Os Pés do Caio
— Parte Um —
Não é raro, muito menos anormal, as pessoas apertarem as mãos olhando nos olhos uma da outra em um primeiro encontro, você sabe. Comigo, porém, era diferente. Os pés. Era a primeira parte do corpo para onde eu olhava, a parte que mais chamava minha atenção em qualquer ser vivo do sexo masculino acima dos dezoito anos. É importante que saiba disso porque conheci o meu mais novo aluno assim, olhando para os pés brancos, compridos, largos e descalços dele. Embora tenha feito muitas coisas ruins a partir daquele dia, ações das quais me arrependo até hoje, não vou nenhum pouco negar, foi amor à primeira vista.
Fazia uns trinta graus lá fora. De camiseta polo e calça jeans, eu suava um pouco, nervoso, segurança diante de novos desafios nunca foi o meu forte. Estávamos os três em uma ampla sala de estar, meio sombria mas modestamente mobilhada. A tevê gigante de tela plana sobre um rack moderno exibia um noticiário do meio-dia qualquer. Roberto caminhou até o sofá onde o filho estava deitado, cutucou-o no ombro e falou:
— Caio, este é o Moisés — Apontou para mim. — Moisés, este é o Caio.
De súbito, o garoto — que até então ignorava a minha presença —, tirou os pés do braço do sofá, os fones de ouvido gigantes de cima de si, ergueu o tronco e ficou de pé, olhando para mim com simpatia. Não parecia ter metade dos meus quarenta anos, era tão alto quanto um jogador de vôlei, forte como um touro e dono de uma beleza cativante, difícil de reprovar.
— Então é você o cara que vai me ensinar inglês? — Ele saudou-me. Eu retribui o gesto, dizendo que sim. — Curte desafios? Não vai ser fácil. — E sorriu. Um sorriso travesso, típico de moleque.
— Nem espere que seja — respondi, exibindo meus dentes também. — Mas com prática, esforço e determinação você chega lá.
— Tomara.
— Bem — falou Roberto, checando o relógio de pulso —, agora vou deixar vocês a sós, tenho assuntos importantes a tratar. — Abraçou o filho. — Até mais tarde.
— Bom trabalho, coroa.
— Boa aula, pivete.
Dito isso, Roberto apanhou uma maleta gorda da estante, bateu em meus ombros ao passar por mim e saiu porta afora, onde um carro — que nem em sonhos eu poderia comprar —, esperava por ele.
Eu e o Roberto nos conhecíamos havia tempo. Crescemos no mesmo bairro periférico, rodeado de escolhas difíceis e privações. Fomos amigos inseparáveis durante a infância e boa parte da juventude também, até a bolsa da faculdade dele sair e a minha falha preparação acadêmica nos separar. Ele acabou virando um advogado bem-sucedido, proprietário de uma casa bonita num condomínio de luxo, viúvo eterno e pai dedicado de um adolescente lindo. Eu, por outro lado, cuidava como podia de uma mãe doente — que sempre quando eu ia vê-la na casa da minha irmã mais velha pedia netos que eu não estava nenhum pouco afim de dar —, morava em um conjugado alugado minúsculo e dava aulas em período integral numa escola de idiomas pouco conhecida. Ponto.
— E aí, Caio, preparado para o primeiro ensinamento do dia? — perguntei, as apostilhas na mão, animado.
— Com certeza — disse ele no mesmo tom. — Mas não aqui na sala. A empregada vai chegar e limpar toda a casa daqui a pouco. Vai fazer uma bagunça danada.
— Poxa. E agora?
— Tem problema se for no meu quarto? — Ele fez uma careta de dúvida. — Não é muito espaçoso muito menos arrumado, mas é o que tem pra hoje. Pode ser?
— Claro que pode. Vamos lá.
Eu o segui escada acima, os olhos voltados ao tornozelo dele em contraste com a madeira escura dos degraus, um misto de euforia erótica e paixão desmensurada crescendo em mim.
— Pronto — Caio abriu a porta do segundo e último cômodo do pequeno corredor do segundo andar. — Seja bem-vindo ao meu espaço sagrado, onde costumo ler, jogar, comer e, às vezes, dormir.
Eu soltei um risinho, enquanto analisava o interior do quarto, que não era mesmo grande mas serviria. Havia uma cama de um lado, um guarda-roupa aberto e bagunçado do outro e uma escrivaninha com computador e cadeira giratória em frente a janela.
— Pode entrar — falou ele, abrindo espaço para eu passar. — Vou pegar dois bancos na cozinha. Fica à vontade. — E sumiu de vista, puxando a porta.
Obedeci.
Depositei as apostilas sobre uma mesinha qualquer e andei pelo quarto, curioso.
Um porta-retrato na escrivaninha chamou minha atenção. A mulher de meia-idade na fotografia colorida sorria para mim, os olhos semiabertos, os cabelos soltos, feliz. Deve ser a mãe dele, pensei. Dei as costas a ela e, contente com o que encontrei largado ao chão, parei.
Uma meia branca escurecida em alguns pontos, perto do guarda-roupas, gritava por mim. Olhei para a porta ainda encostada, agachei rapidamente, estiquei a mão e...
— Agora sim podemos começar. — Caio abriu a porta, dois bancos nas mãos. Olhou para mim agachado ao lado da porta e falou preocupado: — Tudo bem aí?
— Claro, claro — respondi, um sorriso sincero no rosto, a mão esquerda enfiada no bolso, ficando de pé. — Vamos ao trabalho, então.
E demos início a primeira aula, bastante empolgados, é claro.