Encontro Prometido. #7

Um conto erótico de Ezra.
Categoria: Homossexual
Contém 2120 palavras
Data: 16/02/2017 15:55:17

Inevitavelmente toda vez que eu olhava meus próprios dedos conseguia sentir o toque gelado dos dedos de David no final da última noite em que tínhamos nos encontrado. Eu quase conseguia projetar a imagem dele sentado no outro lado da mesa: seu braço pesado se estendia até que sua mão alcançasse a minha e carinhosamente seus dedos brincassem com os meus. Eu precisava piscar e quando isso fazia, tal projeção desaparecia me fazendo entender que aquilo era uma repetição causada pela minha capacidade imaginativa. Eu balancei minha cabeça na intenção de afastar tais projeções e cocei minha nuca, totalmente contrariado. Naquele dia meu cabelo, que não chegava a medir cinco dedos de comprimento, parecia ainda mais bagunçado. A tarde já se iniciava, mas tenho certeza que eu exibia no rosto as típicas marcas de quem teve uma péssima noite.

Naquela quarta, por um milagre atribuído à sei lá quem, os meninos tinham decidido que se juntariam ao nosso almoço. Kath fez questão que eles se deslocassem ao nosso encontro, uma vez que nós dois trabalhávamos razoavelmente perto um do outro. Já tínhamos terminado nosso almoço e teoricamente conversávamos. Teoricamente porque eu constantemente fugia dali em pensamento. Às vezes propositalmente, às vezes não. Hora ou outra alguém perceberia minhas fugas.

Kath sentou corretamente na cadeira quando Alan e Luiz se comprometeram em um assunto onde somente eles dois estavam interessados. Ela brincou com a ponta da minha orelha antes de beliscar minha nuca.

- Cansado?

- E com sono – eu completei ainda inexpressivo.

- Eu falei. Deveria virar guia de montanhas. É muito mais excitante do que permanecer por horas atrás de um balcão.

- É o que tem pra hoje – eu retruquei em um sorriso leve. – Aliás, de onde você tirou isso de montanha? Nunca a vi falar disso. Louca!

Ela gargalhou e brincou com um arranjo modesto que decorava a mesa. Era uma mistura nada bonita de flores e raminhos de um verde claro. Nada combinava entre si e era engraçado ver Kath reparar nisso com a testa franzida. “Que horror” eu a ouvi falar sozinha.

- Nunca falei? Tem certeza? Pois estou falando agora. Você deveria virar guia de montanhas. – Era raro vê-la admitir algo e para isso apenas ri, deixando-a sem resposta.

- A última vez que saí para uma caminhada longa senti dores por dias. Lembra quando entrei naquela academia? Eu virei a piada do momento. Sem enumerar os muitos acidentes que eu poderia causar. Definitivamente, não, eu não deveria virar guia de montanhas.

O garçom enfim trouxe o troco de nossa conta e nosso corpo pedia por mais alguns minutos ali na mesa. Alan e Luiz ainda estavam metidos naquela conversa particular, então eu aproveitaria para esticar as pernas, sentando desleixadamente da pior forma possível.

- Ele nunca mais ligou?

A voz de Kath interrompeu aqueles sagrados minutos.

- Kath, jura que você quer falar disso novamente? – Eu falava sem olhar diretamente para o rosto dela. Meu tom de voz não era rude, mas também não era dos mais simpáticos.

- Só estou perguntando – ela se defendeu em um riso gostoso que me fazia entregar os pontos.

- Eu disse que já fazem duas semanas que ele não aparece.

- Esquisito, não é? – Kath disse pensativa.

- Não acho. Ele era casado, talvez só tenha se encantado por mim, viu o quanto era errado continuar naquilo e sumiu sem dar satisfações. Não é isso o que as pessoas fazem hoje em dia? Eu adianto: é!

- Mas você disse que ele sequer mostrou qualquer interesse sexual. Infiéis apenas estimam o prazer carnal.

Quando falava, Kath tratava de tornar aquilo um segredo, falando baixinho, quase sussurrando. Ela poderia ser doida e invasiva, um tanto inconveniente também, mas sabia quando um assunto precisava ficar apenas entre nós dois. Ainda bem.

- Talvez ele não estivesse tão interessado na carne. Penso que ele precisava de alguém, independente de quem fosse. Aliás, não só penso como sinto isso.

- Então você quer dizer que não havia tensão sexual? Eu vi ele quase te comer com os olhos, Ez – ela cuspiu sua incredulidade.

