadas na direção. Eram bonitas, morenas e fortes.
— O que acha, Sr. Douglas?
— Desculpe — disse Carlos ao ouvir a voz de Laura. — O que foi que disse?
— Laura quer saber por onde acha que devem começar — esclareceu James, olhando para ela. — Lojas de roupas ou calçados.
— Bom, acho melhor começar pelas roupas — disse Carlos afastando depressa o olhar do rosto de James e virando-se no banco para falar com Laura. — Você precisa de roupas formais, além das mais esportivas. No shopping da Barra tem as lojas maiores, com departamentos especiais para jovens.
— Não pode vir com a gente, papai? — perguntou Laura, carinhosa.
— Laura, tenho uma reunião dentro de exatamente quarenta e três minutos.
— A gente se vira, Laura — Carlos disse depressa. Não precisava de James perto dele
— Está bom. Só pensei que você podia demonstrar um pouco de interesse por sua filha. Para variar.
— O que é isso agora? — perguntou James, apertando a direção.
— É isso mesmo. Você nunca fica comigo. Tem sempre de ir a reuniões. . . ou velejar. . , tudo para escapar daquela casa.
— Laura!
— Por que é que tenho sempre de implorar um pouco da sua atenção. — Laura começou a chorar. — Só porque mamãe tem ciúme de você sair comigo? — Desatou a soluçar e Carlos olhou para a paisagem, desejando estar em qualquer outro lugar, menos ali.
James parou o carro no acostamento, desligou o motor e virou-se no banco para olhar a filha. Quando a viu em prantos, estalou os lábios, penalizado, abriu a porta e foi sentar-se ao lado dela no banco de trás.
Sem nada dizer, Carlos abriu a porta e desceu, afastando-se do carro. O tráfego corria zunindo pela estrada, mas ele não prestou atenção. A relação de James com a filha era algo particular, que não lhe dizia respeito. De repente, sentiu uma dor intolerável. Era inútil tentar negar. Nunca tinha deixado de amá-lo. Tapar o sol com a peneira, foi inultil.
Caminhou até uma pontizinha sobre um pequeno dique e apoiou-se na grade, olhando a paisagem. O sol começava a esquentar. Tinha deixado os cabelos arrepiados e o vento provocado pelos carros que passavam correndo fazia com que ficasse mais bagunçado ainda. James surgiu a seu lado. Carlos olhou aquele rosto fatigado e fez menção de ir para o carro parado a alguns metros, mas ele o deteve, pousando a mão em seu braço. Como estavam de costas para o carro, Laura não podia ver de lá o gesto do pai.
— Não vá — ele pediu, inquieto. — Não ainda. Por favor, Carlos.
— E a sua reunião? — Carlos perguntou, trêmulo. Pronto, tinha virado um adolescente apaixonado de novo
— Não tem importância. Vou levá-los para almoçar. Prometi a Laura.
— Não precisa me levar — protestou Carlos, assustado. — Faço as compras com Laura e posso encontrá-la depois. . .
— Não seja bobo! — ele disse baixinho. — Vai almoçar conosco!
— Pobre Laura! — disse Carlos, tentando evitar o olhar dele que parecia queimá-lo.
— Coitadinha — concordou ele, por entre os dentes. — Uma mãe que nunca a desejou, que não se importa com elae um pai apaixonado por um homem!
Carlos tentou escapar, mas James não o soltou.
— É verdade — ele prosseguiu, feroz. — Tenho de lhe dizer. Não posso mais negar. E também não posso fazer nada. Levar Laura embora, talvez? Já pensei nisso. Mas acha que Débora permitiria? Nunca! E nenhum tribunal do mundo me daria a custódia de minha filha. Sobretudo com a suspeita de haver traição e com um homem. Claro que Laura tem dezesseis anos e dentro de dois poderá decidir por si mesma. Mas será que posso esperar tanto tempo? Será que posso me arriscar a ver o homem que amo acabar casando com outro? Ele fechou os olhos por um momento e continuou:
— Pensei em ir embora. Dentro de dois anos Laura poderá me encontrar quando quiser, será maior de idade. Mas não posso fazer isso também. Já imaginou o veneno que Débora instilaria na cabeça dela durante esse tempo? Carlos, Carlos, eu já tinha tirado você da cabeça. Seis anos é muito tempo. Tinha certeza de que estava casado, com filhos. Eu não tinha o direito de lhe pedir que esperasse seis anos, mesmo que você estivesse disposto a isso naquela época.
