A gente nunca sabe todas as surpresas que a vida nos reserva. Justamente isso faz a vida ser tão emocionante.
Naquela tarde, após o expediente, fui correndo para o banco. Já fazia um mês que eu estava trabalhando, e a ansiedade para colocar as mãos na grana me consumia.
Entrei na fila do caixa eletrônico, e aguardei chegar minha vez. Deixei na conta, apenas, o suficiente para pagar a taxa de manutenção do mês.
Assim que entrei no carro para seguir viagem, liguei para o Danilo.
***
- fala primo. - disse ele com a voz cansada.
- ta batendo punheta é? - perguntei ligando o motor do carro.
- tava. - disse ele sorrindo.
- isso ainda vai te matar um dia mano. - sorri.
- culpa é tua que não quer mais ceder pra mim.
- uma pica que é culpa minha.
Danilo sorriu.
- brother, acabei de receber. Ta afim de sair pra tomar uma?
- pode ser. Eu to sussa mesmo.
- beleza. Vou combinar com os caras e daqui a pouco eu te retorno.
- tranquilo.
- falo primo.
- falo.
***
Fiz algumas outras ligações, e combinei com meus amigos de sair pra um barzinho qualquer.
Assim que cheguei ao apartamento, estacionei o carro do meu pai, e peguei o elevador.
- segura pra mim por favor. - alguém gritou.
Fui gentil, e segurei o elevador para um rapaz, que carregava muitas caixas.
- qual andar? - perguntei.
- o quinto. - disse o homem enxugando o suor do rosto com sua própria camiseta.
- to indo pra esse mesmo. - falei apertando o botão.
Pelo espelho do elevador, eu podia observar aquele cara.
Puta que pariu. Meu pau deu sinal na mesma hora.
O cara era negro, alto, seu corpo era bem trabalhado, olhos negros profundos, cavanhaque, e lábios carnudos na medida certa. Parecia ator porno gringo.
A porta do elevador abriu, e o homem fez força para apanhar suas caixas.
- quer ajuda amigo? - falei simpático.
- se você poder me ajudar, eu agradeço.
Peguei algumas caixas e ajudei o rapaz.
Chegando ao seu apartamento, ele colocou as caixas no chão, e abriu a porta.
Bagunça era o que definia a cena que eu acabara de presenciar.
- você é novo aqui né!? - perguntei.
- acabei de me mudar. Entra aí. - disse ele.
- percebi. - falei colocando as caixas no chão do apartamento.
- eu passei em um concurso, e vim tomar posse.
- porra, que bacana cara. Você é de onde?
- Rondônia.
- veio sozinho?
- sim. Família ficou toda lá.
- aí que é foda né!? Ter que ficar longe da família é delicado.
- muito cara, mas assim que der eu vou visita-los, ou então trago eles pra cá.
- ta certo. Eu moro no trinta e dois mano, precisando de alguma coisa é só chegar lá.
- tranquilo man, me ajudou demais. Só não te ofereço algo pra beber, porque nem geladeira tenho ainda.
- relaxa. - sorri.
Se ele me oferece sexo em troca da ajuda, já era de muita valia.
Será que gostar de um cara, e sentir tesão por outro é errado?
Entrando no apartamento, fui direto para o meu quarto, liguei para o Danilo confirmando o horário que iriamos sair, e depois entrei no banho.
- vai sair filho? - disse minha mãe ao me ver arrumado.
- vou dar uma volta mãe. - respondi.
- cuidado viu!?
- pode deixar. - disse dando um beijo em sua testa. - cadê o pai?
- ta no quarto.
- vou la falar com ele.
Minha mãe retornou à cozinha, e eu fui ao quarto ter com meu pai.
- posso entrar pai? - falei batendo na porta.
- claro filho. Entre.
- vai dormir cedo? - falei sentando ao seu lado na cama.
- tomei um remédio para dor de cabeça, e vou cochilar um pouco pra fazer efeito.
- algo grave?
- não. Só o cansaço do dia a dia.
- eu também sinto as vezes. - falei tirando a carteira do bolso.
- é o peso da responsabilidade. - disse meu pai.
- acho que sim, mas vale a pena. Hoje recebi meu primeiro salário. - falei sorrindo.
- por isso ta com essa cara de preá no cio? - disse ele rindo.
- é por isso mesmo. - sorri. - Essa parte aqui é pra ajudar nas despesas. - falei colocando um bolo nas mãos dele.
- negativo. É seu. - disse ele recusando.
- faço questão pai. - insisti.
- não vou aceitar. Você trabalhou e merece essa recompensa.
Levantei e fui ate o roupeiro. Abri a gaveta onde ele guardava suas gravatas, e coloquei o dinheiro ali dentro.
- Gabriel. Não preciso desse dinheiro meu filho. Fique e gaste com suas necessidades.
- assunto encerrado pai. O dinheiro é seu. Eu vou dar uma saída, mas volto logo.
