Eu estava olhando fixamente em silêncio para o relógio no alto da porta da espaçosa sala de espera. Poucos minutos para o meio-dia. Apenas um paciente antes da minha saída. “Dr. Isaías, só mais esse. O chame agora em nome de todos os deuses” eu implorei em pensamento.
Ajeitei meu cabelo levemente bagunçado, arrumei minhas coisas sobre minha minúscula mesa que ficava escondida pelo balcão e destravei a tela do celular com a intenção de conferir as horas outra vez. Nosso cérebro fica totalmente comprometido quando nos encontramos no meio de uma crise de ansiedade. Tal crise faz minhas mãos suarem e me força a repetir as mesmas ações uma série insuportável de vezes. “Quatro minutos” eu inevitavelmente suspirei sozinho.
- O que você disse?
Eu ergui meu olhar e nossos olhos se encontraram.
O moço sentado na última cadeira da sala me olhou curioso. Eles esboçava um sorriso brincalhão, comum em pessoas daquela idade. Parecia não ter mais que vinte e dois anos. A pele escura e brilhante, os olhos arredondados e misteriosamente negros, os ombros nus por causa da regata. Eu tentei pigarrear numa tentativa frustrada de passar maior tranquilidade, mas infelizmente meu corpo falava mais alto que minha própria voz.
- Estou contando as horas – eu confessei, enfim.
- Contando as horas?
- É. Contando as horas! – Repeti como fazemos diante dos questionamentos de uma criança.
- Para quê?
Desta vez eu o olhei com certa curiosidade. “Quanta ousadia” eu deveria ter dito. Claramente ele percebeu minha incredulidade e riu sozinho, para então falar calmamente com a segurança que aquela fase lhe garantia:
- Digo... Se você disse que estava contando as horas, alguma coisa queria dizer em seguida, caso contrário encerraria a conversa.
- Esperto! – Sussurrei alto o suficiente para que ele escutasse.
- Para quê está contando as horas?
- Coisa de adulto.
Eu estava mesmo dizendo aquilo para um garoto que aparentava ser somente alguns anos mais novo que eu?
- Vou adivinhar – ele disse logo que escutou o chamado do Doutor Isaías. De pé e em passos lentos, sua voz ainda de menino era tão charmosa quanto o caminhar. – Pela pressa e pelo horário, você não pode perder este almoço. Você arrumou o cabelo somente agora, então o outro elemento desse almoço faz você se preocupar com sua aparência. Irá se encontrar com alguém mais velho, por isso está tirando sua pulseira. – Ele passou pelo balcão e deu uma leve piscadinha. – Não se preocupe, você é gostoso. Ele deve gostar de você – ele completou sorrindo ao entrar no corredor que daria para as salas.
Eu continuei sentado olhando para as paredes alvas que formavam o corredor, totalmente incrédulo, mas com um sorriso suave no rosto. “Quanta ousadia!” eu falei em alto e bom som. O relógio enfim marcou o horário que eu tanto desejava e eu desisti de tirar a pulseira que usava.
Alguns grupos de engravatados conversavam sob a ampla marquise do prédio. Entre eles uma silhueta grande mas harmônica e já memorizada por mim estava parada de costas para a entrada de onde eu sairia. Ainda faltavam alguns metros para que eu a encontrasse quando senti meu celular vibrar. Tamanho era o nervosismo que por pouco não derrubei o celular ao sacá-lo. A ligação foi atendida quando eu tentei equilibrar o aparelho com os dedos.
- Fale rápido, Kath – eu disse em tom confidencial. É claro que ele não me escutaria, mas eu sentia a necessidade de sussurrar.
- Já encontrou o bonitão?
- Você é impossível. E não o encontrei. Ou melhor, sim.
- Maluco! – Ela me ignorou completamente. - Enumerei alguns assuntos...
- Como é? – Eu a interrompi grosseiramente. Estávamos acostumados com tal tratamento.
- Eu sei da sua capacidade de se perder no meio de uma conversa e como uma ótima amiga que sou me vi obrigado em ajudá-lo.
- Que seja – eu consenti.
- Fale do clima, isso sempre cola. Evite política. Nosso país está em caos. Nossa política está mais desastrosa que você.
- Já acabou?
- Se mostre interessado por ele. Pergunte sobre sua vida.
- Kath...
- Quando acabar o assunto aponte para a aliança e pergunte “qual é a sua?”.
- Meu Deus do céu!
- O que foi? Vai render uma reação engraçada. Eu poderia até exigir um registro desse momento.
