O ilusionista faz a um dos espectadores uma pergunta cuja resposta deve ser escondida num envelope selado, sobre o qual ele simula gestos teatrais. Num passe de mágica, o segredo transparece e ele diz ao espectador exatamente o que está escrito dentro do envelope. Depois, num sopro de mágica, o segredo desvanece. Conceito clássico, com uma diferença: é o próprio mágico que ora vê, ora não.
Dos truques do repertório, aquele era o mais simples, mas não o primeiro. O primeiro era surgir de fraque, plastron e cartola em meio à fumaça cenográfica sem que ninguém na plateia descobrisse a identidade do rapaz misterioso que chegava e partia sem uma palavra. Aventavam que fosse estrangeiro, gago, mudo; havia até quem teorizasse uma jogada publicitária. A verdade muito bem guardada tanto pela equipe como pelo empresário era que eu precisava me disfarçar de homem para poder trabalhar.
Como em todo fim de espetáculo, meu assistente espiava atrás do palco, pela abertura das pesadas cortinas de veludo vinho. Enquanto os aplausos ainda morriam, sua mão quente me puxou para um beijo, me tirou o bigode e barba postiços e me conduziu na direção do camarim. Que imagem aquela de duas figuras masculinas agarradas nos bastidores do teatro, ou pelo menos até minha cartola tombar a meio caminho, deixando meus cabelos cascatearem pelas costas e balançarem suavemente ao longo do corredor alcatifado. A portas fechadas, Afonso serviu absinto em duas taças, girou a manivela do gramofone sempre guarnecido de choros de Joaquim Callado ou Chiquinha Gonzaga e se jogou comigo na chaise verde-oliva ornada de detalhes dourados, entre almofadas de cetim adamascado, peças do figurino e objetos de cena. Regado a álcool, esse beijo não consumia lentamente como os outros; ao contrário, incendiava de assalto, explosivo, voraz.
— Tenho um truque novo só para você — falei.
— Senhoras e senhores, esta noite eu vos apresento Le Grand Picard! — anunciou com sua voz de locutor.
Era um resumo brevíssimo da frase de abertura, quando se amorteciam os bicos de gás de todas as luzes salvo as da ribalta, que lhe pintavam no rosto um dramático claro-escuro, e na plateia nada se ouvia além de leve farfalhar de leques. Minha deixa para fazer mágica no assistente. Juntei perfume feminino, rouge, batom cor de boca, unhas postiças vermelhas, brincos de pressão em madrepérola, peruca loura cacheada e vestido champagne rodado de mangas bufantes, laços e babados. Voilà, um homem vestido de mulher diante de uma mulher vestida de homem. Que linda bagunça.
— O truque foi mudar meu sexo? — Sorriu sedutora a criatura tão misturada quanto eu, alheia ao efeito daquela visão no meu corpo. Corri a mão meio centímetro acima do seu braço, cujos pêlos foram se eriçando no rastro do movimento, como se atraídos por estática. — Ou me deixar molhado sem me tocar? — Me lançou um olhar lânguido sobre a taça na mão de unhas pintadas e aproximou provocantemente a boca da minha, olhos fixos nos meus.
— Hmmm, quero ver isso.
Imediatamente ele apartou as coxas lisas e guiou minha mão para o meio, se oferecendo com despudor incomum. A sexta virava sábado e a fada verde operava seu encanto; o mundo além da janela se dissipou numa nuvem de licenciosidade e gotículas de suor. Agora você vê, agora não. Nesse ínterim feérico, cabia a mim penetrar aquela aura feminina de perfume floral e cachos louros e maquiagem e vestido e anáguas, descobrir o homem por trás e acionar o ponto mágico que o abriria por completo. Abaixo do botão das calças, velada pela braguilha semiaberta, a base do falo improvisado; mas ele não estaria olhando, não para aquela parte.
Mergulhei suavemente e sua coluna se curvou num espasmo, descolando as escápulas da chaise. Segundos depois se derretia em rendição, dócil e maleável entre as mãos que lhe seguravam a um tempo cintura e nuca, com o cuidado de não desprender a cabeleira. Por fim, enroscado no meu corpo coberto por um peignoir, pernas nuas entrelaçadas, pediu pela terceira vez que eu revelasse o truque do envelope.
— Qual o seu nome, bela assistente? — fiz a pergunta cuja resposta deveria ser selada.
Ele foi escrever à penteadeira e aproveitei o tempo que passou de costas para embeber um chumaço de algodão no líquido de um pequeno frasco sobre o aparador. Resposta entregue, passei o líquido no envelope, agora sem esconder o chumaço na palma da mão. O papel branco ficou translúcido como o peignoir. “Carmen.”
O truque era despojado, mas faltava saber o que havia no algodão. Quando perguntou, escrevi a resposta, fechei num envelope novo e lhe entreguei. Carmen imitou meu passe mágico, leu e sorriu; soprou para que o líquido evaporasse o envelope recuperou a opacidade, guardando de volta o segredo.