Junior, abaixa essa arma agora que eu to mandando. - disse sua mãe um pouco nervosa.
- desculpe minha mãe, mas dessa vez eu não posso obedecer.
- escuta tua mãe cara. Abaixa essa arma e vamos resolver tudo. Estamos aqui para ajudar. - disse meu pai.
- dispenso. E você playpoyzin de merda, mande lembranças minhas ao capeta.
A morte não tem cor, não tem sabor, não tem cheiro. Morrer e viver são duas vertentes que andam juntas.
Junior puxou o gatilho, mas antes que a bala pudesse acertar a mim ou a meu pai, sua mãe avançou em sua direção fazendo os dois irem de encontro ao chão.
A bala? Passou raspando pelo meu rosto.
- você ta bem? - perguntou meu pai.
- to vivo. - tentei controlar a respiração.
- vamos embora daqui. - disse meu pai.
- isso não vai acabar assim. Eu vou fazer vocês pagarem. - disse o rapaz.
- você é louco cara. Você é louco. - falei antes de virar as costas para mãe e filho.
A senhora, aquela altura, chorava tentando controlar o filho revoltado.
Entramos no carro e meu pai saiu em disparada.
- vamos à delegacia? - perguntei.
Meu pai negou com a cabeça.
- por que não? Ele tentou nos matar. - retruquei.
- o rapaz esta com o sangue quente. Acabou de perder o pai e esse nervosismo é normal.
- é só por isso mesmo?
- é... - disse encerrando a conversa.
Meu pai estava me escondendo algo. Sua feição era de preocupação.
Chegamos em casa, e eu fui direto para o meu quarto. Senti tanto medo da morte que se minha cueca estivesse molhada, eu não estranharia.
Tirei minha roupa, tomei um banho e em seguida apaguei na cama.
Acordei já a noitinha com o celular tocando.
***
- fala Kadu.
- e aí mano. De boa?
- tentando, e tu?
- suave. O que ta pegando?
- to com uns problemas velho. Tentando dormir pra ver se esqueço, mas parece ser pior.
- quer vir aqui pra casa?
- não mano. Acho que vou comer alguma coisa e assistir um filme qualquer.
- vem pra cá cara. To sozinho em casa. Eu faço uma pipoca e a gente assiste a uns filmes aqui.
- nem rola mano. O carro do meu pai esta na oficina.
- eu te busco aí. Beleza?
Olhei no relógio de pulso.
- em trinta minutos. Pode ser?
- tranquilo. Em meia hora eu chego aí.
****
Fiquei mais um tempo ali deitado, olhando para o teto e pensando na vida.
Despedi-me dos meus pais e fui esperar o Kadu na praça. Sentei em um dos bancos de madeira e fiquei olhando para o lago.
Meu telefone tocou e era o Kadu.
***
- já to te vendo. - falei.
- beleza. - respondeu ele.
****
Atravessei a rua entrei no carro do meu amigo.
Em pouco tempo chegamos ao apartamento do rapaz.
- entra aí mano. Fica a vontade. - disse ele assim que chegamos.
- primeira vez que eu venho aqui.
- não veio antes porque não quis.
- faculdade é uma correria cara. Da tempo nem de aparar os cabelos do pau.
Sentei no sofá e dei uma analisada no ambiente.
O apartamento do Kadu era muito organizado. Um sofá em formato de ''L'' na sala, uma tv tela plana 42 polegadas no painel, uma mesinha de centro com vários livros de estudos. Típico apartamento de universitário.
- quer comer alguma coisa? - disse o Kadu tirando a camiseta.
- to sem fome.
- quer que eu diminua a temperatura do ar? Ta com calor? - disse ele com o controle em mãos.
- tu quem sabe mano. Por mim, ta de boa.
- eu loquei uns filmes. Da uma olhada aí - disse Kadu indo à cozinha.
- já assistiu deuses do Egito? - gritei da sala com o dvd nas mãos.
- Já sim, muito bom né!? - Kadu respondeu da cozinha, separada da sala apenas por um balcão americano.
- é top demais. Pode ser ele?
- claro mano. - disse Kadu.
Enquanto Kadu fazia a pipoca, eu colocava o filme no aparelho.
- você prefere coca ou guaraná? - perguntou Kadu vindo da cozinha com uma bacia de pipoca.
- pode ser coca.
- coca saindo. - disse Kadu retornando à cozinha.
Assim que Kadu voltou, demos play e o filme começou a rolar.
- esse cara fez gladiador? - Kadu referia-se ao personagem do filme.
- quem? O Set? - falei colocando uma pipoca na boca.
- é. - disse ele engolindo um copo de coca.
- não mano. Aquele cara lá é outro.
- porra. Parece demais.
- tu acha? - Eu não acho não.
