Cara e coragem.
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
(**) Sobre o trabalho.
1
Todo dia meu funcionário Jacinto Rego Roxo me pedia, com certa insistência, para deixar que ficasse mais tempo na loja de roupas unissex, depois que encerrássemos as atividades. De pronto, inventei umas desculpas esfarrapadas, não permitindo. Todavia, depois, pensando melhor, abri mão. Na verdade, não havia nenhum impedimento ou inconveniente quanto a isso. Jacinto Rego Roxo estava aos meus serviços, há mais de três anos, e nunca tivera nenhum tipo de problema com ele. Responsável, cumpridor de seus deveres e, sobretudo, honesto, acabei abrindo a guarda e liberando a sua permanência depois do tempo previsto.
2
Deixei-o ficar até as nove (fechávamos as oito em ponto). Nem um minuto a mais. Estava tranquilo e ia embora para casa sem temer qualquer tipo de descuido ou desmazelo da sua parte. Sabia que Jacinto Rego Roxo fecharia tudo, desligaria as máquinas de ar condicionado, os computadores, as luzes internas, acionaria os alarmes, e, dia seguinte, na hora do rush estaria tudo nos trilhos de maneira impecável, para quando desse o sinal de acesso ao público, não fosse encontrado nenhum tipo de empecilho. De fato, ao começar os trabalhos, em cada nova manhã, girava tudo em torno do bonito e politicamente perfeito. Sem contratempos. Jacinto Rego Roxo cuidava dos mínimos detalhes, caprichava nos manequins, trocava as roupas dessas peças, dava uma retocada caprichada nas vitrines, de modo que não tinha o que reclamar do sujeito um nadinha que fosse.
3
Jacinto Rego Roxo viera de Patrocínio, mais ou menos trezentos e noventa e três quilômetros da capital, Belo Horizonte, cidade do cantor e ator Lucas Lucco. Duas de minhas vendedoras andavam caidinhas por ele. Sem contar, que no fundo, muito ligeiramente, meu subordinado (dono de uma simpatia e charme indiscutíveis), ia além daquela simplicidade aparente. A mulherada (e aqui entra o meu olhar prático da questão e não só prático, igualmente objetivo, pelo crescimento espantoso das vendas e, claro, em vista do volume de dinheiro em caixa) costumava vir em bando fazer compras só para ser atendida pelo efusivo e inimitável galã. Por certo minhas comercializações mês a mês quadriplicaram. Em face disso, constantemente carecia renovar o estoque, o que desbancava os concorrentes ao meu redor sem fazer muito esforço.
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Jacinto Rego Roxo sem parentes na cidade (como dissera viera da mineira Patrocínio) se alojara numa república só para homens, de um chegado meu, o Eusebiâncio. Sua hospedaria distava meio quilômetro do shopping. Sabedor da rigidez desse amigo, o Eusebiâncio, não admitia, em hipóteses nenhuma, permanecia do sexo feminino em sua casa, nem que fosse para salvar a vida de um de seus inquilinos. Veado assumido, diziam, a língua solta, que na calada da noite dois ou três residentes subiam ou se revezavam em seus aposentos dando inicio a um tremendo bacanal que varava a noite. Nunca, entretanto, ninguém flagrou o velhote de calças curtas, dando o caneco. Verdade ou mentira, Jacinto Rego Roxo, por conta desse particular, não tinha como dar uma quebrada de asa e entrar, às escondidas, no recinto do Eusebiâncio para dar uns beijos ou molhar o biscoito com alguma franguinha da periferia. Se quisesse, teria de fazê-lo fora, o que não lhe alimentavam os bolsos, muitas opções.
5
Ajudava a mãe doente aos cuidados de uma tia. Seu salário e comissões, rigorosamente mês a mês, se esvaiam de entre seus dedos, depositados na conta de uma tia (irmã de sua genitora) que cuidava de tudo, usando o dinheiro para as despesas mais prementes.
6
Em face desses contratempos, deduzi que Jacinto Rego Roxo arranjara uma namorada, uma ficante, ou qualquer coisa nesse ramo, sei lá. Não tendo para onde levar a garota, a única saída que se apresentava às suas possibilidades, certamente minha loja. Grande, espaçosa, dois banheiros com chuveiros quentes, quatro provadores, dois femininos, dois masculinos, com certeza Jacinto Rego Roxo comia “alguém” depois de suas atividades laborais. Seria a Silvia, a Alexandra, ou a Melissa, uma das vendedoras? Por certo, os outros dois, sem chances. Noel e Silas namoravam de alianças. Eu os via constantemente, cada um com as respectivas namoradas a tiracolo que nos finais de noite os vinham resgatar a hora de ir embora.
