A noite combinada estava mais gelada do que eu pensava que estaria. Para driblar a repentina frente fria, decidi com a ajuda da opinião silenciosa do espelho que usaria meu suéter azul marinho, a mais gasta de todas as peças disponíveis. O próprio suéter falava da minha ligação aos casos antigos. As marcas difíceis de apagar.
Numa tentativa desesperada de parecer menos sombrio, optei por uma calça marrom. Os sapatos pretos combinaram perfeitamente com tudo escolhido.
Já no restaurante, o lugar escolhido por mim, eu ocupava uma mesa reservada para dois há bastante tempo. Talvez mais do que deveria. Pelo vidro ao meu lado direito eu conseguia ver a chuva fina que caía do lá fora e presumia que nenhuma figura conhecia passaria pela bendita porta à minha frente. Eu sequer tinha pedido alguma bebida, e não tinha sido por falta de oportunidades ou vontade. O próprio garçom, talvez sentido pela minha espera, me oferecera algo especial inúmeras vezes. Uma gota desavisada de suor escorreu pela minha nuca e gritou toda minha impaciência. Impedi que meu próprio pé direito continuasse batendo contra o piso escuro de madeira e sem medo de entregar minha frustração, deixei minha testa cair sobre a mesa. Antes de concluir que eu levantaria e partiria dali, sorri sozinho e pensei no quão errado tinha sido responder àquele e-mail com tanta pressa, mas ao menos eu tinha tentado e isso me deixava em uma posição mais ou menos confortável. Mais aquele aquele acontecimento poderia me servir de lição.
Decidido, ergui minha visão tentando esconder tudo que sentia com um sorriso inventado, mas logo vi que não precisaria dele quando a figura esperada estava em pé ao lado da mesa. Ele erguia uma das sobrancelhas e me olhava meio de lado, desacreditado.
- Você não está tão velho para sair de casa e dormir sobre a mesa de um restaurante chique – disse-me em tom de divertimento.
Não fiz outra coisa, senão deixar meu rosto cair outra vez sobre a mesa, de olhos apertados e sorrindo, porém de forma mais verdadeira e até sem jeito.
- Vamos – ele continuou, ainda de pé. – Eu sento agora ou espero você tirar outra soneca?
- Por favor! – Eu fui econômico no uso das palavras, apontando para a cadeira à minha frente.
Eu desviei meu olhar dos olhos que me miravam e descobri uma barba que nascia preguiçosamente ao longo do queixo, adornando o rosto fino e suave, quase de moldes femininos. Os cabelos dourados que por muito tempo alcançou seus ombros curtos, escorria do topo da cabeça até a altura da orelha. O encontro dos nossos olhos era algo inevitável e naquela ocasião os dele pareciam muito mais felizes que os olhos que eu encontrei em outras eras. O sorriso ainda presente na boca pequena, carnuda e rosada me fizeram embarcar, em pensamentos, para outro tempo. Um tempo que cabe a mim contar.
*
1998. Verão.
Eu não queria sair de casa naquela sexta. Primeiro porque se eu quisesse aproveitar o final de semana teria que antecipar alguns estudos e depois que eu não era a pessoa mais festeira daquele bairro, mas era impossível continuar fingindo não existir quando as batidas de Catarina na porta trancada do meu quarto ecoavam por todo o ambiente.
- Por favor, por favor. Por favorzinho! – Ela insistiu do outro lado.
- Morri!
- Só um pouquinho, Ralph. Prometo não segurar você por muito tempo. Sua mãe já deixou.
- Você sequer parou pra pensar que eu não precisava da autorização dela, não é? Deixa de ser mala, garota.
Ela riu, despreocupada, mas logo voltou a bater na porta insistentemente.
Não teria como escapar daquela garota. Não naquele dia.
- Se eu pensar em dar no pé – eu comecei falando enquanto abria a porta e passava por ela, fingindo não ligar para a sua presença – e você fazer ceninha, prometo nunca mais aceitar qualquer convite seu.
- Se manca, garoto. – Eu ouvi ela resmungar atrás de mim, mas eu sabia que aquilo saiu emoldurado por um sorriso vitorioso.
