Na manhã do sábado meu quarto parecia carregar o cheiro do homem que estivera ali de fato uma única vez. Eu relutei em abrir meus olhos e continuei sentindo a maciez dos lençóis, imaginando como o corpo de David caía perfeitamente sobre eles. Fiz da minha coberta uma trouxa e a abracei, entrelaçando com minhas pernas o tecido, sentindo meu membro completamente acordado. Aquela fantasia gostosa acontecia em um pós-sonho onde tínhamos ido até o fim daquilo que iniciamos. Relutante, não me entreguei aos desejos. Sequer saí da cama e aproveitei a folga concedida pelo Dr. Isaías para acompanhar as séries que eu tinha iniciado nos últimos dias. Somente quando a noite se aproximava que eu tomei coragem de levantar e me arrumar para a tal festa.
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A água fria seguia a linha da minha coluna e quando encontrava a fenda quente da minha bunda também banhava o membro de David encostado ali como se aquele espaço estivesse destinado à sua posse. Os lábios emoldurados pela barba cinza corriam soltos pela linha do meu ombro, de um lado para o outro entre beijos e mordidinhas, como bicho solto em relva sob os primeiros raios solares. Havia uma quentura confortável que saía do corpo dele e me envolvia em um abraço aconchegante. “Ezra” eu o ouvi sussurrar em meu ouvido. Meu nome na boca dele adquiria outros infinitos significados.
“Ezra, meu filho!” eu escutei alguém de uma certa distância. O chamado para a realidade me assustara e a papelada que eu coletava da caixinha do correio caíram das minhas mãos.
- Seu Farias – fingi naturalidade e cumprimentei o porteiro enquanto catava tudo aquilo e colocava de volta no lugar para recolher somente na volta.
- Parece que você estava em outro mundo – ele disse tomando seu posto na portaria.
- E estava – eu concordei. – Você viu que tudo está mais caro? Nesse mundo onde eu estava meu salário baixíssimo dava pra pagar todas as contas. Veja só!
Ele soltou uma gargalhada seguida de uma tosse e imediatamente eu me preocupei. Só faltava matar alguém para completar tudo. Eu gargalhei quando vi que estava tudo bem e me despedi com um boa noite sincero.
No caminho para o ponto de ônibus não me interessei em averiguar a entrada do prédio de David, mas entendi que meu corpo queria isso. Queria muito. Não demorei muito em tomar o ônibus que eu queria e descer próximo ao Karaokê, que na verdade não ficava tão longe. A entrada nada movimentada me assustou. Parecia que nada estava acontecendo ali, mas quando entrei me informaram que aquele não era realmente um lugar super movimentado. Lá dentro também não fazia tanto barulho como eu esperava, mas só entendi depois que isso se dava à divisão das salas e ao isolamento acústico que revestia todas elas. Cada sala tinha uma cor e não era difícil de adivinhar que Kath fosse escolher a vermelha. Entrei na sala e muita gente já estava fazendo a festa com a aniversariante e seus cabelos de fogo. Fui recebido com abraços e gritaria. Alan, tão festeiro como sempre se mostrava, por pouco não me tirou do chão em outra demonstração desnecessária de força aliada à felicidade e ao álcool. Ele riu e me deu um empurrão quando eu disse que aquele encontro não pedia outro beijo. Analisei o ambiente e de todos os convidados só conhecia mais algumas duas ou três pessoas. Eu deixei o meu presente ali no canto onde outros embrulhos mais bonitos que o meu estavam empilhados e não precisei esperar muito para receber um drinque em minha mãos de um garçom sorridente. O primeiro gole quase foi interrompido por duas mãos que me levavam para o pequeno palco. A gritaria foi intensa quando “Can't Get You Out Of My Head” da Kylie Minogue começou a tocar.
- Não, não, não. Eu acabei de chegar, Kath. Nem lhe abracei ainda - eu tentava me desvencilhar de Kath que me arrastava aos pulinhos, eufórica.
- Você vai cantar, sim. Adoramos essa música. Até sabemos a coreografia, meu amor.
- Eu acabei de chegar e...
- Agora! – Ela terminou aquela conversa com um sorriso que me desmanchava.