— Oh, James!
— Pelo amor de Deus, Carlos, não olhe para mim assim. Não sabe o tormento que tenho passado nessas últimas semanas. Não sei quanto tempo mais vou poder aguentar. Mas acho que você tem certo prazer em me exibir às suas conquistas, não é?
— James, você não compreende. . .
— Compreendo que quer me magoar — ele disse, rude.
— James... Laura vem vindo. Não podemos falar agora.
— E o que mais resta a dizer? — ele perguntou friamente, virando-se na direção da filha.
Pela maneira como Laura se dependurou no braço do pai enquanto voltavam para o carro, Carlos entendeu que finalmente tinham feito as pazes. Ficou contente. Afinal, Laura era a única inocente naquela história toda. Mas assim mesmo gostaria de ter podido contar a James o que John Monteiro lhe dissera. Era algo que não podia ser ignorado e que teria de vir à tona mais cedo ou mais tarde.
Acidade estava agitada como sempre, cheia de turistas. James deixou-os perto da área comercial, combinando encontrá-los uma hora num pequeno restaurante mineiro no subúrbio . Laura estava muito animada. Pelo menos daquela vez tinha conseguido o que queria e Carlos acabou deixando-se contagiar por aquele entusiasmo.
A maioria das lojas grandes tinham contas em nome dos Borges, e as que não tinham aceitaram prazerosamente os cartões de crédito que o pai de Laura tinha dado a ela. Passaram por todas as butiques e ela comprou todo tipo de coisas, mandando entregar em casa. Era a maneira ideal de fazer compras e Carlos deixou de lado seus próprios problemas para partilhar com Laura sua excitação quase infantil.
Depois de escolher mais um vestido, que a deixava surpreendentemente elegante, Laura virou-se para a vendedora.
— Será que tem algum terno azul ?
— Comprar um presente para seu pai! —
— Não, para você. Papai mandou eu comprar alguma coisa para você. Por ter vindo comigo.
— Não, nada disso — Carlos recusou firmemente. — Muito obrigada, mas posso comprar minhas próprias roupas.
— Eu sabia que você não ia querer! — exclamou Laura, desapontada. — Eu devia ter comprado sem dizer nada.
— Não ia dar, porque não sabe meu tamanho. — Carlos sorriu. — Foi uma ideia linda, mas eu não quero, Laura, obrigada. E agora vamos, que já falta vinte para uma
— É mesmo? Como o tempo voou! Que tal se eu usar aquele conjunto cor de creme no almoço, hein?
— Acho ótimo — concordou Carlos. Ele odiava fazer compras.
Enquanto esperava Laura vestir a roupa nova, Carlos pensou que tinha sido gentileza de James sugerir à filha que comprasse um presente para ele. Era o tipo de gentileza que ele fazia sempre. O que é que ia fazer com James? Ele podia dizer que esperaria até Laura completar dezoito anos, mas será que esperaria mesmo? E se resolvesse começar a pressioná-lo, será que teria forças para resistir? Se ele descobrisse o que realmente sentia por ele. . . Agitou-se na cadeira. Ia ter de tomar uma decisão antes do fim do mês. Mas seria tão doloroso separar-se dele mais uma vez!
Á Mineira era um pequeno restaurante ,bastante exclusivo. Laura parecia muito chique na saía pregueada com casaquinho combinando. Exagero para o lugar, mais deixa a menina. Chegaram pouco depois da uma, mas James estava atrasado.
— Eu sabia! — exclamou Laura enquanto eram levadas para a mesa reservada pelo pai. — A mulher é quem tem de deixar o homem esperando, e não o contrário.
— E você já se considera uma mulher muito independente! — disse Carlos, brincando, tentando evitar que sua própria depressão estragasse o dia de Laura. — Por que é que o homem não pode deixar a mulher esperando se ela quer que a tratem como igual?
— É. Acho que, afinal, não sou uma mulher emancipada mesmo — disse Laura, pensativa. — Não gosto que me deixem esperando. Estou com fome e o cheiro da comida é delicioso, não é?
— Mas acho que pode parar de se preocupar — disse Carlos, olhando um grupo de pessoas que entrava. — Seu pai acaba de chegar.