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Confesso, porém, a curiosidade me deixava com os nervos à flor da pele. Tencionava, por conta desse intrometimento, descobrir que figura misteriosa tocara fundo no coração do meu vendedor. Num primeiro momento indaguei da Sílvia, depois de Alexandra, e, por fim, Melissa. Ninguém me esclarecera porcaria nenhuma, Isso só fez aumentar meu interesse. Agora, mais que nunca, precisava desvendar o que se ocultava no secreto de todo aquele episódio. Num segundo momento, questionei a galera que trabalhava na limpeza. Em seguida interroguei os seguranças, enfim, ninguém vira nada, ninguém me acendera uma luz em meio a grande escuridão que me atormentava.
8
Assim foi até que cheguei ao limite. Dei pra montar campana. Fiquei fazendo hora. Quando dava o tempo limite, me escondia para ver quem sairia com meu empregado. Cheguei a imaginar que ele se cansara da pensão e passara a dormir na loja. Como tudo abria as dez... todavia, um dia, dois, e nada. Nem sinal. Quinze dias. Nenhuma mudança no quadro. Concluí, finalmente, que o rapaz improvisara uma cama na loja, passo que não saía de regresso para a moradia que lhe estava destinada. Depois de vinte dias, pirei o cabeção e resolvi tirar a coisa em pratos limpos. Não precisei levantar nenhuma das quatro portas de aço. Furtivamente, me enveredei pela abertura menor de admissão à entrada e saída dos funcionários. Vistoriei o alarme. Desligado, Jacinto Rego Roxo estava ali, sem dúvidas. Continuei sem pressa, o coração acelerado. Interior às escuras. Metade do caminho chegou aos meus ouvidos, uns gemidos fortes, vindo dos provadores. Pé ante pé fui me aproximando das cabines. Um deles com a cortina fechada. Puxei o bastante para meter o olho e espiar o interior do pequeno espaço.
9
Não pude me conter. Não tive como me segurar, é bem verdade. A elevada serenidade, naquele exato momento me abandonou, e incontidamente, desabei sobre meu próprio riso desenfreado. Caí, feito um doidivanas na maior e na mais estrondosa das gargalhadas. Rinchavelhei alto, em bom som.
10
Jacinto Rego Roxo vestira com capricho e esmero, uma das manequins que serviam de mostruário. Colocara nela um vestido curto, uma blusa tipo regata e o mais impressionante, adornou, as ancas da beldade com uma calcinha vermelha magistralmente enterrada no meio do rabo. A boneca (das solas a cabeça em resina plástica e fibra de vidro) jazia encostada numa cadeira, de costas para as sandices empolgadas do safardana. Parecia assim, ainda que vista às escuras, uma mulher de verdade, a bunda pra cima visível e exposta a sua pica grossa e saliente. A lingerie miúda, um pouco arriada, deixava entrever a cavidade da fenda anal. Completamente pelado, suando em bicas e gemendo como um possesso, o infeliz segurava e puxava com violência os cabelos da modelo, enquanto sem se conter, pelo prazer do ato, metia a vara e a chamava pelo nome de Adrienne balbuciando em seus ouvidos, “eu sou seu Dr. Paul Flanner... eu sou seu Dr. Paul Flanner”. Aninhado ao corpo da garota, se movimentava, num vai e vem cadenciado, até que, de repente, o ápice. Gozou!
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Quando deu comigo, rindo feito um desmiolado, soltou a estrutura atabalhoadamente. Embora a boneca com feições humanas fosse de material resistente, em face do espanto que vi em seu rosto, o coitado deixou que ela caísse para um lado, soltando, na queda, um dos braços, e, ambas as pernas. Sem falar no pior. A cabeça, com o baque, rolou para o chão, como se a lâmina de uma guilhotina tivesse lhe despregado inopinadamente da base do pescoço.
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No minuto seguinte, enquanto sem controle, eu seguia na corrente natural de uma reação comportamental alheia a vontade, cheguei a mijar de tanto que contrai os músculos faciais emitindo sons espalhafatosos. Jacinto Rego Roxo, ao oposto, tentando se cobrir com a vedação que servia de agasalho ao repartimento de provas, se pôs a chorar copiosamente. Com um desespero jamais visto em alguém, o coitado tampou o pinto com as mãos em concha (naquela altura murcho e sem vida), se ajoelhou ao meu lado, pedindo pelo amor de Deus que não o colocasse no olho da rua.
Final
Caso passado, de novo à rotina normal, indaguei da criatura por que ele chamava a manequim de Adrienne e se dizia ser o Dr. Paul Flanner? Cabisbaixo, sério, vexado, abatido e choroso, Jacinto Rego Roxo explicou ininteligivelmente ambos os patronímicos. Segundo ele, pertenciam aos personagens de um romance de Nicholas Sparks “Noites de Tormenta”.
(*) do Sítio Shangri-La Aparecido Raimundo de Souza.
(**) Especialmente escrito para o site “CASA DOS CONTOS”.