Eu nada poderia fazer pois já estava no minúsculo palco segurando um microfone enquanto Kath me mostrava um outro cravejado de pedrinhas brilhosas. Eu deixei minha bebida numa mesinha enquanto Alan e Luiz se posicionavam atrás de nós prontos para uma performance completa. Meu riso instantaneamente parou quando a letra surgiu na tela à nossa frente. Kath tomou se adiantou porque ela já estava sob o efeito de alguns drinques, eu a segui em um canto que mais parecia uma lamentação. Algumas risadas surgiram, mas eram de puro divertimento. Aquela música exibia um trabalho corporal que eu não tinha, mas isso não me impediu de reproduzir fielmente a coreografia quando chegamos no refrão. Um “La La La La La La La La” repetido incansavelmente dava o tom de nossos passos. As gargalhas poderiam ser direcionadas aos meninos que pouco conseguiam seguir o ritmo, pois eu e Kath parecíamos nunca ter esquecido como dançar aquela música que por muito tempo, há alguns anos, embalava nossas noitadas e bebedeiras.
Depois daquela música e dos passos desastrosos todos concordamos que eu precisava de mais alguns goles para esquecer que eu tinha feito aquilo para um bando de desconhecidos.
- Você foi incrível! – Alan brincou quando passou por mim indo de encontro aos braços de uma loira muito bonita. – Eu vou ter material pra zoação por mais alguns anos.
- Eu te odeio. – Falei para Kath que ria descontroladamente.
- Confessa logo que foi divertido – ela completou.
- Mas é claro que foi – eu confessei facilmente para os cabelos avermelhados que eram os meus preferidos no mundo inteiro.
Um minuto inteiro de silêncio surgiu entre nós e sorrimos sabendo o que o outro pensava naquele instante.
- Eu não deveria ter concordado com ida dele – ele tomou a frente falando sobre David e a ida dele ao clube. – Quer dizer, não deveria nem ter tocado no seu celular.
- Eu preciso concordar – eu disse ajeitando a franja de Kath ousadamente cortada muito acima das sobrancelhas.
- Desculpa mesmo, eu não pensei que você poderia demorar tanto lá com o garoto bonitinho e David foi mais rápido demais, aquele cretino.
- Não o xingue – eu disse sorrindo. – Você sabe que não precisa pedir desculpas. Parece que não conhece nosso jeito de arrumar as coisas. Espera, não somos mais melhores amigos, é isso? – Eu dramatizei e roubei um selinho dos lábios risonhos.
- Eu já estou pedindo desculpas antecipadamente.
- Como é? – Eu tomei um gole muito grande da minha bebida e ela fez o mesmo.
- Não está mais aqui quem falou – ela falou viajando o olhar pelo ambiente evitando o meu.
- Pode ir confessando as merdas. Você só me coloca em furadas. Eu desisto!
O meu riso entregava que minha fala não era totalmente séria.
- David ligou no escritório – ela confessou. - Disse que estava com saudade, mas com vergonha de procurar você. Eu falei da minha festa e disse que ele era um convidado. O assunto festa saiu sem querer quando eu disse que você não estava me respondendo e que eu tinha medo de não vê-lo nela.
Eu suspirei pesadamente interrompendo o que ela dizia.
- Mas ele não vem. Estou certa disso. Aliás, ele parece tão confuso quanto você.
- Estamos todos! – Eu concordei mas ainda também contava com a imprevisibilidade dele, mesmo torcendo para não encontrá-lo ali.
Antes que pudéssemos emendar outro assunto vi o marido de Kath tomar posse do microfone e eu bem sabia que aquele era o grande momento. Eu a arrastei para o meio das pessoas com meu braço em volta da cintura dela depositando sobre a bochecha rosada alguns beijos carinhosos. As palavras dele mais parecia algo decorado, mas de qualquer forma foi bonito ouvi-lo falar as tantas coisas que fizeram os olhos dela se umedecerem. No meio das palmas e alguns assobios, dois tios de Kath trouxeram o bolo que imitava uma chama se elevando aos céus. Nenhuma outra coisa no mundo poderia tanto descrevê-la e aquilo arrancou tantas risadas que a cantoria logo cessou. O discurso me envolveu e por pouco eu não desabei em lágrimas. Até um “desculpa” saiu aleatoriamente no meio das palavras e eu fiz um coração com as mãos sabendo que ele odiava e achava aquilo a coisa mais cafona do mundo. A algazarra pelo primeiro pedaço de bolo fez com que eu desse alguns passos para trás. Aquele não era meu lugar, visto que a mãe e o marido da aniversariante travavam uma verdadeira guerra. Como nunca em minha vida eu pude andar de ré sem cair e causar um momento memorável. No meio do caminhar eu me virei olhando o caminho que eu poderia tomar e meus olhos flagraram uma silhueta que me fez prender a respiração.
