Para não ter que me ver negar outra vez ela saiu carregando meu copo vazio, mas antes me olhou e se surpreendeu quando me viu soltar algo que concordava com suas acusações.
Ficamos nisso de conversar por bastante tempo. Vez ou outra alguém sentava e conversávamos sobre qualquer coisa. Eu parei de beber quando senti meu corpo mais leve que o normal, mas também não precisaria me preocupar, afinal a bebida não demoraria a acabar.
As horas se passaram, o garoto sumiu das minhas vistas e quando faltava pouco para o amanhecer, as pouquíssimas pessoas que restaram ali se animaram de descer para a praia, como sempre faziam.
– Quem topa? – Gritou Catarina para a meia dúzia de pessoas.
– Tô dentro! – Gritei em resposta erguendo meu copo que não via bebia há horas, mas que eu mantinha entre os dedos. Todos os outros concordaram facilmente.
Eu esperava Catarina terminar de fechar a garagem e me encolhia com o pouco de frio que fazia naquela começo de manhã. Ela ria de mim porque quase nunca sentia frio, mas naquele dia seus mamilos enrijecidos me diziam o contrário. Ou não. Ela correu para acompanhar o grupo que seguia adiantado e eu fiquei para trás. A curva da saída da casa dela me revelou alguém sentado sobre um parapeito muito baixo. O garoto mantinha os joelhos presos dentro dos braços e olhava o grupo se distanciar, o que me levava a crer que todos tinham ignorado a presença dele. Ou ele poderia ter se camuflado da melhor forma possível.
– Você não vem? – Eu cortei o vento frio entre nós dois.
O susto fez o garoto levantar em um pulo violento e depois suspirar aliviado quando viu que eu era um dos festeiros daquela noite.
– Cacete! – Ele grunhiu.
– Eu não quis te assustar, hein.
Minha defesa em um quase riso fez com que ele abaixasse a guarda e não demorasse em disfarçar o riso colocando uma mecha dourada atrás da orelha.
– Vocês estão indo para a praia?
– Nós todos estamos – eu respondi fazendo ele girar o corpo e o empurrei para alguns passos. – Aliás, eu me chamo Ralph. Não sei o seu nome. – Menti.
– Bernardo. – Ele não estendeu sua mão.
– Bernardo... – Eu insinuei que precisava de um sobrenome.
–Sobrenomes não importam. – E riu amenizando a dureza das palavras.
– Pronto para o bote – eu brinquei. – Você gostou da festa? Eu nunca vi você por lá.
– Sou novo por aqui. E eu gostei da festa sim, mas não me pergunte nada sobre. Eu passei a noite inteira dançando de olhos fechados.
– Eu vi. Digo... Eu vi algumas poucas vezes que você estava de olhos fechados. - Contornei. - Gosta tanto assim de The Cure?
– É minha banda preferida – ele respondeu sem olhar para mim.
– Por quê?
– Porque o som deles lembra uma felicidade triste? – Ele me respondeu com uma retórica como se aquilo fosse a coisa mais óbvia do mundo.
– Isso existe? – Perguntei de forma irônica, mas sem querer.
Ele virou seu rosto da forma lenta como eram todos seus movimentos. Seu sorriso mostrou-me os dentes perfeitos e uma felicidade rasa, mas verdadeira. Porém a tristeza citada por ele estava explícita em seu olhar. O azul claro não parecia alegre naquele rosto e eu não precisei de nenhuma outra resposta para entender que a felicidade pode sim ser triste.
Obviamente a praia estava vazia quando chegamos. Os amigos de Catarina correram para a água gelada enquanto tiravam suas roupas com facilidade e as jogavam para o ar. A liberdade das primeiras horas do dia. Dar um mergulho pelado era tudo que eles precisavam. Eu recusei os convites e acompanhei Bernardo. Sentamos não muito distante de onde os meninos se divertiam com a nudez um do outro e eu busquei o olhar dele que viajava para muito além do mar não tão calmo à nossa frente.
– O que posso fazer para conseguir mais palavras suas? – Perguntei sem receio.
– Tente o não obvio.
– O que seria obvio agora?
Ele riu, ainda sem me olhar.
–Eu não vou facilitar, Ralph.
– Você considera obvia uma pergunta sobre o mar?
– Muito! – Ele confirmou, decidido.
– E sobre beijos?
Da forma como estava sentado pressionando suas coxas contra a barriga e ainda abraçando os joelhos, eu virou seu rosto para mim e fez dos joelhos um apoio para sua bochecha. O sol que surgia no horizonte pintava o céu de uma mistura bonita de roxo, azul e rosa. De tão branco eu conseguia ver essas cores refletidas no rosto imaculado de Bernardo, que sorriu me colocando de volta no momento e lembrando que eu tinha algo para perguntar:
– Você beija meninos ou meninas?
Ele gargalhou e quando isso fazia seus olhos se fechavam naturalmente.
– O que foi? Não é mais um problema perguntar isso hoje em dia. Tem um monte de gente que...
– Você é um mala – ele sussurrou em minha direção e eu desisti de falar. – Você quer me beijar, não é?
– Está tão claro assim? Eu tentei não ser direto.
– Pode ser, se quiser. Mas eu te beijo antes.
Ele não me deu tempo para pensar. Tive meus lábios tocados antes que eu pudesse tomar uma iniciativa. Os lábios de Bernardo estavam tão frios que eu pensei estar beijando algo sem vida, mas quando ele abriu a boca para encorpar o beijo e me fez sentir seu hálito morno, eu entendi que a vida acontecia sob a pele pálida. Nos beijamos do jeito que estávamos: eu com os braços cruzados pressionados contra meu peito e ele abraçando os próprios joelhos, mas ambos inclinados um para o outro. Era até romântico. Eu senti a língua dele e o quão macia era. Senti também a saliva salgada, o apertar dos lábios grossos sobre o meus e os movimentos suaves que seguíamos, como se beijar fosse nossa maior especialidade.
Eu quis abraçá-lo, não para elevar o nível daquilo que fazíamos, mas para guardá-lo em mim. Eu sentia que havia nele muito do que eu precisava e procurava no mundo. Ele era interessante como os personagens que eu criava no meu íntimo. Era triste como as músicas que escutávamos nos finais de tarde daqueles anos, mas alegre como um amanhecer colorido de um sábado veranil. Eu quis abraçá-lo e o abracei. Tomei o corpo gelado para mim e ficamos todo o tempo sentados em silêncio, apenas observando ao longe a movimentação agitada da garotada nas ondas.