A segunda-feira chegou. E com ela, logo de manhã, duas aulinhas de matemática que poderiam matar qualquer um que não viesse para aula com o psicológico preparado. O que não acontecia comigo, claro. Eu amava matemática. Amava números. Amava quando misturavam letras com números. Mesmo meu professor sendo um saco, eu fazia de tudo pra me esforçar na matéria dele. O senhor Montgomery. Um velho baixinho, quase careca e tão azedo quanto um limão verde. Seu apelido pelos corredores da escola era Ceifador de Almas. Mas eu tinha acabado de fazer uma provinha deliciosa dele e não senti nem de longe a motivação pra esse apelido. No final das contas, eu estava me sentindo aliviado. Depois de um final de semana inteiro estudando, nada melhor que me livrar desse peso. Uma pena que eu não podia falar o mesmo do Alex. Olhei pra cadeira que ficava ao lado da minha, onde ele tinha costume de se sentar e ela estava vazia. Isso só podia significar que ele estava matando aula. Cara, como isso me deixava puto. Meu irmão não tinha compromisso com nada!
— Luke. – uma voz sussurrou atrás de mim, enquanto uma dedo cutucou meu ombro. Olhei para trás disfarçadamente e vi que era Samanta me chamando.
Samanta era minha melhor amiga desde que eu me entendia por gente. Com seus lindos cabelos ruivos e um par de olhos tão verdes quanto uma esmeralda, ela era a garota mais gentil e delicada que eu conhecia. Gostava tanto de estudar quanto eu, mas não podia ouvir falar de uma festinha que logo ficava toda animada. Sempre acabava me arrastando pra esses cantos.
— Que foi? – falei baixinho, com medo do velho Montgomery. Ele adorava implicar com os alunos que falavam durante as aulas.
— Tá todo mundo falando da festa do Lucca. Você vai?
— Sério? Não sabia que estava assim.
Tudo bem, eu sabia que os pais de Lucca eram um dos que mais tinham grana na escola. E era o seu aniversário de dezoito anos. Mas até então, eu não imaginava que ele estava organizando uma festa tão grande. Afinal de contas, ele nunca foi desse tipo de pessoa. Sempre foi do tipo que sempre fica na dele.
— Você vai, não é?
— Acho que sim. Por quê?
— Acha? Como assim acha? Você tem que ir.
Samanta não conseguia esconder seu nervosismo quando o assunto era festa. Era até engraçado demais vê-la desse jeito.
— Eu disse pro Alex que iria, então…
Fiz uma cara de quem não tinha outra saída. Acho que ela ficou satisfeita em saber que eu não tinha pra onde correr.
— Acho bom.
Droga! Pra que fui inventar de falar pro Alex que eu ia nessa porcaria de festa? Agora eu tinha que ir. Não que eu não gostasse de sair. Eu sempre curti me divertir um pouco. Mas agora eu estava no terceiro ano. Era o ano de eu me preparar para os vestibulares das faculdades. Eu não podia ficar me dando ao luxo de sair toda vez que aparecesse uma festa. E olha que toda semana aparecia uma diferente.
— Será que os dois querem dividir a conversinha com o resto da turma?
Eu engoli em seco quando ouvi aquela voz. Olhei pra frente e me deparei com o velho Montgomery me encarando furioso, com aqueles olhos velhos de defunto. Um som de risadas ecoou pela sala. Minha sorte era que ele estava de bom humor naquele dia. Caso contrário, com certeza nós teríamos levado uma advertência. Voltei a me concentrar na aula, copiando cuidadosamente as várias fórmulas trigonométricas que estavam escritas no quadro.
Não demorou muito até o sinal soar pelos corredores da escola, avisando que a última aula do dia tinha chegado ao fim. Até que enfim! Minha barriga já estava roncando de fome e eu mal podia esperar para chegar em casa e sentir o aroma saboroso da comida que nossa empregada, Aurora, fazia.
— Luke, se quiser pode ir sem mim. – Samanta falou assim que saímos da sala. – Tenho que passar na biblioteca e pegar alguns livros.
— Beleza. – acenei pra ela. – Mais tarde a gente se fala.