David estava parado próximo ao balcão com ambas as mãos enfiada nos bolsos da calça. Um sorriso lindo e envergonhado surgiu em seus lábios quando nos olhamos e dali eu já mirei as poucas rugas e marquinhas ao lado dos lábios que inegavelmente fazia a minha cabeça. Ele continuou parado como quem esperava algum sinal de aceitação e eu continuei olhando tentando entender o que ainda existia entre nós dois. Sem sorrisos eu me aproximei e ele me recepcionou em um abraço que envolveu todo meu corpo. Suas mãos grandes pareciam cobrir minhas costas e o nosso respirar pedia desculpa um ao outro. Nossos corpos entediam o pedido.
- Eu não perderia o aniversário da inconveniente por nada nesse mundo – ele adiantou.
- É bom ver você – eu confessei em um sussurro.
- É incrível sentir você – ele me desconcertou inteiro.
Sem entregar o que aquilo causava em mim tomei coragem de escorregar meus dedos pelo antebraço dele e segurei sua mão com a minha. Ele observou por algum tempo o encontro de nossa pele e apertou os dedos nos meus, prendendo-me de alguma forma. Fiz o caminho até Alan fazendo-o caminhar entre as pessoas que olhavam nossas mãos com sorrisos indecifráveis. Já nos avistando ainda na aproximação Alan recebeu David com um toque no ombro que dizia que tudo estava bem. Luiz foi menos amigável, mas ainda assim foi simpático como só ele poderia ser.
Para Kath ele serviu um sorriso cheio de graça e lhe apertou em um abraço aconchegante, despejando sobre ela uma série de palavras bonitas. Ele disse que o presente ainda seria comprado. Ela nos serviu um pedaço de bolo e ficamos ali no canto entre doces mastigadas e olhares que nos entregavam demais. Eu evitava sorrir porque a presença dele me deixava desconcertado e completamente perdido.
De alguma forma um pouco da cobertura do bolo tinha ido parar em meu queixo e David limpou aquela região com a ponta do polegar, levando aquela provinha aos seus lábios.
- Não estamos bem, né? – Ele não precisou falar tão alto. A proximidade entre nós me permitia ler o movimento dos lábios dele.
- Não estamos – eu suspirei.
- Se ajuda de alguma forma, evite se culpar independente do que seja. Tudo é culpa minha.
- Não sei se quero voltar ao assunto do último encontro.
Ele imediatamente segurou o que iria falar e escorregou os dedos inacreditavelmente macios pelos meus. O carinho durou um bom tempo enquanto nosso silêncio dividia espaço com a música cantada de forma gritada pelos outros. Estávamos sentados em uma mesa e um praticamente de frente para o outro. Eu vi os dedos se aproximarem do meu rosto e eu fechei os olhos para melhor sentir o toque deles ao longo do meu queixo.
- Me adiante se eu tenho alguma chance de conseguir tirar você daqui, porque eu pretendo fazer isso.
- Tudo em mim diz que sim – eu respondi ainda de olhos fechados.
- Eu vou te tirar daqui – ele sussurrou aparentemente sorrindo.