- Havia sim, não posso negar. Principalmente da minha parte – e eu ouvi ela rir. – Mas é isso. Ele sumiu, não o procurarei e finalizamos com um ponto final, pode ser?

- É pra isso que servem os pontos finais. Mas de pensar que você poderia acabar com um casamento... – Ela fingiu pensar alto demais em tom de provocação.

- Pare. Agora!

- O que você tem contra a tradicional família brasileira? – Ela ainda assumia aquele papel. Uma gargalhada estava presa em seus lábios.

- Puta merda, eu to ferrado – bradei aos céus.

Meu lamento fez Kath rir e com uma gargalhada exagerada ela acordou os meninos para o fato de que tínhamos permanecido tempo demais ali. Cada um, ao seu modo, disse que ligaria para marcar alguma coisa e não nos demoramos. Logo eles caminhavam em uma direção à mais próxima estação de metrô e Kath tentava me convencer de que o mundo acabaria se eu não dividisse um copinho do sorvete que tanto adorávamos. Claro que o próprio sorvete era muito mais convincente que os argumentos eloquentes dela.

O resto daquele dia seguiu o padrão de todos os outros dias. Clínica, trânsito, casa. Banho, comida, cama.

.

Mais tarde ainda naquele mesmo dia tateei o banquinho ao lado da cama procurando pelo meu celular e quando o achei vi que faltavam poucos minutos para a meia-noite. O filme que eu assistia estava muito perto do fim e a tensão provocada impedia que eu conseguisse dormir sem terminar de vê-lo mesmo estando com um sono considerável.

A polícia perseguia um grupo de homens encapuzados e então uma corrida frenética se iniciava na tela. Ao mesmo tempo que dois carros se chocaram violentamente um contra o outro, ouvi batidas levíssimas na porta que me fizeram saltar da cama subitamente sentindo minha alma ameaçar sair do meu corpo. O filme não era de terror, mas no meio da noite qualquer coisa é literalmente qualquer coisa.

Vestindo apenas uma bermuda de moletom, atravessei a cozinha minúscula e abri a porta sem pensar muito. Se aquela pessoa tinha passado pela portaria, certamente era algum conhecido. Isso já tinha acontecido algumas vezes, como quando Kath brigou com o marido e ela precisou de um ombro por alguns minutos até receber uma ligação do mesmo dizendo que precisava dela ao lado dele, ou quando Luiz estava bêbado demais e não poderia ir para a casa que divide com sua mãe. Com a cabeça para fora, vi que um dos lados do corredor estava vazio, mas ao olhar para o outro lado flagrei o corpo de alguém conhecido tampar minha visão. De olhos fechados, com a testa sendo pressionada contra a parede e completamente mudo, o som da respiração pesada de David preenchia todo o espaço ao nosso redor. Eu encostei meu ombro na lateral da porta e continuei olhando-o, esperando por algo que explicasse a aparição dele ali.

Ele só não estava completamente parado porque algo comprometia seu equilíbrio, fazendo-o constantemente ter que voltar para a posição em que queria estar. Ainda de olhos fechados ele mantinha as mãos dentro dos bolsos da calça, mas eu conseguia ver e sentir a agonia que fazia ele movimentar os dedos, provocando saliências no tecido. Inspirei bem o ar do ambiente e eu estava certo: ele estava bêbado. Se não embriagado, ao menos tinha bebido alguma coisa.

- Daqui a pouco o silêncio vai ser bastante constrangedor. – Eu media a altura da minha voz. Não queria que ela ecoasse pelo corredor inteiro.

- Estou esperando você me cumprimentar – ele respondeu ainda na posição em que o encontrei.

Eu somente o respondi depois do meu riso que fizera ele sorrir suavemente, admitindo com isso que aquela era uma situação bastante improvável.

- Que surpresa! Como você está, David? – Eu atuei perfeitamente. – Você envelheceu? Espere, eu acho que envelheceu sim. Há quanto tempo não nos vemos?

- Não sei se consigo rir das suas brincadeiras, eu não estou nada bem. – A voz mesmo arrastada e quase embargada ainda era encantadora. Merda!

- Nada bem?

- Aham, nada bem – ele reafirmou.

Eu saí da minha posição e minha movimentação fez ele abrir os olhos para me observar de canto. Exatamente ao lado dele, eu sentei no chão e encostei minhas costas na parede. Imediatamente ele fez o mesmo e observava a parede à nossa frente, assim como eu fazia.

- O que foi? – Eu praticamente sussurrei.