- É sério, eu não pra quê ainda paro pra...
- Vai mesmo me dizer que você não sabe o que ele quer? – Seu tom debochado me deixava levemente irado.
- Eu não sei o que ele quer – eu disse com pressa. – Preciso dizer quantas vezes que ele é só alguém com quem ando conversando? Não há nada...
- Aham! – Ela disse ainda naquele deboche irritante. – Amo quando você se faz de inocente, pena que nem sempre cola.
- Já chega, né? Desligue ou eu desligarei na sua cara.
- Chato! – Ouvi ela resmungar antes de cortar a ligação sem se despedir.
Alguns passos, duas pessoas desviadas e suas costas ocupavam o meu campo de visão. Uma fina camisa de um tom bonito e claro de azul abraçava seu corpo e uma leve marca de suor se acomodava ao final da coluna, mostrando que o calor não dava uma trégua. Naturalmente desci meu olhar e encontrei a calça social fazendo o contorno perfeito da bunda dele. Senhor, eu estava cobiçando-o. É claro que estava! Antes que alguém visse tal cena, tratei de me juntar à ele naquela espera. Ele mantinha as mãos no bolso quando girou o corpo olhando para mim com surpresa. Os olhos moviam-se com pressa ao me analisar.
- Demorei?
- Eu também acabei de chegar – ele disse não se importando que eu soubesse daquele olhar vasculhando meu corpo, reconhecendo minha imagem. Isso me constrangia mas ao mesmo tempo me excitava. Ele estava reparando em mim, coisa que há tempos não via ninguém fazer.
- Está com fome? – E eu só reparei do quão subjetiva era minha pergunta depois de feita. Ele quase riu e eu senti minhas bochechas se avermelharem.
- Muita!
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A mesa pequena era perfeita para nós dois, mas o tamanho não media a intimidade. As mesas eram diminuídas para que o salão do restaurante pudesse comportar mais pessoas. Grupos muito numerosos conversavam alto, garçons voavam para todos os lados com as bandejas sobre os dedos fortes e pareciam despejar os pratos sobre as mesas com descuido, mas na verdade aquele tipo de ambiente fazia parte de todo restaurante barato do grande centro da cidade. Independente da classe social, nos restaurantes cheios é onde todo mundo se encontra nas poucas horas livres de almoço.
Eu terminara de cortar uma batata perfeitamente assada em alguns pedaços quando David, tão cordial, chamou minha atenção entre uma garfada e outra do seu prato ao modo típico brasileiro e somente com isso eu percebi que tinha me calado por tempo demais.
- Há quanto tempo você mora sozinho mesmo?
- Não muito tempo. Larguei o colo da mamãe aos vinte e cinco. Sendo assim são quatro anos de refeições incompletas, roupas desleixadas e sobremesa antes da comida.
Ele riu tomando um gole de sua coca-cola nitidamente muito refrescante.
- Sobremesa antes da refeição principal parece algo realmente bom.
- E é – eu reafirmei. – Tente. É libertador. E eu sei que parece discurso de gente mimada.
- Não parece – ele se apressou em discordar em um mastigar lento.
- Melhor assim.
Ele levava outra garfada até a boca e eu usava esse tempo para pensar. Se já tínhamos conversado sobre o clima, sobre cinema, juventude, envelhecimento e até política, Kath parecia estar certa sobre o última tema que deveria ser abordado. Aquela parecia ser a ocasião perfeita. Eu esperei que ele terminasse de mastigar para apontar meu talher na direção da aliança presa ao dedo da mão esquerda que descansava sobre a mesa.
- Não há muitas quebras de padrões por lá? – Eu estava fazendo uma relação entre a sobremesa e a voz da criança que eu tinha escutado na ligação.
Eu o vi suspirar e imediatamente notei que tinha me equivocado ao propor aquele assunto, mas se o “prato” estava servido, que fosse comido.
- Não muitas. – Sua voz suave e vagarosa contrastava com o caos instalado ao nosso redor. – Às vezes manter a sobremesa após a refeição parece ser a única atitude saudável naquela casa.
- Desabafo? – Minha pergunta saiu envolta em um sorriso tão suave quanto a voz dele. Eu não queria parecer um pé no saco.
- Nem de brincadeira – ele devolveu o sorriso e aquele era um dos fatais. Novamente as marcas que expressavam o tempo estavam lá, tão bonitas e significativas quando ele continuou. – Não posso te cobrir com meus desabafos e reflexões. Não no meio de um almoço tão bom. Deixe para um dia de final de bebedeira.