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Kath não se mostrou contra minha saída precoce e brincou maliciosamente quando eu disse que David queria me levar para longe dali. Depois de uns bons minutos, e já consideravelmente distante do centro, ele estacionou o carro em uma casa bonita que abrigava na entrada um jardim muito bem cuidado. Assim como tinha sido praticamente todo o percurso ele saiu em silêncio sabendo que eu concordaria com tudo que ele fizesse e abriu o portão sozinho permitindo que eu ficasse dentro do carro. Como na entrada daquela residência, o quintal também era repleto de muitas plantas e no meio do jardim existia um coreto ao estilo clássico. Ele tomou minha mão outra vez e me fez subir os poucos degraus para encontrar dois sofás dispostos um de frente para o outro e nada entre eles. Sem pressa ele os juntou e a falta da parte que acomoda as costas fez com que aquilo virasse uma cama. Outra vez de frente para mim e ainda em completo silêncio ele se aproximou e seus lábios colaram no canto da minha boca. Era a forma de pedir permissão que David encontrara. Do encostar de lábios eu deixei que tudo seguisse para um beijo e não demoramos em nos permitirmos sentir o sabor da pressa do outro. Ele me puxou com carinho para o seu corpo e eu fui, totalmente sem forças. Quando o beijo teve uma pausa, alguns centímetros longe de mim ele tirou os sapatos seguindo o meu ritmo e depois a camisa que vestia. Como quem se preparava para o ato mais importante da minha vida, eu me despi lentamente e em silêncio, apenas lançando sobre David o meu olhar de desejo. Não havia nenhum jogo naquele momento. Outra vez nossos corpos entendiam o ritmo adotado e se mantinham dispostos na espera pela nudez. Quando enfim estava completamente nu eu subi de joelhos naquilo que seria nossa cama e ele me seguiu da mesma forma. Na minha frente, as mãos que foram sempre tão seguras passeavam no meu corpo de forma quase envergonhada mesmo quando eu explicitava minhas permissões. A respiração de David pesava enquanto ele me sentia. Parecia extrair do meu corpo algo que se encaixava nos espaços vazios dele. Quando ele me abraçou e as duas mãos escorregaram para o início da pele sensível da minha bunda, lacei as costas dele com meus braços e tomei dele um beijo calmo e ritmado. Mesmo eu estando afoito a calma existente entre nós fazia com que os movimentos parecessem algo comum entre nós e assim íamos explorando cada pequena parte dos nossos corpos. Outra vez quando me encontrou tão permissivo, ele me deitou com cuidado sobre o tecido dos sofás e deixou seu corpo se encaixar entre minhas coxas. Eu o segurei em mim e ainda beijando-o senti seu membro tão vivo e pulsante se alojar entre minhas nádegas e minha virilha. Eu estava esquentando-o ali embaixo enquanto pequenos suspiros surgiam de nossas bocas.
- Vai acontecer? – sussurrou.
Eu apenas assenti com a cabeça e finalmente ao abrir meus olhos eu o flagrei com o olhar tão próximo do meu que o vi como um reflexo meu. A minha visão embaçada entregava as lágrimas que eu guardava e eu vi ele me cercar com todo o carinho que existia no mundo. Ignorando todas as regras que pedem uma preliminar, ele somente umedeceu os próprios dedos com sua saliva e os guardou entre minhas nádegas, molhando toda a minha região mais íntima e consequentemente mais entregue. Um braço dele me serviu de apoio para a cabeça e o outro ele apoiou sobre o sofá, de punho fechado. Eu emoldurei o rosto dele com meus dedos quentes e continuei mirando seus olhos quando ele ameaçou me penetrar. Eu segurei meu gemido e meu piscar. Ele fazia o mesmo enquanto conseguia me abrir para enfim se alojar dentro de mim. A dor que consumia aquela região só não era maior pela vontade que eu sentia de David e vê-lo sobre meu corpo, me tomando inteiro para si, era como estar em todos os lugares do mundo sem sair de dois sofás unidos no quintal de uma casa que eu não fazia ideia de quem fosse. Ele colocou os lábios nos meus para liberar ali uma série de murmúrios ao mesmo tempo que começava a me penetrar em movimentos ritmados mas tão lentos e calmos que parecíamos ensaiar uma dança romântica. Nossas respirações eram cortadas e em cada nova estocada eu permitia que meus suspiros se tornassem gemidos. Pareciam lamentações, mas eram o mais puro e devastador tesão. Dentro do abraço dele, a única coisa em que eu conseguia pensar que o mundo poderia acabar ali e assim eu não precisaria vê-lo partir outra vez. Dentro do abraço dele eu era um homem vulnerável transformado em alguém forte e inacreditavelmente desejado. E aquela força seria necessária no fim da noite. Eu existia mais naquele momento do que em qualquer outro dia da minha vida.