Aquela noite, eu me encontrei com os amigos da faculdade para passar o tempo, mas a emoção que eu comentei no inicio ainda estava por vir.
Na tarde de sábado, eu acabara de treinar, e após me despedir do Beto, peguei o carro do meu pai, e fui pra casa.
Liguei o som do veículo, e ia com pensamentos distantes.
Um bip e uma mensagem no celular.
***
- vamos fazer uma social essa noite?
***
Comecei a teclar uma resposta para o Kadu, quando percebi uma pancada na lataria do carro. Perdi a direção, e freiei bruscamente.
Senti um corte no lábio, devido o choque contra o volante, mas nada pior que a cena que eu presenciara do lado de fora do automóvel.
Um senhor estava caído no chão com o rosto ensanguentado. Vivo, porém com muitas feridas.
Naquele instante, meu corpo ficou gelado. Eu não sabia se socorria o ''velho'' ou se fugia deixando o carro e a cena sangrenta para trás.
Em poucos segundos um aglomerado de pessoas me rodearam, e eu fiquei sem ter escapatória.
- senhor. Fala comigo pelo amor de Deus. - Eu estava em estado de desespero.
- ele ta vivo? - perguntou uma moça.
Olhei para o homem na minha frente, olhei para a mulher nos curiando por entre os pequenos espaços deixados pelas pessoas.
- eu não sei. - minha voz saiu quase num sussurro.
- eu já liguei para o Samu. - disse um senhor de óculos ao meu lado.
- eu não tive culpa. Eu não tive culpa, ele entrou na minha frente do nada.
- calma meu filho, não adianta ficar nervoso não. - disse o homem.
- o que eu vou fazer agora? - sentia as lágrimas escorrendo.
Lembrei que o celular havia ficado dentro do carro, e resolvi ligar para o meu pai.
***
- você fez o que? - disse meu pai do outro lado da linha.
- não sei como isso foi acontecer pai. Eu não sei de onde esse cara surgiu.
- me diz aonde você ta.
- to aqui na amadeu, sentido centro.
- já ligou pra emergência?
- um homem ligou pra mim.
- me espere aí.
- vem logo pai. Eu to com muito medo. Ta cheio de gente aqui.
- fica calmo Gabriel. Espera uns dez minutos que eu já chego.
***
Os dez minutos do meu pai pareceram uma eternidade.
As pessoas perguntavam como acontecera o acidente, e nem eu sabia explicar.
Fiquei o tempo todo ao lado do senhor tentando reanimá-lo de alguma forma.
Olhava no relógio e nada do socorro aparecer. Resolvi então ligar novamente, reforçando o chamado.
- eles já estão chegando? - perguntou uma moça.
- falaram que já mandaram uma ambulância há um tempo.
Um táxi estacionou na outra via, e meus pais saíram do interior.
Meio desajustado, meu coroa saiu empurrando algumas pessoas até chegar ao meu encontro.
- então? E o socorro? - foi a primeira coisa que ele perguntou.
Quando movimentei meus lábios para responder, ouvimos as sirenes.
Minha mãe me apertou firme e falou em meu ouvido:
- vai ficar tudo bem. - disse com a voz calma.
Eu apenas assenti.
Daí em diante o meu pai tomou a frente de tudo. Ele ficou responsável pela perícia e todo resto.
Após esclarecermos tudo, na delegacia, seguimos para casa de táxi. Meu pai deixou a gente na portaria e seguiu ate o hospital.
Não demorou muito e o Danilo apareceu lá por casa.
- e aí '' Dick vigarista''. - disse entrando no quarto.
- e aí primo. - respondi sem muita animação.
- o tio me disse o que aconteceu. - Danilo sentou na cama ao meu lado.
- por que isso tinha que acontecer logo comigo primo?
- todos os dias tem acidente naquela rodovia. Relaxa.
- não tem como relaxar. E se o cara morrer?
- Isso não vai acontecer primo. Você não teve culpa de nada. Foi um acidente.
- eu tive culpa sim primo. Eu fui mexer no celular e perdi a visão da estrada, mas não foi de propósito.
- eu sei que não foi primo. Eu sei que não foi.
Danilo aproximou-se de mim, e deitou na cama, fazendo cafuné em minha cabeça.
Caí no sono, e fui acordado pela minha mãe.
Olhei para os lados da cama, e Danilo já não estava mais ali.
- o que foi mãe? - falei despertando e sentindo uma pontada de dor na cabeça.
- o seu pai ligou.
- o que ele disse? - falei sentando na lateral da cama.
Minha mãe sentou a meu lado e falou calmamente:
- o homem não resistiu.
- como assim não resistiu mãe? A pancada não foi tão forte assim.
Voltei a ficar desesperado.
- eu sei que não foi meu amor.
Minha mãe passava as mãos em meu rosto.
- ele não pode ter morrido mãe. O que vai acontecer comigo?
- fica calmo meu amor. Você não é responsável.
- cadê o pai?
- ele ficou no hospital. Vai tentar conversar com a família da vítima pra tentar resolver tudo sem ter que ir pra justiça.