Samanta sorriu pra mim e desapareceu pela multidão de alunos que invadia os corredores, rumo à saída da escola. Eu segui meu caminho de costume, já imaginando a quantidade de cosias que eu tinha pra estudar assim que chegasse em casa. O ano podia estar só começando, mas Deus ajuda quem cedo madruga. Mas, na verdade, eu ainda nem sabia que faculdade queria fazer. Nem preciso comentar sobre a pressão que existe em cima de mim pra eu fazer medicina. Afinal, ter pais médico tem suas desvantagens. Mas eu estava determinado a fazer o que eu queria e ponto final.
Segui atravessando o pátio principal, perdido nos meus pensamentos, quando senti uma mão me puxando com força. Me assustei um pouco, mas logo percebi aquele olhos azuis me encarando.
— Não cansa de matar aula? Você perdeu uma prova hoje, sabia?
— Eu te disse ontem, maninho. – Alex me olhava com aquele sorrisinho nos lábios. – Eu já tava fodido mesmo. Não adiantava nada fazer essa merda dessa prova.
— Vou nem falar nada.
Eu me irritava quando Alex se comportava daquela maneira. Odiava ver a forma como ele não se interessava pelas coisas. Me deixava preocupado com ele. Ver meu irmão jogando um futuro inteiro na lata do lixo. Era uma sensação horrível. Mas eu já tava cansando de falar sobre isso. Já tinha perdido as contas de quantas vezes tentei convencê-lo a se esforçar mais. Mas ele sempre olhava pra mim com aquela cara sacana dele e me pedia pra não me preocupar. O que mais eu podia fazer?
— E que tal um cineminha mais tarde?
— Tá louco, Alex? Eu tenho que estudar.
— Que isso, Luke! O ano mal começou.
— É melhor você nem tentar.
E falando isso, Alex ficou quieto. Até achei estranho ele não ter insistido. Afinal, se não fosse chato, não era o Alex. Nós continuamos andando em direção ao portão de saída. O céu estava em um azul incrível àquela manhã. Não havia nem um sinal de nuvens por perto e um vento quente soprava em nossos rostos. Assim era o verão naquela cidade. Era o mesmo que pular dentro de uma panela em chamas. Assim que saímos da escola, Alex e eu atravessamos até o outro lado da rua, onde o carro do meu pai estava parado, estacionado ao lado do meio-fio. Como minha mãe e ele quase sempre iam juntos para o hospital, geralmente eles usavam o carro dela. Dessa forma, o carro do meu pai ficava a maior parte do tempo com o Alex, já que ele era o único de nós dois que sabia dirigir.
— Vê se não demora igual na semana passada. – eu falei, assim que entramos no carro. – Eu to morrendo de fome.
— Sério? – Alex sorriu pra mim daquele jeito que eu odiava. – Então acho que você vai ter que comer seus dedos.
Meu irmão colocou as mãos por detrás da cabeça e esticou os pés, relaxado, como se estivesse com todo o tempo do mundo. Eu sabia que a história do cinema não sairia barata. Que ódio!
— Tá me zoando, não é? – eu perguntei, fuzilando ele com os olhos.
— Claro que não. É só dizer que vai ao cinema comigo e a gente vai pra casa.
Sabem aquela expressão sarcástica no rosto de alguém que deixa a gente explodindo por dentro? Era exatamente isso que eu sentia quando meu irmão fazia esse tipo de coisa comigo. Alex sabia como me irritar. Eu nunca fui do tipo de pessoa descontrolada ou estressada. Raramente alguém conseguia me tirar do sério. Mas se havia uma pessoa no mundo capaz, esse alguém era ele. Eu estava prestes a dizer que não ia cair nesse joguinho dele, quando senti meu estômago roncar muito alto.
— Nossa! Acho que alguém aqui está com fome. – ele riu, debochado. Meu rosto queimou de raiva. – Acho que a Aurora falou comigo alguma coisa sobre fazer uma lasanha hoje.
Pronto. Faltou pouco minha barriga relinchar. Eu simplesmente adorava lasanha. A lasanha que a Aurora fazia então, nem se fala. Era de ficar lambendo os dedos depois do almoço. Não dava pra resistir a uma tentação daquela.
— Tá bom, idiota. Eu vou com você. – falei a contragosto, fazendo um bico emburrado.
— Ah, esse é o meu maninho.
Alex deixou escapar aquela risada contagiante que só ele sabia dar. Isso sempre me animava, ver meu irmão feliz daquele jeito. Por isso eu tive que me conter pra não rir também. Não queria que ele soubesse que eu era tão fácil assim. Continuei fazendo bico durante todo o percusso até nossa casa. Chegando lá, assim que entrei pela porta da sala, aquele cheiro forte de massa italiana entrou pelo meu nariz e faltou pouco meu estômago pular pela minha garganta.