- eu achei.
Conforme o filme ia passando, o corpo do Kadu chegava mais perto do meu.
- minha mãe ta viajando. - disse ele.
- pra onde?
- Argentina.
- férias?
- sim. Foi com o namorado dela.
- bacana.
- to só em casa. - disse ele me fitando.
Kadu tinha segundas intenções no seu tom de voz.
Olhei para o meu amigo, e enchi a boca com pipoca, fingindo não entender.
- deve ser foda quando a mãe da gente viaja. Não sei como eu sobreviveria sem a minha. - falei.
- é complicado, mas eu me viro. A pior parte é na hora de fazer a comida.
- preguiça né!? - sorri.
- e também porque eu cozinho ruim pra caraleo. - abriu um sorriso.
- se tu quiser ficar indo almoçar lá em casa, de boa mano.
- serio? Olha que eu vou mesmo hen!? Não aguento mais almoçar na faculdade.
Eu ri.
- vou ao banheiro mano. - me levantei meio tropo.
- corredor, segunda porta a esquerda.
- valeu.
Depois que saí do banheiro, fui à cozinha beber água, e Kadu me acompanhou.
- oi. - disse ele sorrindo.
- e aí. - respondi com o copo nas mãos.
- cara, eu quero muito fazer uma coisa, mas tenho medo de da ruim. - Kadu parecia nervoso.
- então é melhor não fazer mano. - falei tímido.
- mas ao mesmo tempo, tenho medo de não fazer e me arrepender.
Kadu aproximou-se mais de mim.
- to sozin na vida Biel.
Kadu parou com o rosto na frente do meu.
- eu queria... - disse ele fazendo uma pausa.
Ficamos alguns segundos calados que pareceram minutos.
- eu queria provar da tua boca cara. - completou sua fala.
- kadu...
- não precisa falar nada mano. Vai ser um segredo nosso.
- não da cara.
- você ainda tem raiva de mim devido ao lance do banheiro?
- não. Pra falar a verdade, nem lembro mais disso.
- então? - disse me fitando.
- é que eu não posso fazer isso.
- o problema é comigo?
- não cara. É que eu não posso me envolver com ninguém.
- eu achei que você curtisse.
- e curto, mas no momento eu to em outra.
- acho que consegui capitar. - disse respirando fundo.
Olhei para o Kadu, mas nada falei.
- tu acha que não rolaria nem um beijo?
- não mano. Já ta na hora de eu ir pra casa.
- ta cedo brow. A gente nem terminou de assistir ao filme.
- o filme é meio longo, depois a gente termina de ver.
- beleza. Vou só escovar os dentes e te deixo em casa.
- não precisa brother. Ta tarde, e eu pego um táxi.
- você ficou chateado por causa da minha proposta?
- claro que não mano. É que você teria que da duas viagens, e amanha cedo tem aula.
- e o que tem a ver mano? Eu to de carro.
- mas vai ficar cansativo.
- vai nada mano. Relaxa, vou só escovar os dentes e já volto.
Naquela noite, Kadu me deixou em casa, e eu apaguei na cama. Acordei no dia seguinte a tempo de ir pra faculdade.
Entrei no elevador juntamente com meu primo e o novo morador do prédio entrou junto.
- bom dia. - disse ele.
Que sorriso lindo do caralho. Seus dentes eram extremamente brancos.
- bom dia. - respondi.
- indo trabalhar também?
- indo pra aula, e você?
- indo dar aula. - sorriu.
O elevador chegou ao térreo e cada um foi para o seu carro.
- hey, acorda! - disse Danilo.
- to longe primo.
- percebi. Que passas nessa cabeçinha? - perguntou ele ao volante.
- tu sabe que fomos lá na família do senhor que atropelei né!?
- tô sabendo. Isso ta te incomodando?
- o cara tentou nos matar.
- é o que? Que cara?
- o filho do homem que morreu primo. Ele ta revoltado, e prometeu se vingar.
- isso é serio?
- sim.
- e o que o tio fez?
- nada.
- como nada?
- o pai disse que ele ta nervoso, e que isso é normal.
- como ele tentou matar vocês?
- com um rifle primo. Ele só não nos matou porque a mãe dele impediu.
- cena de filme de faroeste. - Danilo sorriu.
Esmurrei a coxa do meu primo.
- o que? To tentando acabar com essa tensão. Tu ta assustado.
- claro que to primo. O cara prometeu vingança. Quem tem cu, tem medo.
- o tio não vai deixar nada acontecer. - disse meu primo estacionando o veículo no campus.
- Deus te ouça primo. Mudando de assunto, tu pode me emprestar teu carro pra eu ir trabalhar hoje? É que depois do trampo, eu vou voltar pra treinar.
- posso sim cara. Só preciso que tu me deixe em casa antes.