Aquele era meu último ano na escola e Catarina era a única herança que eu queria carregar. Dentre os motivos, o mais relevante deles era por ela morar consideravelmente próximo da minha casa, sendo conveniente manter algum laço com ela depois das aulas. Nós não éramos os mais descolados, mas não ficávamos atrás daqueles que faziam questão de ser o centro das atenções. Ainda assim Catarina era a garota que muitas outras queriam ser. Cabelos coloridos e curtos, franja sobre os olhos carregada das décadas passadas, calça muito justa e na altura do umbigo, blusas apertadinhas e mais nada por baixo. Os garotos adoravam.
Eu era normal até demais, como dizia minha mãe e algum outro conhecido. Por vezes era considerado o estranho simplesmente por me manter longe das grandes aglomerações e sempre assumir o posto de observador. Como alguém que queria ser escritor, observar era meu esporte preferido, mas também a minha ruína.
A garagem da casa de Catarina estava cheia, como era de se esperar. Uma garotada se divertia do lado de fora e fazia um barulho muito além do que era considerado aceitável. Ela me disse que os pais tinham viajado e proibido as festinhas, mas é claro que sabiam o que aconteceria minutos depois de saírem. Lá dentro a música estava alta demais e nem parecia tão lotada depois de alguns minutos no ambiente. Umas meninas enfiadas em suas minissaias dançavam e pouco se preocupavam se os garotos viam suas intimidades.
Eu ri quando Joel, um conhecido, passou por mim já tão bêbado que os dançantes eram obrigados a abrir caminho para a cambaleante passar. Do rádio a voz do Robert Smith saía tremida, levemente abafada, mas era impossível não reconhecer "Boys Don't Cry" quando The Cure ainda era uma das bandas mais cultuadas naqueles anos. Não precisei esperar muito e Catarina me serviu um copo daquilo que tinha preparado: uma mistura matadora de Coca-Cola com Dreher e gelo. Tomei dois goles rápidos e senti o peso da bebida. Dancei ali no meu canto, sozinho. Interagi com um ou outro e lamentei pelas fitas que ela tinha destruído e pendurado no teto como decoração. Que louca!
Todos ainda dançavam embalados por The Cure quando eu o vi. Seria impossível ignorar alguém que dançava tão suavemente no meio daquela gente que fazia uma algazarra de graça. Eu via o garoto fechar os olhos, erguer os braços e rodopiar despreocupado e em seu próprio ritmo. Os cabelos dourados, liso na raiz e enrolado nas pontas, voavam pelos ares em cada rodopio e por vezes ele deixava que os fios caíssem sobre o rosto, imerso em algo só dele. Os passos faziam com que a jaqueta com a estampa do Hard Rock Café nas costas escorregasse e ele o segurava com a dobra interna dos cotovelos, voltando a peça outra vez ao topo dos ombros.
A figura dançava como um ajo e mantinha meus olhos tão presos nele que não percebi que as horas tinham se passado e eu continuava assistindo-o. Talvez naquele momento, aos olhos dos outros, eu parecia ainda mais com um psicopata.
- Bernardo! – Segredou Catarina quando sentou ao meu lado sobre umas almofadas enormes jogadas no chão.
- Quê? – Fingi estar entretido com minha bebida e os bordados numa almofada que apalpava sobre meu colo.
- O garoto – ela insistiu. – O nome dele é Bernardo, tem 17 anos e mora naquele bairro novo.
- Curiosa e controladora. – Eu sussurrei baixinho para não levar uma bronca.
- Eu não sou maluca de deixar estranhos entrar na minha casa. Se bem que ele é meio esquisito. Não falou com ninguém, não quis bebida e eu não lembro de ter visto ele de olhos abertos. Você está interessado, não é? Pelo menos é um gato.
- Catarina, você é do mal. Deixa o garoto, ele só está quieto.
- E você bem na dele – ela completou ao me interromper.
.
.
Pessoas, se o conto já der indícios de que não vai funcionar, me avisem. ;) Lá no Wattpad eu sou o @euesse.
Alexsandro Afonso, pedir pra opinar no prólogo é demais, não é? haha Mas ta aí, comecei a parte que interessa. E obrigado por acompanhar lá também. :)