- Eu não sei como resolver isso.

O tom confessional da voz dele fazia meu estômago revirar.

- Se você está em minha porta é porque posso ajudar a resolver o problema.

- Você é parte dele. – Disse-me com pressa. Eu suspirei pesadamente.

- Eu sei do que você está falando e não sei se quero ser parte desse problema.

- É tão inevitável... – ele falou baixinho, fazendo as palavras saírem dos lábios quase apertados. – Eu vivo coisas tão monótonas e superficiais. Tudo está por um fio do desmoronamento. E aí você invadiu aquele táxi com a naturalidade de quem pede para segurar um elevador. Me fez olhar para o lado, quando eu sempre estou olhando fixamente para um ponto à minha frente. Tudo em você é tão... Jovem, bonito e sedutor.

Ele falava vagarosamente e era difícil segurar cada uma daquelas palavras. Completamente sóbrio, talvez ele jamais falaria aquilo. Não naquele ponto do nosso envolvimento. Em vez de mirar a parede eu mantinha meus olhos presos aos movimentos que o maxilar dele fazia quando falava e me encantava com o quanto as bochechas estava avermelhadas pelo álcool e eram bonitas emolduradas pela barba grisalha e muito bem aparada.

- Não quero pedir que entenda a situação, até porque nem eu mesmo consigo entender, ou que seja conivente com isso. Mas entenda que eu preciso ser sincero com nós dois. – Eu deixei que ele continuasse falando, mas logo eu deu uma pausa para si mesmo. – Meu corpo me trouxe aqui e diante de você eu não consigo pensar em outra coisa senão admitir que eu estou inteiramente interessado em você.

Me igualando ao estado impulsivo em que David se encontrava por consequência do álcool que tinha ingerido, inclinei meu tronco na direção dele e no exato momento em que ele me olhou eu deixei que nossos lábios se encontrassem, muito antes até que nossos olhares.

Ele permitiu que aquilo se firmasse real, mas nada além de um encostar de bocas aconteceu. Eu o senti gelado e trêmulo, como era nossa ansiedade naquele momento. Eu afastei meu rosto e consequentemente meus lábios no exato momento em que ele erguia as mãos para tocar minha pele. Ele não chegou a concretizar o carinho e eu voltei meu olhar para a parede conseguindo ainda sentir a sensação de poder beijá-lo. Era maravilhoso como um banho gelado em dia quente, ou como uma colherada de doce depois de algo muito salgado. Deveria ser tão bom quanto sair de casa e não esquecer as coisas por aí, ou consegui andar perfeitamente sobre os dois pés sem tropeçar até no vento.

- Eu sei do que você está falando porque eu também estou interessado em você. Mais do que deveria e queria. Mas se eu o quero, que seja sóbrio, não acha? – Murmurei minha decisão, enfim.

- Você...

- Parece errado e é, mas se eu me negar isso pode ser insuportável o peso do arrependimento – eu completei ainda mais decidido.

Ele sorriu tão suave ali em seu canto e eu continuei cercando-o com meu olhar, adorando aquele sorriso que me pertencia ao menos naquele instante.

- O que foi?

- Pode alguém estar feliz num cenário que tende ao desastre?

- Deve existir um nome para essa síndrome – eu o respondi em outro sorriso igualmente suave. – Agora saia daqui antes que percamos o controle de nossas ações. E eu acho que não queremos isso.

Antes de vê-lo partir e ainda sentados, ele novamente arrastou seus dedos ansiosos na direção dos meus que estavam pousados sobre minha coxa mais próxima dele e os acariciou provocando arrepios difíceis de controlar. Ele segurou minha mão por uns segundos e eu pude senti-lo finalmente mais quente. Talvez estivesse passando o efeito do álcool. Talvez fosse minha presença e encontro de nossas peles. O fiz sair imediatamente e vi ele atravessar o corredor em passos lentos e vacilantes. Ele ainda recuou e talvez tenha pensando em voltar, mas ria quando encontrava meu olhar mandando-o ir embora. Quando, aos risos, ameacei fechar a porta, ele sumiu no final do corredor lançando até mim um sorriso que eu certamente não conseguirei esquecer.

Aquela seria outra noite sem dormir, eu já previa. Mas diante de uma previsão tão fácil, outras se mostraram um bicho de sete cabeças. Ou quatorze, talvez. “No que eu estou me metendo?” lembro-me de perguntar às paredes incontáveis vezes. A vida não poderia mesmo me preparar algo menos complicado de lidar?

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