- Teremos esse dia, então? – Eu brinquei com a possibilidade de outro encontro. Talvez um noturno.
- Você quer?
Ele era sedutor. Claramente usava do sorriso mágico para encantar e hipnotizar.
- Aposto que seria bastante divertido. Até a parte do desabafo. Prometo manter a boca fechada para soltar algo fora de hora e totalmente inconveniente – eu assegurei enquanto tomava o último gole do meu refrigerante de guaraná, notando que ele já tinha terminado de comer há tempos.
- Teremos o dia da bebedeira. E eu não vou deixar você ficar calado. Isso deve ser bastante esquisito.
- Está dizendo que eu falo demais? Quer mesmo instalar um climão no meio da refeição? – Eu brinquei.
- Não sou nem louco – ele ergueu as mãos encenando uma rendição. Meu sorriso nesse instante era o de vitorioso.
Eu preparava para tirar a carteira quando ele me impediu deixando claro que aquele almoço era da parte dele. Eu sorri e consenti com tal gesto, é claro. De simpatia ainda ganhei um sorvete da mesma sorveteria da esquina. O sabor era o de sempre: passas ao rum. David escolheu pistache, eu duvidei que alguém pudesse gostar daquilo e ele respondeu minhas provocações com leves cutucões na costela me fazendo saltar para longe dele no meio da caminhada. Em alguns desses leve empurrões eu o senti me puxar de volta em uma velocidade impressionante e não precisei de muito tempo para entender que ele tentava me impedir de esbarrar lateralmente com alguém estacionado ali na calçada. Eu o ouvi gargalhar evitando de uma maneira quase constrangida manter contato visual com a quase vítima da minha desatenção. Por sorte o meu sorvete ainda estava inteiro. Isso poderia ser considerado um grande marco, aliás.
Talvez eu tivesse alguns minutos atrasados, mas meu celular estava enfiado no bolso e eu não ousaria e nem queria tirá-lo dali para ver em que minuto estávamos das horas. Em outro momento eu estaria com o rosto colado ao visor em uma repetição ridícula de ações, mas a forma como ele me segurava com o olhar impedia que eu pensasse em outra coisa. Novamente paramos em frente ao prédio e ele enfiou outra colherada do seu gelado na boca para então rir da careta que eu fizera. Não me descia ver alguém optar por um sabor tão estranho.
- Sobre a bebedeira... – Uma lambida nada discreta no sorvete que já estava pelo fim. - Temos outra promessa?
- Acho que sim – eu disse depois de uma lambida no meu sorvete.
- Eu te ligo? – ele quase sussurrou eliminando um centímetro da distância entre nós. Apenas senti sua mão livre tocar meu ombro em um carinho suave sobre minha camiseta fina. Os dedos quase podiam atravessar o tecido e a sensação deles em minha pele provocou-me severos arrepios.
- Vou esperar! – Eu não me preocupei em sussurrar enquanto ambos nos afastávamos caminhando meio de lado, de forma que ainda pudéssemos nos olhar. Algo como “olhe para a frente” saiu pausadamente dos lábios dele e eu tive que abandonar sua imagem para não correr o risco de causar uma cena indesejada.
Eu passei o resto do dia com o celular entre os dedos esperando por uma única ligação. Na volta para casa, ainda ousei ficar alguns minutos ali pela frente do prédio na intenção de vê-lo chegar e fingir que o acaso tinha proporcionado outro encontro, mas nada do homem. Depois do banho e do jantar, o celular novamente estava ao meu alcance. Nada. Nem ao menos uma mensagem. Cansado, forcei meu sono e fechei os olhos tentando afastar os pensamentos como sempre fazemos quando queremos e precisamos dormir logo. Mesmo tão descontrolado, às vezes eu conseguia domar meu pensamento e tomar a dianteira da situação. Não precisei me esforçar muito para esquecer que sentia o sabor daquela promessa e o sono me tomou em seus leves braços.
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J. K., está começando a ficar perigosamente hot, né? Preocupante. Será que tudo será resolvido nesse conto? Espero que os acontecimentos sejam suficiente para vocês.
Jades, sim, aliança! Ninguém merece, né? Oh saco. E parece que formamos um pequeno grupo de pessoas que andam com a cabeça nas nuvens. Vamos nos juntar para tomar um café e causar algumas cenas engraçadas. haha :D
Ru/Ruanito, tá gostando? Espero que "..." seja algo legal. Rá! :)