— é mesmo? — Laura procurou com os olhos. — E olhe quem está com ele!
Trevor atravessava a sala ao lado de James.
— Muito bem! — disse James, olhando para a filha com admiração. — O que é que aconteceu com a minha menina?
— Olá, Trevor — disse Laura, fazendo uma careta brincalhona para o pai. — O que é que está fazendo aqui?
— Parece mentira, mas Trevor veio até o escritório — explicou James, sentando-se ao lado de Carlos.
— Sua mãe ficou sabendo que eu vinha para cá — explicou Trevor — e telefonou de manhã, sugerindo que encontrasse seu pai para o almoço. Mas não sabia que estaria com você também.
Carlos sentiu os olhos de James pousados em si e baixou a cabeça, confuso. Ele parecia dizer com o olhar que aquele era o jeito de Débora controlá-lo a distância, para saber com quem tinha almoçado. Ele gostaria de poder dizer a ele que aquilo tudo talvez pudesse significar algo mais, que Débora estava tentando manobrar as coisas para que os dois não ficassem juntos nem um minuto. Mas, ao trazer Trevor consigo, James tinha completado os pares e era natural que ficasse a seu lado. Pelo menos daquela vez, Débora tinha errado ao interferir. Mulherzinha psicopata, credo.
Trevor contava muito animado a Laura que havia acabado de sair da loja de automóveis onde fora escolher o carro novo. Carlos tentou prestar atenção ao que ele dizia, mas era muito difícil, pois a perna de James roçava a sua por baixo da mesa.
— Foi tudo bem? — perguntou James a ele.
— Muito bem. Laura comprou umas coisas lindas. Não é mesmo,
Laura?
— O quê? Ah, é sim — disse Laura, absolutamente concentrada na conversa com Trevor.
— Você me odeia?
— Não. não odeio.
— Esqueça os dois e converse comigo. — James sorriu, falando muito perto do rosto de Carlos. — Pode ser bobagem minha, mas quero saber o que você sente por mim.
Carlos ficou horrorizado com a possibilidade de os outros ouvirem o que ele tinha dito, mas aparentemente isso não tinha acontecido e James suspirou.
— Fique sossegado — disse, calmo. — Você consegue ouvir o que eles estão dizendo?
Era realmente muito difícil ouvir a conversa deles no meio de todo o barulho do restaurante. E, além disso, Laura estava absolutamente concentrada em Trevor.
— Em Carlos? O que você senti por mim? insistiu James.
— Não quero falar sobre isso James. disse Carlos inquieto, sentindo a perna de James roçando nele.
— Mas não posso continuar vivendo naquela casa. No fim do mês eu...
— Gostaria de tomar alguma coisa, senhor?
O garçom esperava ao lado da mesa. James voltou-se para ele. Era evidente que se conheciam há tempos e depois de poucas palavras ele se afastou.
— O que foi que pediu, papai? — perguntou Laura, inclinando-se para o pai. — Posso tomar um Martini?
— Não, não pode. — James sorria, mas falava com firmeza. — Pedi suco de laranja para você e o coquetel especial da casa para nós.
— Suco de laranja! — exclamou Laura. — Mas eu tomo Martini em casa, às vezes!
— Mas não estamos em casa agora.
Os coquetéis estavam deliciosos, o estimulante perfeito para a refeição. Trevor deixou Laura provar do copo dele e voltaram a conversar, animados.
— O que é que vai fazer no fim do mês? — perguntou James.
— Você sabe que tenho de ir embora.
— Por minha causa?
— Em parte — disse, baixando os olhos diante da intensidade do olhar dele.
— Por quê? O que foi que eu fiz para forçá-lo a ir embora? — James parecia preocupado. — Fiz o possível para não encontrar com você na casa. E você fez muito bem a Laura. . . O que é que pretende fazer?
— Não sei. — Carlos respirou fundo. — Vou procurar outro emprego, talvez.
— Na capital?
— Não sei.
— Vai me deixar vê-lo algumas vezes? — James esvaziou o copo.
— Não!
A recusa firme de Carlos atraiu a atenção de Laura, que olhou para eles, preocupada.
— O que é que estão discutindo, papai? Por que é que o Sr. Douglas está tão nervoso? O que é que está dizendo a ele?
— O Sr. Douglas e eu não concordamos em alguns pontos — ele respondeu secamente. — Vamos pedir a comida?