Continuamos em nossa dança por longos movimentos que se tornavam mais fortes e mais rápidos, e em nenhum momento eu consegui tirar meu olhar do dele. Diferente do começo, naquele momento ele me mantinha somente ali e eu fazia questão de ficar. Por vezes eu descia minha mão pela lateral do corpo dele e acompanhava cada movimento, cada músculo tensionado, cada dobra. Eu guardava em mim a sensação de tocar sua pele arrepiada que começava a suar e memorizava com exatidão cada nota do gemido baixinho e apertado que era liberado na altura dos meus lábios.
David me deu o amor que eu nunca recebera de outro homem e dava a importância necessária ao que acontecia ali. Em nenhum momento mudamos de posição e ao som de gemidos mais grossos que quase se descontrolavam ele despejou dentro de mim a sua essência masculina em uma sequência extasiante de explosões.
Depois daquela primeira troca eu dei ao homem que me amava tudo que eu tinha. Eu chupei sua pele como se fosse a única e última, eu mordi sua carne tomando-a como alimento, eu suguei cada pequena gota do prazer escorrido dele. Sobre o corpo nu de David eu me despejei inteiro inúmeras vezes. Numa dessas entregas eu deitei sobre o corpo dele já cansado e recuperei meu respirar inspirando o cheiro que se desprendia da pele suada.
- Como nos prender nesse momento para sempre? – Ele parecia perguntar para si mesmo.
- Não proponha questões difíceis demais – eu fui sincero.
- Você queria estar comigo? A eternidade deve ser horrível – ele parecia pensativo.
Outra vez em silêncio eu me deixei tomar pela descarga de sentimentos e um lágrima morna saiu do meu olho e foi imediatamente sugada pela camada de pelos macios do peito de David. Entendi que ele sentira aquilo quando o carinho que era depositado em minhas costas subiu imediatamente para a minha nuca. Eu quis que aqueles dedos morassem em mim.
- Eu sei que algo precisa sair de você – ele sussurrou com a respiração também pesada.
Nem pela força de mil homens eu olharia para o rosto dele naquele momento. Se eu visse lágrimas desabaria por completo. Diante da proposta meu corpo inteiro clamava algo que eu entendia com clareza, mas meu coração insistia em fazer o silêncio durar. Mais forte que os mil homens eu forcei meus lábios contra aqueles pelos quentes e sussurrei, lacrimoso:
- Este é o nosso fim, David.
Os dedos que estavam enfiados em meus cabelos congelaram por alguns segundos. A pausa muito dizia sobre tudo aquilo. Era como a ruptura com uma idealização. Era a realidade tocando nossos corpos. Eu senti o peito dele inflar e quando soltou o ar de forma tremida entregou que não conseguia falar naquele momento. Eu virei completamente meu rosto para a pele dele e beijei demoradamente o meio do peitoral. Eu estava seguro ali, mas não era exatamente o lugar certo para mim.
- Há algo crescendo em nós e quando isso tomar forma virão as cobranças, as justificativas, a necessidade e a falta. A espera tem um gosto horrível e o toque dela, diferente do seu, cava buracos profundos em minha pele. Eu não quero e não posso esperar.
Minha voz era quase abafada pela pele dele e diante de tanto silêncio eu ergui meu olhar e flagrei o dele mirando o teto daquilo que deixava nosso corpo seguro da noite.
- Você me entende – eu sussurrei e depositei alguns beijos na ponta do queixo dele. – É um fim pelo nosso bem.
Ele voltou os olhos para os meus e os dedos que estava imóveis em minha nuca acordaram para um carinho muito lento. Eu ergui meu corpo com suavidade e encontrei os lábios dele esperando os meus. O toque foi demorado e eu constatei que não sentir aquele beijo provavelmente me cortaria muito mais violentamente do que fazia a espera.
Nenhuma outra palavra saiu de nossas bocas e continuamos ali em completo silêncio, apenas ouvindo ao longe o canto dos moradores da noite e o vento soprar nas plantas que cercam o jardim da casa misteriosa. Sobre o corpo de David eu adormeci com os olhos molhados. A primeira noite com aquele homem era também a última.
Quando o primeiro raio de sol tocou nossa pele eu já senti o que era estar longe de David, mas só por alguns segundos. Ele encostou a barriga nas minhas costas e me abraçou sabendo que aquele poderia ser o último abraço que me daria.