— Viu? Eu falei que ia ter lasanha.
Eu odiava quando o Alex tinha razão. Ele simplesmente ficava insuportável. Como de costume, nós deixamos nossas mochilas em cima do sofá da sala. Alex logo arrancou fora o par de tênis, andando só de meia pelo chão de madeira. Depois fomos para a cozinha, onde Aurora terminava de colocar os pratos na mesa.
— Meninos, como vocês demoraram! Já estava preocupada.
Aurora era uma mulher magnífica. Ela já devia estar perto da casa dos sessenta anos, mas, mesmo assim, seu espírito era de uma moça. Com seus cabelos castanhos na altura do pescoço, com várias mechas brancas, e os olhos também castanhos, ela transbordava felicidade por onde passava. Ela era a nossa única companhia nas tardes em que nossos pais ficavam no hospital. Trabalhava em nossa casa desde que meu irmão e eu usávamos fraldas ainda.
— Culpa do patolino que ficou me enrolando. – Alex disse, enquanto enchia seu prato com uma colher carregada de lasanha.
— Eu?! – falei incrédulo. Ele gostava mesmo de me irritar. E ainda me chamou de patolino, um apelido que eu odiava.
— Garotos, não discutam na hora do almoço.
Aurora falou e a gente logo ficou quieto. Sorte do Alex que eu estava com muita fome e estava sem a menor vontade de discutir. Depois de comer até minha barriga ficar a ponto de explodir, eu subi pra o meu quarto, onde me joguei na minha cama e fiquei deitado por lá a tarde toda, fazendo a digestão do almoço. Eu até cogitei tentar pegar um livro pra estudar, mas foi impossível. Estava cheio demais. E assim a tarde passou num piscar de olhos. Quando eu me dei conta, já estava quase na hora da maldita sessão no cinema que Alex tanto me importunou pra ir.
— Maninho, eu detesto te apressar. Mas acho bom você levantar logo dessa cama.
Eu bufei. Alex só era pontual daquele jeito quando eram compromissos que interessavam a ele. Mas eu não enrolei por muito mais tempo. A muito custo consegui me levantar daquele leito e logo fui tomar um banho. Não demorou mais que alguns minutos até nós estarmos prontos. Meu irmão, como sempre, exagerava na hora de se vestir. Ele tinha que se arrumar impecavelmente e se entupir de perfume só pra dar uma simples volta no shopping. Por fim, pegamos o carro do nosso pai e fomos. Assim que chegamos ao shopping, fomos direto para a ala do cinema. Por ser começo de semana, estava praticamente deserto.
— E aí? O que vai ser? – ele me perguntou, assim que paramos na frente de um painel enorme com vários filmes.
— Sei lá, por mim pode ser qualquer coisa. – dei com os ombros, fingindo que não estava interessado. Eu ainda estava irritado por ter sido praticamente arrastado até ali. Ele só sorriu pra mim. Sabia que eu estava de pirraça.
— Hum… e que tal um filminho de terror?
— Terror? – eu engoli em seco. Podem me julgar, mas eu morria de medo de filme de terror.
— Ah, é… – ele sorriu, sarcástico. – Esqueci que você tem medo. A gente pode ver um desenho então.
— O quê? Claro que não! – eu respondi, sentindo meu rosto ficar vermelho. Eu não podia deixar o Alex saber que eu ainda tinha medo de filme de terror.
— Então acho que vai ser isso.
Ele então se virou pra moça que estava no caixa e pediu dois ingressos pra um filme de terror qualquer que estava em cartaz. Eu tremi até a base da espinha. Mas respirei fundo e me mantive calmo. Depois de pagar os ingressos, fomos andando até chegarmos a sala que seria nossa sessão. A sala era bem grande. Já estava completamente escura e o ar-condicionado estava ligado no máximo, apesar de não ter quase ninguém por ali. Pra minha sorte o filme não tinha começado ainda. Ou seja, mais tempo pra eu preparar meu emocional. Nós nos sentamos em umas cadeiras bem lá no finalzinho da sala, no lugar onde os casais gostam de ir pra se pegarem. Alex estava com um baldão imenso de pipoca nas mãos, enquanto eu estava carregando os copos de refrigerante.