- tranquilo. - falei enquanto caminhávamos pelos extensos corredores da universidade.
- bora tomar café? - ele convidou.
- to sem fome.
- qualé primo!? Vai ficar sem comer agora, em razão de um mané ter te ameaçado?
- tô sem fome mesmo. Não desce nada.
- me faz ao menos companhia.
- claro.
Assim que chegamos ao refeitório, avistamos o Victor.
- enquanto tu monta o teu café, eu vou ficar te esperando lá na mesa do Victor. - falei apontando.
- beleza.
Fui ao encontro do meu amigo que tomava café com o Beto, e o Lucas.
- dia. - falei jogando meu material em cima da mesa.
- bom dia putinha. - respondeu o Victor.
- e aí Gabi, vai tomar café não? - perguntou Lucas.
- sem fome mano.
- tem que comer meu jogador. Hoje nós temos um treino pesado. - disse Beto engolindo uma fatia de sanduíche natural.
- daqui pra noite eu engulo alguma coisa mano.
Ele assentiu.
Antes de irmos pra sala, eu consegui ficar a sós com o Victor, e perguntei sobre o Fernando.
- e aí mano, e teu irmão? Tem noticias dele?
- vez ou outra ele fala com o meu pai.
- ah é!?
- é sim. Por que?
- nada.
- certeza? - Victor arqueou as sobrancelhas.
- sim mano.
- beleza.
Aquilo me deixou com uma pulga atras da orelha.
Terminando a aula, deixei o Danilo em casa, e parti para o trabalho.
- boa tarde Rômulo. - falei batendo o ponto.
- grande Gabriel. Como foi o fim de semana?
- uma merda mano. - falei.
- eu achei que tu tivesse curtindo com dinheiro no bolso. - disse ele sorrindo.
- nada.
Resumi toda historia para o Rômulo.
- que foda cara. - disse ele.
- não sei se o pior é o medo de ser perseguido por um cara querendo vingança, ou o peso de saber que alguém morreu por imprudência minha.
- mas já saiu o resultado da pericia?
- ainda não.
- a culpa pode não ser sua.
- pior que é sim mano. Eu tava usando o celular na hora da batida.
Rômulo elevou as mãos à cabeça.
- ai, ai, ai Gabriel. Como é que tu usa o celular dirigindo cara?
- foi um erro mano.
- que custou a vida de uma pessoa.
- isso ta me matando por dentro cara.
- eu não sei nem o que te falar Gabriel.
Fomos interrompidos por um cliente.
- boa tarde senhor. - falei.
- boa tarde. Vocês tem cimento aqui?
- temos sim.
- tijolos?
- também.
- argamassa?
- temos.
- Vou tomar um café Gabriel, voltei do almoço caindo de sono. Qualquer coisa tu chama. - disse Rômulo.
- beleza. - respondi.
O cliente usava uma agenda, e ia falando o nome de vários produtos.
- vocês trabalham com gesso também?
- Não amigo, mas eu posso indicar.
- faz esse favor pra mim.
- claro.
- to precisando também de equipamentos de proteção: Capacete, cintos, luvas, óculos e botas.
- mecânicos, eletricistas ou construção civil? - questionei.
- eletricistas e construção civil. - disse o cliente.
- quer dar uma olhada nos modelos que temos?
- quero sim, por favor.
Fui até o estoque e trouxe um equipamento de cada modelo para o cliente escolher.
- gostei de todos. - disse ele - o que você me indica?
- depende da finalidade amigo.
- entendo.
Após finalizar a venda do cliente, fui ate o escritório pegar o contato de alguma loja de gessos.
- aqui amigo. - falei lhe entregando um cartão.
- seu número? - perguntou ele.
- não, não. É o número da loja de gessos. O senhor vai falar com o Marquinhos lá.
- joia. - disse o cliente. - posso ficar com teu número também? Estamos com uma obra grande aqui na cidade, e vamos precisar de bastante coisa.
- claro que pode cara. Deixa eu anotar aqui. - falei pegando o cartão novamente.
Após colocar o material grande para entrega, e embarcar a mercadoria pequena no carro do cliente, esse me fez uma proposta um tanto estranha.
- você sai muito? - disse ele parado na porta da caminhonete.
- quando dá. Faço faculdade e as vezes fico sem tempo. Por que?
- to vindo de São Paulo fazer uma obra na cidade, e não conheço nada por aqui. Se você topar ser meu guia, podemos negociar uma grana.
- é serio? Você me pagaria pra te mostrar os pontos da cidade?
- claro. - disse o cliente sorrindo.
Aquele cara tinha aproximadamente uns 35 anos, olhos verdes, cabelos loiros, barba longa toda platinada, lábios finos e rosados, 1,85 de altura provavelmente.