Com mais pressa do que na noite anterior nos vestimos quando ele confessou que aquela era a casa onde ele crescera e aquele quintal onde fizemos amor guardava sua feliz infância. A casa vivia fechada, mas funcionários cuidavam para que ela estivesse pronta sempre que a família precisasse, o que acontecia com frequência. Usamos uma torneira externa para lavar nossos rostos numa tentativa de eliminar o pesar que inevitavelmente carregávamos.
Eu deixei ele tocar meus dedos enquanto nos direcionávamos para o carro. O toque suave e o roçar de pele dizia tanto que nada mais precisava ser pronunciado. Verbalmente tudo tinha se findado. O percurso inteiro ele segurou minha mão quando podia e muitas vezes eu tive minha pele beijada quando ele erguia até os lábios. Eu aproveitava para ali sentir pelas últimas vezes a barba que ele mantinha tão perfeitamente aparada.
Quando ele parou em frente ao meu prédio, dali eu conseguia ver o dele ao lado do meu, mas não havia nele nenhuma preocupação. Mantive meu corpo de lado para continuar olhando-o e daquela vez ele estendeu sua mão até meu rosto e eu a beijei. O deixei sentir minhas sobrancelhas, minha pele barbeada, o contorno dos meus lábios. Beijei as juntas, as pontas dos dedos, as cotas. Ele repousou os dedos em meu queixo e eu deitei meu rosto neles para uma troca de olhares que se findou em um sorriso que me fez lembrar todas as vezes que aqueles olhos me esperaram.
- Não me esqueça, por favor.
- Eu não posso esquecer você – eu fui sincero. – Não foi para te esquecer que eu decidi interromper o que crescia. Não é sobre isso que se trata os términos.
- Não é sobre esquecer – ele repetiu em um sorriso calmo e sincero.
Eu apenas retribui o sorriso.
- Então até...
- Não. Sem um encontro prometido – eu interrompi David educadamente. – Um adeus nos serve bem.
Eu beijei novamente a palma daquela mão que amparava meu rosto e dei as costas para o primeiro homem que de alguma forma tinha dado sentido à minha existência. Havia bastante sentimento em mim. Um sentimento em formação, é verdade, mas estava no caminho para ser algo grande e doloroso demais. O meu caminhar direcionado ao portão e o barulho do carro movimentando-se de fato colocava um fim naquilo e de fins a nossa existência é feita. O nosso corpo entendi o processo dos términos, físico e emocionalmente, e nos faz entender que fomos feitos para eles. Aquele era o fim do que tínhamos em comum, mas não do que existia um do outro em nossos corpos.
“Bom dia, filho” seu Farias me surpreendeu quando tranquei o portão atrás de mim.
- Bom dia – eu sorri de volta com dificuldade.
- Será que o calor vai diminuir? Eu vi no jornal que é o fim do verão – ele completou.
- Estes são os únicos fins que a gente supera facilmente, não é?
Ele riu concordando comigo e me entregou o jornal daquele dia.
- Ciclos, meu filho – ele disse com toda a superioridade que a experiência lhe servia. - É do que nós somos feitos. Tudo são ciclos.
E continuou fazendo o seu trabalho enquanto eu tomei os lances de escada ao meu apartamento, menos pesado e ainda mais sentimental.
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Uma quantidade considerável de meses depois.
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O relógio no meu pulso me alertou do horário. Eu já estava atrasado. Quando isso mudaria? Passei em passos largos pelo quarto, peguei minha mochila no balcão da cozinha, peguei a caneca que aparava o café da cafeteira e tomei um golinho. “Perfeito” sussurrei para o vazio do corredor. Fechei a porta atrás de mim, saquei o celular enquanto caminhava para a escada e digitei o número com pressa. Pouquíssimos toques e um garoto atendeu do outro lado.
- Fala, lindona.
- Engraçadíssimo –resmunguei. - Vou demorar só um pouquinho. Se importa de falar que eu to preso no trânsito?
- Tranquilo, mas não tem porra nenhuma de trânsito, né? Mas tenta não sofrer um acidente no meio do caminho, nem matar ninguém por acidente – respondeu o assistente criativo da produtora audiovisual onde eu trabalhava como gerente de mídias sociais depois de uma despedida dolorosa com o Dr. Isaías.
- Eu vou matar você quando chegar aí.
- Faça isso, por favor – ele fingiu implorar e gargalhou para em seguida finalizar a ligação com meia dúzia de palavrões.
