Foi culpa dela. Usava calça branca. Rebolava criminosamente ao andar. Ia pela calçada à noite, em vez de se ocupar do jantar do marido, filho ou qualquer outro macho em casa. Não resistiu o suficiente. Quero dizer, ela pode ter berrado NÃO, NÃO, NÃO, chutado para todo lado e chorado de deixar marca dos olhos, nariz e boca na minha camisa, mas você sabe como são as mulheres.
Isso foi o que aleguei. Meu advogado fez o resto procurando brechas na legislação, cooptando testemunhas, comprando laudos, forjando cartas enviadas pela vítima sobre alguma irrelevância quando todos sabem que hoje em dia só se usa email, difamando-a publicamente com depoimentos fictícios e fotomontagens que o resto da má e velha máfia fez questão de replicar, para não dizer aumentar. Não ligamos para a verdade, não ligamos para a justiça. Ligamos para o que pode livrar nossa cara. A arma de fogo roubada que eu carregava na cintura era mero detalhe. O criminoso era eu, mas o crime era de outra pessoa. Faz sentido?
O juiz sabia que não. Sabia que os fatos, como de costume, não batiam com aquelas alegações hipócritas. A verdade é que sempre me senti atraído por loiras de olhos azuis. Posso ser negro, mas também sou homem, logo bom demais para me rebaixar com uma negra. Então você achava que racismo e machismo eram coisa do passado? O único ‘crime’ dela foi me dizer NÃO como eu dizia NÃO às negras, resposta insignificante na prática, porque você sabe como a banda toca. Incapaz de conquistar o troféu, roubei. Era a afirmação de que sempre precisei, a prova de que posso tanto quanto um branco. Claro que foi na marra, com cinco contra uma em local público e toda a maldade típica dos que se acham no direito, quando nosso verdadeiro direito era o de permanecer em silêncio até o tribunal.
Sei que você me entendeu até aqui. É um sujeito inteligente. Letrado. Lúcido. Vai tirar de letra o resto do relato.
Nos jornais da semana do estupro, a imprensa, esse advogado para a opinião pública, já tinha de antemão embutido na notícia todo o discurso do meu rábula de porta de cadeia. Uma ‘foca’, aprendiz de jornalista, chegou mesmo a induzir a própria mãe da cidadã a repetir feito papagaio que seu comportamento (entenda-se direito constitucional de ir e vir) um dia justificaria a selvageria da quadrilha. O tal comportamento se reduzia a passar religiosamente pela calçada do outro lado de um bar toda santa noite, a caminho do seu plantão médico num dos melhores hospitais da cidade. ‘Uma farra leve’, como definimos sem um pingo de vergonha na cara, foi a sentença que lhe demos por ladear a vadiagem dos cachaceiros pseudo-moralistas que enchiam a cara num boteco em plena terça-feira enquanto suas esposas cuidavam dos filhos e da casa. Conforme ensinado por aí, a vítima reagiu o quanto pôde e em resposta apanhou o quanto pôde. Aprendeu? Num crime violento, sempre reaja. E crime violento era a definição perfeita da nossa ‘farra leve’. Porra, aquilo nem era sexo. A mulher, trêmula de estado de choque, batia tanto os dentes que era impossível ser chupado sem temer uma castração acidental. A buceta estava tão seca e travada que doía em mim também. O delinquente mais jovem, que apelidamos de ‘nosso aprendiz’, mal conseguia levantar, de tão assustado das ordens que dávamos para ele foder e de medo de ser currado junto por se provar aquém da nossa crueldade e desprezo pelo próximo. A cada minuto cresciam as chances de ele virar um adulto ainda mais desajustado que sua origem humilde prometia. Nossos agravantes se empilhavam sem qualquer perspectiva de atenuação.
Adquiri consciência de tudo isso no fim do primeiro ano de cárcere. Com o aniversário, veio a visita inesperada de um engravatado branco feito leite, representante de um selo fonográfico chamado Corredor da Morte, habituado a negociar soltura por contrato. Em dado momento da sua proposta, percebeu minha confusão diante da palavra subterfúgio e com desdém me perguntou se eu precisava de um dicionário. Respondi NÃO e ele jogou o smartphone na minha cabeça, quase acertando meu olho.