Era impossível conversar assuntos pessoais com aquela comida. Coquetel de lagosta, pato com laranja e crèpes-suzetíe. Tomaram caipirinha que, combinado aos coquetéis de aperitivo, relaxou a tensão que Carlos estava sentindo. Falaram de automóveis, da última peça que havia estreado no teatro e Trevor fez uma narrativa muito engraçada de uma viagem a Salvador.
Ao final da refeição James sugeriu que Trevor voltasse com ele para casa.
— Bom, papai, nós já acabamos as compras — disse Laura, para surpresa de Carlos. — Podemos voltar todos juntos?
— Laura, sua mãe disse que Gustavo viria nos apanhar — sugeriu Carlos.
— Acho que ainda não está nada certo. — James interrompeu. — Vocês podem voltar comigo também, se quiserem.
— Muito obrigado — disse Trevor, satisfeito com o arranjo.
— Ótimo! — Laura estava feliz. — Então está combinado.
— Bem, tenho de voltar ao escritório para pegar uns papéis — disse James, assinando a conta que o garçom tinha trazido. — Querem me esperar aqui ou vão comigo?
— Será que não podíamos ficar por aí e encontrá-lo depois na Pracinha do banco central ou algo assim? — perguntou Laura, ansiosa. — O que acha, Trevor?
Trevor concordou com a cabeça, olhando para Carlos, e ele percebeu que ele não gostava muito da ideia de ter uma acompanhante. James percebeu o olhar e interferiu:
— Gostaria, de conhecer os escritórios da Borges Industrial, Sr. Douglas? Ou prefere ficar com os meninos?
— É uma ótima ideia, Sr. Douglas — insistiu Laura. Diante de tudo aquilo, Carlos não podia recuar.
— Está bem — disse, com certo cansaço e desânimo.
— Combinado, então — disse Laura, pondo-se em pé. — Nos vemos depois, então. A que horas, papai? Digamos. . . uns quarenta minutos?
— Isso. — James levantou-se também. — Pego vocês perto da Praça. Fiquem olhando para ver quando passo.
Laura deu um sorriso camarada a Carlos e afastou-se com Trevor. James chamou um táxi e Carlos procurou sentar-se bem longe dele no banco amplo de trás.
— Não era preciso tudo isso, sabe? Eu podia encontrar vocês mais tarde. Não havia necessidade de ficar com os meninos. Além disso, é meu dia de folga e eu podia voltar de trem.
James nada disse, sentado indolentemente, com as mãos repousando sobre as pernas. Mas Carlos sentia-se tenso, combatendo o inegável poder que aquele homem exercia sobre seus sentimentos, com medo de trair o que verdadeiramente sentia por ele.
— James... — ele disse.
— Tudo bem, Carlos, não precisa ficar assustado. Eu não estou levando você até o escritório para uma grande cena de sedução. Tenho mesmo de apanhar uns papéis. Pode esperar no saguão, se preferir.
Carlos virou o rosto para a janela. Na verdade, devia era contar a ele sobre Débora em vez de se comportar como um virgenzinho ultrajado. Mas era muito difícil puxar o assunto sem criar uma situação incômoda.
O edifício dos escritórios era uma coisa enorme de vidro, mas o interior era excepcional, com seu chão de mármore, elevadores velozes e ar condicionado mantendo constante a temperatura.
James caminhava a passos largos para os elevadores e Carlos quase tinha de correr para ficar ao lado dele. Nada disseram durante todo o caminho e ele pensou que talvez devesse ter ficado esperando no saguão.
Passaram pela sala da secretária e entraram na de James. Carlos nem teve tempo de notar a decoração. Ele fechou a porta e prendeu-o contra a parede com o peso de seu corpo, procurando os lábios dele com a boca.
— Era isso o que eu queria fazer o tempo todo — ele gemeu junto ao ouvido dele,
— Você prometeu que não ia haver cena de sedução — protestou ele, sentindo nas pernas os músculos da coxa dele.
— E não ia mesmo, se você tivesse esperado lá embaixo. — Ele sorriu levemente. — Mas você queria isso tanto quanto eu. Vamos, diga que gosta de estar nos meus braços.
Carlos tentou se libertar, mexendo a cabeça de um lado para o outro, mas ele prendeu novamente os lábios dele, com enorme desejo. Ele sentiu as mãos dele retirando seu casaco e atirando-o ao chão, E minutos depois o paletó caía também.