— Ouvi dizer que esse é melhor filme de terror do ano. – ele disse olhando pra mim com aquelas olhos maléficos.
— Que bom…
Tentei parecer indiferente, mas, no fundo, estava me tremendo todo.
— Alex? Você por aqui?
Uma voz feminina disse por trás da gente. Nós olhamos para trás imediatamente e nos deparamos com Sophia, uma garota que estudava em nossa turma. Sophia era aquele tipo de menina que todo cara gostaria de pegar. Inteligente, bonita e provocante. Seus cabelos loiros encantavam qualquer um. Os olhos esverdeados então, nem se fala. Nunca fui com a cara dela. E acho que nem ela ia com a minha.
— Sophia! – Alex logo abriu o sorrisão pra ela. E não soube explicar o porquê, mas aquilo me irritou. Era bem típico do meu irmão dar corda pra qualquer rabo de saia que aparecesse por perto, mesmo estando em minha companhia.
— Alex! – eu puxei a manga da camisa dele quando percebi que os dois estavam começando a se empolgar na conversa. Já começava a sentir meu sangue correr mais rápido. – O filme já vai começar.
Ele então se virou pra frente e deu um sorriso meio sem graça pra mim quando percebeu que eu estava irritado. Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, Sophia se levantou da sua cadeira e veio até o nosso lado. Faltou pouco eu explodir quando vi aquela periguete colocando as mãos nos ombros do Alex.
— Alex, eu esqueci de comprar a pipoca e o refrigerante. – ela disse com aquela carinha de meiga e safada ao mesmo tempo, que derrete qualquer garoto. – Dá pra você me ajudar a trazer?
Eu fuzilei meu irmão com os olhos, mas pareceu que não surtiu nenhum tipo de efeito. Sem dizer mais nada, ele se levantou da cadeira e desceu com ela pelas escadas abaixo. Minha cabeça estava pipocando e eu não fazia a menor ideia do motivo. Eu nunca senti aquele tipo de sensação perto do Alex. Por que isso estava acontecendo logo agora? Eu balancei a cabeça, tentando mandar pra longe aqueles tipos de pensamentos. Mais alguns segundos se passaram e o filme logo começou. Eu gelei. Estava praticamente sozinho dentro daquela sala enorme, fria e escura. Os minutos foram se passando e nada do Alex voltar. O que ele estava fazendo? Não era possível demorar tanto tempo só pra comprar umas pipocas! Foi só quando apareceu no filme um corpo de uma boneca possuída por um espírito que eu resolvi que não podia ficar mais ali sozinho. Desci as escadas e corri em busca do meu irmão.
Olhei em praticamente todos os cantos daquele cinema e nada do Alex. Estava ficando preocupado. Tentei ligar para o seu celular, mas a ligação só caía na caixa postal. Ele simplesmente tinha desaparecido, sem mais nem menos. Conferi no relógio e já eram quase dez da noite. Aí mesmo que fiquei nervoso. Ele não podia ter ido embora e me deixado sozinho ali. Alex era irresponsável, certo. Mas não chegava àquele ponto. Não comigo. Fiquei mais alguns minutos aguardando e nada. Estava prestes a sair dali e dar uma volta pelo shopping a sua procura, quando senti minha bexiga respondendo a todo o refrigerante que eu tinha mandado pra dentro. Resolvi então que era melhor passar no banheiro antes de sair dali. Caminhei um tanto apressado até o banheiro masculino, ficando mais nervoso a cada minuto que se passava. Será que ele tinha passado mal? E se tivesse ido pro hospital?! Essas perguntas não paravam de rondar minha cabeça. E a porcaria do seu celular caindo na caixa postal não ajudava nem um pouco. No entanto, quando eu abri a porta do banheiro, a cena que veio diante dos meus olhos respondeu todas as perguntas que tinham vindo a minha cabeça até agora. Eu simplesmente vi Alex agarrado com Sophia, aos beijos e amassos. No mesmo instante meu sangue ferveu dentro das minhas veias e eu senti uma raiva que nunca tinha experimentado antes. Droga! O que diabos estava acontecendo comigo?
*** Olá, pessoal da Casa dos Contos. Primeiramente, quero pedir desculpas pela demora em postar o capítulo. Foi uma semana realmente complicada pra mim. Em segundo, quero agradecer a todos que comentaram e votaram no conto. Espero que continuem comentando. Enfim, só isso. Até o próximo capítulo!