- Hum, achei que na verdade quisesse dizer SIM...
Fiquei calado, tão intimidado quanto minha vítima no tribunal. De posse de todo tipo de informação disponível a meu respeito, o cara propôs que eu, letrista de funk, trabalhasse para eles. Perguntei se com isso livraria minha cara e ele riu. Numa das suas próximas visitas, sugeriu como quem não quer nada:
- E se você escrevesse um ‘crioulo' no final de cada verso? Como uma interjeição?
- Por que eu faria isso?
- É uma rima fácil, sabe?
Não era só uma rima fácil. Eu ia ter que vender minha própria etnia como a ‘foca’ vendia seu próprio gênero. Mas que alternativa tinha? Continuar ali?
Ele desceu o olhar agudo para o lábio que mordi em resposta e me perguntei se estaria adivinhando uma chupada de boca carnuda de negro. Então o contrato de mais de 300 páginas recheado de letras miúdas tinha outra cláusula adicional. Certo, não era como se não pudesse me acontecer coisa pior na cadeia nos próximos meses caso eu não me submetesse. O preconceito tinha virado contra o preconceituoso e meu rabo continuava tão preso quanto antes.
- Vai ganhar fama, dinheiro. Um futuro bem diferente do que teria se saísse desse lugar pelas próprias pernas...
Conformei. Em poucas semanas, todos ali aprenderam que ele era meu protetor. Me trazia cigarros, notícias de fora do cárcere e a disposição sempre guardada para toda a duração da visita íntima. A de estreia veio com o ardor e a dor da perda do cabaço. Sem nada além de uma cusparada por lubrificante, ele me penetrou de uma vez, como eu já tinha feito com várias namoradas em vingancinhas pueris de moleque contrariado; nada perto do “ponha-se no lugar dos outros” que ele tinha para me ensinar ali. Cheguei a fingir prazer numa tentativa desesperada de amansar a fera, mas minha acolhida não era o que ele tinha em mente. Braços fortes enlaçando meus sovacos, sussurrou em voz áspera no meu ouvido:
- Tenta resistir. Luta ou vou te foder até você desmaiar.
Uma mão fez um punho nos meus cabelos e a outra desferiu um tapa que atravessou meu rosto. Comecei a me contorcer sob seu peso considerável, embora fosse pequeno demais para ele. Grande demais para uma mulher, em número grande demais para uma mulher, mas pequeno demais para um homem. Consegui me desencaixar pelo segundo que suas mãos me permitiram, só para ser puxado de bruços sobre o travesseiro, que me deixou vergonhosamente empinado. Ele riu e se curvou sobre mim, suas coxas firmando as minhas. Se posicionou na entrada e mergulhou ainda mais fundo. Puxando meus cabelos até levar minha orelha à sua boca, arqueando minhas costas dolorosamente, mordeu o lóbulo da minha orelha e perguntou:
- Foi assim que você fez nela, seu animal? - Uma estocada e um tapa: flap, plaft! - Assim?... - Flap, plaft! - E... Grumpf... - Flap, plaft, plaft! - Assim?
Cada investida brutal me fazia pular e estremecer. Ensaiei uma resposta, mas minhas mentiras já não interessavam a mais ninguém. Eu estava completamente sob sua vontade e sua vontade era me punir a surra de pica, tabefe, insulto, o que fosse. Se a pele da minha bunda já ardia feito queimadura de sol, dentro nem se fala. Como minha vítima, tudo que senti foi dor e humilhação.
Depois de possuído, fui largado sujo, vexado e resignado em ser usado sempre que meu Dono resolvesse, isso para que considerava coisa do passado também a escravidão. Aconteceu de novo, de novo e de novo, cada vez não menos sofrida que primeira, todas as tardes até a do dia em que o cara arrumou coisa melhor e fiquei a ver navios, sem nenhuma das vantagens prometidas além da clareza trazida pelos próximos anos de reflexão. Por incomum que seja, aconteceu comigo. Hoje posso dizer que sou um homem melhor, edificado e crítico da discriminação em todas as suas formas. Com a sorte de mais duas décadas de vida, terei reunido sabedoria suficiente para enfrentar também a intolerância à terceira idade - velho de merda, fardo insuportável, devia morrer logo. Você sabe.