— Não sabe o que está fazendo — ele murmurou, incapaz de impedir que suas próprias mãos penetrassem na abertura da camisa dele para sentir o peito duro debaixo de suas mãos.
— Sei, Carlos, sei sim — e!e gemeu, tocando a orelha dele com a língua. — Estou fazendo algo que devia ter feito anos atrás, algo inevitável, algo que pode me afastar para sempre de Débora. Ela que faça o que quiser. Não me importa mais nada.
— James! — Carlos conseguiu retirar a perna das dele. — James, não diga isso.
— Carlos, eu o amo. Amo Laura também, mas preciso de você. Talvez mais ainda do que ela precisa de mim.
Carlos respirou fundo e afastou-se dele com dificuldade. Caminhou até o meio da sala, abotoando a camisa, de costas para James.
— James... eu o amo. Nunca deixei de amá-lo. Compreendi isso faz algum tempo, mas.. .
— Oh, Carlos! — Ele o abraçou por trás, moldando o corpo ao dele, beijando ardentemente sua nuca, alisando a barriga plana de Carlos.
— Sabe o que está fazendo comigo? Não me diga para não tocá-lo. Não posso evitar. Quero você, Carlos. Não assim, mas em algum lugar nosso. Quero dormir a seu lado e ficar na cama uma semana inteira. Carlos, fuja comigo. Eu peço o divórcio, o que você quiser, mas não me deixe mais! Não aguento mais, ficar perto de você , e mesmo assim está tão longe.
Aquelas palavras eram mais intoxicantes que o vinho. Passar o resto da vida ao lado de James era tudo o que queria, mas não podia permitir que ele fizesse isso às custas da mulher e da filha. Com enorme esforço conseguiu se libertar dele mais uma vez, abotoando a camisa, concentrado, como se isso fosse uma questão de vida ou morte.
— Não posso, James — ele disse, incerto, incapaz de encará-lo.
— E você também não pode. Não vou deixar.
— Por quê?
A voz dele, ansiosa, estrangulada, fez com que ele se voltasse. Aquele rosto atormentado, a atração sensual daquele corpo excitado eram quase irresistíveis.
— James, você me falou hoje das coisas que Débora poderia fazer se você a deixasse, do veneno que ela poderia colocar na cabeça de Laura, contra você. Acredite se quiser, mas isso acontecerá mais cedo ou mais tarde. Neste momento. .. agora.. .
— Agora eu quero você — disse ele, avançando de novo para ele.
— Não me diga que não sente o mesmo.
— James, é claro que quero você também — disse ele, tentando se desvencilhar dos braços dele —, mas. .. mas agora você só está pensando no presente, esquecendo o futuro. Muito bem, suponhamos que você deixe Débora, que ela lhe dê o divórcio. O que é que Laura vai achar disso? Ter o pai com um homem. Já esperamos tanto, James. Será que não podemos esperar um pouco mais?
— Você consegue?
— Tenho de conseguir, não tenho? — eledisse, voltando as costas para ele.
— E se eu recusar? — ele perguntou, depois de uma pausa. — Você vai embora comigo?
— Oh. . . Sim, sim, eu vou. — Carlos sentia as lágrimas enchendo seus olhos, a voz fraquejava. — Fico com você, se é isso o que quer. Mas não podemos. . . não podemos.
— Oh, Carlos. — Ele pousou as mãos nos ombros dele e puxou-o para si, encostando a testa na dele. — Obrigado. Muito obrigado por ter dito isso. Pensei que ia acabar enlouquecendo.
— O que pretende fazer? — ele perguntou, incerto-
— Você. .. você tem razão. Sobre Laura — disse ele, suspirando fundo e controlando-se de novo. — Mas esperar mais dois anos. . . Para onde você vai quando sair da minha casa? Como é que vou poder vê-lo?
— Acho que não devíamos nos ver.
— O quê? — Os olhos dele se ensombreceram. — Está louco! Meu Deus, Carlos, Débora não precisa saber! Podemos nos encontrar aqui na cidade.
— Você já disse isso antes. Mas ela descobriu.
— Como? — James franziu as sobrancelhas.
— Débora sabe. Sobre o que aconteceu conosco há seis anos. Sabe que você e eu já tivemos um caso.