- família da vítima? Porra mãe, falando assim parece até que sou um assassino.
Minha mãe me abraçou forte.
- eu usei a expressão errada. - disse em meu ouvido.
Comecei a chorar. Medo, desespero, tristeza: Tudo aquilo estava me deixando angustiado.
Meu pai chegou do hospital dizendo que não havia conseguido falar com a família do senhor, mas que iriamos diretamente na casa deles.
- e o senhor sabe onde é?
- sim. Já peguei os dados completo do homem.
- mas porque temos que ir lá pai?
- evitar um processo.
Meu pai, minha mãe, meu avô e eu estávamos sentados à mesa.
Os únicos que conseguiram comer foram meu pai, e meu avô.
Durante a noite, mal consegui pregar os olhos.
No domingo, cedo, meu pai estava me acordando.
- o que é pai?
- se arruma rapidão que vamos sair.
- vamos na casa do homem?
- isso.
- precisa mesmo pai?
- claro Gabriel, temos que resolver isso o quanto antes.
Contrariado, tomei um banho, coloquei uma roupa e acompanhei meu pai.
Pegamos o carro do Danilo emprestado e seguimos até o bairro da família do homem.
Depois de um bom tempo na estrada, meu pai estacionou o carro em frente a um galpão. A rua deserta e sem saída, era um pouco assustadora.
- é aqui? - perguntei.
- pelo endereço, acho que sim. - disse meu pai saindo do veículo.
Não tinha uma alma na rua. Aquilo parecia cena de filme de terror.
Fomos até o portão, e meu pai bateu palmas.
- acho que não tem ninguém. - falei sentindo um calafrio na espinha.
Meu pai empurrou o velho portão com o pé, e esse veio abaixo.
- o que o senhor ta fazendo pai?
- vamos entrar. - disse ele já tomando a frente.
- mas não deve ter ninguém em casa. Isso aqui ta parecendo abandonado.
- iremos descobrir.
Caminhamos por um corredor que ficava entre o cercado e o galpão. Mais a frente, avistamos uma senhora baixinha conversando com um rapaz.
- Ola. - disse o meu pai.
Os donos da residencia pareceram não ouvir.
Meu pai assobiou. Os dois nos olharam ao mesmo tempo.
- da licença senhora. - disse meu pai se aproximando.
O rapaz nos deu as costas e entrou em um casebre de madeira.
- posso ajudar em alguma coisa? - disse a senhora com os olhos molhados.
Pele clara e maltratada do sol, cabelos grisalhos, estatura baixa, corpo magro. Parecia uma senhora bastante cansada.
- estou procurando pela família do sr Carlos. - disse meu pai.
- eu sou a viúva dele. - disse a senhora.
Meu pai a cumprimentou.
- desculpe chegar nesse momento, mas gostaríamos de ter uma conversa com a senhora. Se possível é claro.
- mas sobre o que vocês querem conversar? - disse a mulher um pouco confusa.
Meu pai me olhou e fez uma pausa.
- vocês vão conversar com o capeta! - disse o rapaz, retornando com um rifle.
- o que é isso Junior? - disse a senhora.
- abaixa essa arma rapaz. - disse meu pai. - Estamos aqui em missão de paz.
- missão de paz é um caralho. Vocês tiraram o que eu tinha de mais precioso nessa vida.
- que historia é essa meu filho? - a senhora não entendia o que estava acontecendo.
- não reconhece esses dois mãe? Esse daí é o playboyzin que matou o meu pai.
O cara estava com a mira apontada para mim.
- abaixa isso e vamos conversar. Foi tudo um acidente. - meu pai tentava argumentar.
- acidente é meu ovo. Meu pai era um cara trabalhador, e vem um filho da puta pra estragar com a nossa vida.
- não foi intencional fera. Por isso estamos aqui. - argumentei.
- essa conversa não cola pra cima de mim.
- isso é verdade? Foi você que matou o meu marido? - a senhora me olhava.
- eu que estava dirigindo, mas não tive culpa. Eu juro senhora. O seu marido praticamente se jogou na frente do carro.
- mentira. - gritou o homem. - Você ta mentindo.
- to falando a verdade.
- vou fazer você engolir sua verdade.
O rapaz - branco, mais ou menos 1,80, cabelo castanho, olhos claros, corpo trabalhado, mas igualmente a mãe também castigado pelo sol - colocou o dedo no gatilho.
- não faça uma besteira rapaz. - disse meu pai.
- besteira fez seu filho ao cruzar nosso caminho.
- Junior, abaixa essa arma agora que eu to mandando. - disse sua mãe um pouco nervosa.
- desculpe minha mãe, mas dessa vez eu não posso obedecer.
- escuta tua mãe cara. Abaixa essa arma e vamos resolver tudo. Estamos aqui para ajudar. - disse meu pai.
- dispenso. E você playpoyzin de merda, mande lembranças minhas ao capeta.
Continua...