Eu passava correndo pela recepção quando parei abruptamente ao ver Seu Farias, assim como faz uma criança quando é flagrada pelo pai.
- Sem pressa. A vida é só uma, garoto. Se você perder essa...
- Sei lá quando serei presenteado com outra – eu completei.
- Finalmente aprendeu, hm? Bom dia pra você – e ficou rindo ao me assistir correr para fora do prédio após bradar um “Bom dia” entusiasmado.
O ponto de ônibus não ficava distante, mas ainda assim eu precisava apertar o passo enquanto teimava em tomar um gole do café que já estava quase frio. No meio daquela quase maratona tive a sorte de conseguir parar cuidadosamente quando um corpo miúdo tomou a minha frente. O pequeno ainda chocou-se contra minhas pernas e eu o segurei com a mão livre.
- Estou com pressa, estou com pressa – ele disse rapidamente quase que cantando para mim.
- É mesmo? – Eu brinquei com os cabelos marrons e bagunçados demais. – O que é tão importante?
- Eu vou vender o apartamento do papai.
Eu ri e fiz outro carinho na cabeleira mantendo-o perto de mim enquanto a mãe se aproximava em passos impressionantes de tão rápidos.
- Desculpe – ela disse quase sem fôlego segurando outro pequeno em seus braços. – Me diz que ele não conseguiu derramar sua bebida.
- Ah não conseguiu, não. Não foi dessa vez – eu disse rindo e estendi minha mão para tocar os dedinhos pequenos e delicados do garoto no colo da mulher que mantinha os olhos no outro corredor. Ele não tinha mais dois anos.
- Diga oi – ela falou para o próprio filho. – Vai Ezra, diz oi pro moço.
Eu que brincava com os dedinhos tão curiosos tive que parar e encarar a mulher, assustado.
- Ezra? – Eu repeti.
- Coisa do meu marido – ela completou com pressa. – Acho que já me acostumei.
- Então diga ao seu marido... – e fiquei esperando que ela dissesse o nome dele.
- David!
Eu sorri sozinho.
- Diga ao David que Ezra é um nome muito bonito.
Ela confirmava que passaria o recado quando teve que sair correndo pois o filho maior já estava dentro do prédio que em outro tempo atraía toda minha atenção. Eu sorri fazendo meu olhar passear pelas janelas que nada tinham mudado e lembrando que, ao pedir para não esquecê-lo, David me fazia a promessa de que também não me esqueceria.
As lembranças eram evocadas com as pequenas coisas, na pronunciação de pequenos nomes, em olhinhos castanhos e bochechas igualmente rosadas. As lembranças são evocadas nas muitas vidas que se iniciam.
Eu ainda tinha sim um encontro prometido com David, mas este se dava nas memórias.
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E acabou. Estou bem aqui arrumando as malas com os olhos molhados, porque né... A gente também sente a partida dos personagens. Espero mesmo que eu tenha agradado os leitores com este final (acho difícil haha). Aos comentadores e os escondidinhos: eu adoro todos! Como eu "ando comigo" e me conheço bem, já posso prometer que não demoro a voltar. Logo logo eu estarei aqui com mais coisas. Dedos nervosos e ansiosos! :D
Toma umas respostinhas:
Ru/Ruanito, então eu te agradei. Obaaaaaa! E aí, gostou do final? Mudaria algo? Fala logo! haha Todos os abraços. ;)
J. K., só nunca que eu brigaria com você. Eu sou um completo bunda mole. haha Pode ficar tranquilão. Olha só: tanto essa série como a do Caio são mais reais por partirem de momentos meus, por isso essa ligação mais forte com elas. Diferente do Don que surgiu aleatoriamente. Acho que é esse o meu problema com ele: não consigo adicionar casos reais à história. Com isso eu completo: você me conhece sim. Eu sou tudo isso que escrevo, só que com uma dose maior de melancolismo crônico. Ah, sobre o Gabriel, posso guardá-lo para outro momento. Serve? Prometo trazer ele pra você com todo o fogo que prometeu. Sobre o Jades: esse danado tá metendo o pé daqui e carregando vocês com ele. Dois danados. Não fiquem espertos, não... Eu vou já colar lá e fazer a maior cena. Eu salvei seu e-mail e já apaguei o comentário. Obrigado pela confiança e espero que goste do final. Socorro, que ansiedade. haha Um beijãozão! :D