— Quem foi que lhe disse?
— John insinuou alguma coisa. Só isso.
— Jonh? — James arregalou os olhos. — Ontem à noite?
— Meu Deus! E como é que ele sabe? — James estava perplexo, — Por que é que você saiu com ele ontem à noite?
— Vai acreditar se eu contar? — Carlos hesitou.
James pegou-o pelos pulsos, sentou-se à cadeira de sua escrivaninha e fez com que ele se sentasse em seu colo.
— Conte — disse com voz suave. — Antes que eu comece a me interessar por outras coisas. Sua bundinha está em cima do meu pau.
— Borg. . . — Carlos não sabia onde enfiar a cara, ignorou o sorriso de James e começou a falar. — Lembra-se daquela vez que ele veio até a casa? Que eu saí com ele de moto?
— Claro. — James despiu o ombro dele, acariciando-o com os lábios, mordendo e lambendo seu pescoço.
— Aii, James, por favor. Deixe-me contar primeiro. .
— Carlos, se Débora souber sobre nós dois, não vamos ter de esperar nada, entende?
— Mas não é assim. — Ele levantou a manga da camisa e continuou; — Naquela tarde, John. . .
— John?
— É. John tinha recebido um telefonema. Supostamente de mim, convidando-o para ir na casa.
— Você telefonou para ele?
— Eu nunca faria isso.
— Débora insinuou que você conhecia Monteiro — disse James, muito sério —, que você o conhecia antes de vir trabalhar em casa.
— O quê? — Carlos perdeu o fôlego. — Eu nunca o tinha visto na vida!
— Continue.
— Bem. . . Não sei quem fez o telefonema, mas eu queria conversar com ele sobre Laura. Não sei, achei que John falaria comigo. E ele falou, mesmo. Garantiu que não tinha nenhuma ilusão sobre a possibilidade de você permitir que se casasse com Laura. Parece que ela e algumas outras colegas da escola forçaram a aproximação com os rapazes da estrada. E ela levou a coisa mais a sério do que John realmente pretendia.
James ouvia calado, olhando um ponto vago no espaço.
— Você acredita, não é, James? — Carlos estava ansioso se remexendo no colo de James. — Eu juro que nunca tive nenhum contato com John antes daquele dia em que ele veio até a casa.
— Eu acredito amor. Mas pode parar de rebolar por favor. Estou tentando de escutar — disse ele com um ar enigmático e zombeteiro,.
Carlos ficou mortificado, e emudeceu
— Que mais? James incentivou
— Ele telefonou depois, pedindo para falar comigo — ele prosseguiu. — Não sei quantas vezes ligou, ou se falou com alguma outra pessoas. Mas quando eu estava falando com ele você apareceu.
— Por que concordou em sair com ele? Não me diga que queria conversar sobre Laura.
— Não, não foi por isso. James, eu não sabia o que fazer. Laura estava com Trevor. . . Oh, meu Deus, eles devem estar esperando a gente!
— Que esperem — disse James, firme. — Continue.
— John ameaçou telefonar de novo e mandar chamar Laura se eu não concordasse em sair com ele. E eu fiquei com medo do que ele poderia dizer a ela a meu respeito.
— Então saiu com ele.
— Saímos para jantar. Ele me perguntou se eu não preferiria ter saído com você.
— O quê? — James estava curioso. — E o que foi que respondeu?
— Eu neguei. O que mais podia fazer? Então quis saber por que ele tinha perguntado isso e ele me disse que Débora havia contado a ele.
— Nunca! — James estava perplexo. — Além do fato de ser impossível ela saber qualquer coisa sobre nós, acho impossível que Débora fosse contar qualquer coisa a ele.
— Não sei — prosseguiu Carlos
— Acho que, no início, John acreditou em mim, mas daí eu falei seu nome e ele começou a desconfiar.
— Não se preocupe, meu bem. — Ele deslizou as mãos pelas costas dele. — Isso tinha de acontecer mais cedo ou mais tarde.
— Mas se Débora sabe, por que não falou nada? Não fez nada? Hoje ela me pediu para ir fazer compras com a filha. Isso tudo não faz sentido.
— Nada do que Débora faz ultimamente parece fazer sentido — observou James secamente. — O que mais John disse?