- eu topo amigo, é só você marcar. - falei sorrindo.
- beleza! Eu entro em contato com você. - disse me cumprimentando.
O Cliente sumiu da minha vista, e eu retornei à loja pensando naquilo.
- grana fácil. - sorri sozinho.
Assim que o expediente acabou, eu parti para o treino. Estacionei o carro do Danilo, e fui ao vestiário trocar de roupa.
Enquanto tirava meu uniforme da mochila, o Beto me ligou.
***
- Já to aqui na faculdade. Vou só trocar de roupa, e já chego aí. - falei.
- beleza. - disse ele.
***
A última peça a colocar no corpo foi a chuteira. Saí do vestiário, enchi minha garrafinha de água, e ia caminhando ao campo de futebol, quando alguém me abordou.
- e aí playboy.
- Junior? Como é que tu me achou?
- isso foi fácil. Bora dar uma volta?
- não vamos a lugar algum.
Junior levantou parte da camiseta e deixou aparecer uma arma na sua cintura.
- vamos ate o seu carro, e você vai agir com naturalidade.
- como é que eu posso agir com naturalidade tendo uma arma apontada pra mim?
- problema é teu. Agora vai andando.
Fiz o que Junior mandou. O difícil era agir com naturalidade. Minha vontade era correr, mas aquele cara já havia provado que não tinha nada a perder.
Chegamos ate o estacionamento, e Junior me fez entrar no carro. O cara tirou a arma da cintura e apontou em minha direção.
- não faz isso cara.
- quem da as ordens aqui sou eu. Você só dirige.
Pensei em reagir. Tomar a arma do Junior, talvez não fosse uma má ideia.
Deixamos a universidade e pegamos a rota de saída da cidade.
- deixa eu ver o que tem de bom pra ouvir aqui. - disse Junior ligando o dvd do carro.
Começou a tocar Bruno Mars.
- até que você não tem mal gosto.
- esse som é do meu primo cara. - minha voz tava chorosa.
- é o ultimo som que tu vai ouvir na tua, miserável, vida.
Meu celular tocou. Ligação do Beto.
- não vai atender? - disse Junior sendo irônico.
As lágrimas começaram a rolar.
- vira na próxima esquerda. - disse ele.
Já estávamos bastante afastados da cidade.
- aqui é tudo deserto cara.
- eu gosto de lugares assim. É bom pra pensar.
Olhei para Junior e ele continuava com a arma apontada em minha direção. Junior não estava nervoso, ele sabia muito bem o que estava fazendo.
Após virar a esquerda, percorremos alguns quilômetros de terra, antes de ele pedir para eu parar.
- agora desce.
Olhei mais uma vez para Junior. Meus olhos suplicavam para não morrer.
- e nem pense em correr. Tenho boa pontaria.
Junior saiu do carro junto comigo. Estávamos em um local sombrio de barro e valas de água. Algumas árvores escondiam a luz da lua fazendo o ambiente ficar mais escuro ainda.
- vai andando. - disse Junior com a arma escorada em minha nuca.
Entramos numa terra de mata abandonada.
- para aí. - disse ele.
Olhei para o chão e vi uma pá. Tive a certeza que não voltaria pra casa.
- começa a cavar. - disse Junior.
- o que?
- começa a cavar caralho. - gritou.
- cara, pensa bem no que você vai fazer.
- já pensei. Agora cava.
Aquela era uma sensação estranha. Você sente medo da dor, tem angustia em não saber como vai ser depois da morte, arrependimento em não ter feito tudo o que deveria na vida.
Depois de horas cavando, desabei cansado no chão. Meu peito ardia, minhas mãos estavam calejadas. Junior levantou-se da raiz de uma árvore e veio na minha direção. O cara analisou o buraco, e depois de me olhou.
- não ta fundo o suficiente, mas da pro gasto.
Eu fazia esforço para respirar.
- você tem sorte? - disse ele me olhando de cima.
- nenhum pouco. - falei o encarando do chão.
- eu não vou ser injusto como você foi com meu pai. Vou te dar uma chance.
Mesmo distante, dava para ouvir tocando '' have you hever seen the rain '' no som do carro.
Essa música lembrava a infância na casa da tia Valentina, e isso deixava tudo mais difícil.
Junior colocou uma única bala no tambor da arma, e depois apontou para mim.
- vamos brincar de roleta russa. - disse ele.
- não. - falei levantando do chão e o encarando.
Junior me olhou sem nada entender.
- pode carregar a arma. Eu não vou conseguir viver com esse peso na minha consciência. Vai em frente cara. Completa tua vingança, e a gente fica empatado. Só não faz nada com meu pai, ele não tem culpa de nada.
Ajoelhei no chão, e fechei os olhos.
Continua...