— Nada. Eu tive a impressão de que ele se arrependeu de ter falado demais. Não tinha importância me contar tudo se fosse mentira. Porém, se fosse verdade. . . Acho que John ficou com medo que eu fosse contar a você.
— É uma bela charada, não? — James deitou a cabeça nas costas da poltrona. — Não é do estilo de Débora saber uma coisa dessas e não usá-la contra alguém. A menos que ela tenha mudado muito. Sei que não está bem ultimamente. Foi ao médico algumas vezes. Mas quando eu pergunto, ela diz que está tudo bem. O que é que eu posso fazer?
— Talvez ela não seja tão ruim assim ou Talvez ela queira o divórcio — sugeriu Carlos
— Não. Não acredito. — James sacudiu a cabeça. — Ela me disse hoje de manhã que está preparando um cruzeiro para nós. Em agosto. Com os Fontes.
— Trevor tambem?
— Provavelmente. Mas eu não vou.
— James, você tem de ir. Por Laura!
— E você? O que vai fazer?
— Eu fico em Londres.
— Com Timothy?
— Oh, James, pensei que já tinha esclarecido isso. Nós somos apenas bons amigos. Colegas, se preferir. Ele também é professor. Você ia gostar dele, James.
A expressão dele fechou e havia um estranho desespero na urgência com que James pousou os lábios sobre os dele, beijando-o com um abandono tão apaixonado que o deixou fraco de desejo, o corpo pedindo uma satisfação que só ele podia lhe dar. Mas de repente afastou-o com uma exclamação e pôs-se de pé, abotoando a camisa.
— James? — perguntou Carlos, ansioso. — O que foi?
— Está tudo errado — ele disse, irritado. — Feche a camisa, Carlos. Não vai me deixar fazer sexo com você aqui no escritório e não consigo mais aguentar isso. Mas você é meu! E se qualquer outro homem. . . Não se engane comigo, Carlos. Não vou deixá-lo ir embora uma segunda vez.
— James. . . — disse ele depois de hesitar muito, enquanto vestia o casaco que ele segurava. — Sabe, vou jantar com Clive e a mãe dele hoje à noite.
— Não sabia.
— Ele me convidou. — Carlos suspirou. — E. . . naquele momento me pareceu uma boa ideia.
— Por quê?
— Porque. . . para você não pensar que eu estava interessado em você — ele explicou depressa. — Débora me jogou nessa situação. Se eu recusasse o convite, seria muito grosseira. Mas não sinto nada por Clive, James. Não sinto nada por ninguém, a não ser por você.
Fez-se silêncio por alguns momentos e então, relutante, James avançou para ele. Carlos olhou para ele e com um soluço atirou-se em seus braços. James o abraçou, afundando o rosto no ombro dele.
Carloss ouviu vozes no corredor e entrou em pânico.
— é Laura. . . e Trevor!
— Droga. . . O que é que eles querem aqui?
— O que é que eles vão pensar? — protestou Carlos, tentando arrumar os cabelos e as roupas.
— Vão pensar o pior, você está parecendo que acabou de dá uns amassos — disse James, olhando divertido para a agitação dele. — Você já está com cara de culpado. Calma. Eu não me importo.
— Mas eu me importo! — gritou, ressentido por ele estar tão controlado, quando segundos antes estava tão excitado quanto ele. — James, não há outra saída daqui?
— Vá para o banheiro — ele sugeriu, indicando uma porta. — E pare de se preocupar. Eu o amo.
Carlos mal tinha fechado a porta quando Laura e Trevor entraram na sala.
— O que é que aconteceu, papai? — ela reclamou. — Ficamos esperando onde você mandou, depois resolvemos vir a pé para encontrá-lo. Onde está o Sr. Douglas?
— No banheiro — respondeu James, seco. — Já estávamos saindo. Desculpem a demora, mas eu quis mostrar tudo ao Sr. Douglas.
Carlos saiu do banheiro recomposto, os lábios não mais vermelhos , e os cabelos ajeitados.
— Ah, aí está ele — disse Laura, examinando-o curiosamente. — Parece agitado, Carlos. Meu pai o incomodou de novo?
Carlos olhou para James, meio desesperado, e com olhar culpado e ele foi para a porta.
— Cuide da sua vida, Laura — James disse com um ar brincalhão, salvando seu amor do embaraço. — Pode deixar, que Eu cuido da Sr. Douglas.
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