Uma história dentro de uma história
Fatos narrados por David:
Desde o dia que descobri que tinha um fã a minha autoestima voltou a existir, quando pude conhecê-lo pessoalmente então posso dizer que tudo voltou a fazer sentido, estava muito ansioso por conhecer alguém que admirava minhas músicas tristes e melancólicas que nada mais era que a forma que encontrei para desabafar com o mundo, lembro bem de quando meus olhos naquele lindo rapaz, que de latino tinha poucos traços. Sempre via fotos dele pelas redes sociais mas pessoalmente era totalmente diferente. Eu vinha de uma profunda depressão que cai quando meu melhor amigo faleceu em um acidente de carro voltando de uma festa, sempre tive atração por meninos e meninas mas pelo Gustav era diferente, crescemos juntos. Gustav era filho de dois russos que vieram para Irlanda atrás de mais tranquilidade para criar seus filhos longe das reviravoltas políticas que acometiam a Rússia socialista da época, encontraram na Irlanda um cantinho de paz para construir suas vidas e criar seus filhos, Gustav era extremamente branco com cabelo sempre cortado baixo e um par de olhos verdes que mais pareciam duas esmeraldas, estudamos juntos desde o primário e ele foi o primeiro a saber dos meus desejos sexuais pelos dois gêneros, acreditava que ele seria uma das poucas pessoas a entender isso. Na adolescência por volta dos quinze anos dei meu primeiro beijo, logo nele, em Gustav. Era muito estranho, logo após o beijo esperava um soco dele ou que ele saísse me xingando e que nunca mais olharia na minha cara. Contrariando tudo que eu imaginava Gustav retribuiu o beijo e a partir dali tivemos uma amizade colorida e ainda mais intensa, quatro anos atrás Gustav pegou o carro de seus pais escondido e foi para um festa, na volta provavelmente bêbado bateu em cheio na traseira de um caminhão e morreu na hora. A morte de Gustav foi praticamente a minha morte, fiquei semanas isolado em casa, mal comia e via minha mãe chorar pelos cantos da casa sem entender o porquê de minha depressão até o dia em que tomei coragem e contei a ela.
- Mãe eu e o Gustav tínhamos uma relação maior do que todos sabem, meu primeiro beijo foi com ele, ele era o amor da minha vida e junto dele eu também morri. - desabafei com minha mãe.
Aos prantos minha mãe me abraçou e disse que o meu verdadeiro amor estava por vir, e sempre que questionava a ela porque esse amor demorava tanto a vir ela brincava dizendo que talvez demorasse, pois o amor poderia estar em outro país e que na hora certa eu saberia reconhecer. Nunca levei fé nessa história até o dia em que conheci o Pedro. Por mais que demonstrava a todos que o luto havia terminado, dentro de mim ainda sentia como se um pedaço meu tivesse ido embora junto do Gustav, ainda não conseguia ir até a casa dele e sua mãe me ligava com frequência para visitá-la, por mais que quisesse era cruel demais cruzar o batente da porta deles sem ver o brilhante sorriso de Gustav, em meio a toda essa tempestade conheci Mary, ela nem era tão próxima a mim, era mais colada no Gustav e em certos momentos tinha a leve impressão que sentia ciúmes de nós dois, no dia do enterro de Gustav ela segurou forte a minha mão e encontrei nela o ponto de apoio para não cair. Havíamos estudado na mesma escola então não foi difícil encontrar alguns assuntos em comum e me arrancar breves risadas, da minha dor tirei as letras das minhas músicas, encontrei na música uma forma de superar a dor que sentia, após muita insistência de Mary publiquei algumas na internet. Nunca vou esquecer da minha mãe me olhando com a maior cara de felicidade ao ver meu sorriso, na hora não entendi a felicidade dela até que muito emocionada me disse:
- Que sorriso lindo! Quanto tempo que não o vejo.
Sua fala foi seguida de um longo abraço úmido de lágrimas de felicidade, acredito que naquele momento ela sequer pensou em me perguntar o motivo, até mesmo porque não saberia explicar. Havia recebido um recado de um fã, o que por si só bastaria de muita alegria, toda a minha tristeza havia gerado um trabalho que agora tinha até fãs, não parava por aí ele era do Brasil e em poucos dias estaria aqui tão próximo de mim, à primeira vista um rapaz bonito, moreno bem diferente dos caras daqui da Europa que seguem quase todos o mesmo padrão de beleza. Após esse dia era quase incontrolável o sorriso, meus pais não conseguiram segurar e me perguntaram qual o motivo da alegria.
- Esse é o meu garoto! - Exclamou meu pai na mesa do café da manhã quando me viu entrar pela cozinha e continuou - Estou muito feliz em poder ver você sorrir de novo filho, ver que toda tristeza do que passou ficou em seu devido lugar que é no passado. Eu sei que tudo que você viveu foi muito triste mas o próprio Gustav não ia querer você nessa tristeza toda, não gosto de interferir na sua vida filho mas estamos muito curiosos de saber o motivo dessa alegria. - Disse meu pai lançando um olhar terno para minha mãe que sentada do outro lado da mesa acompanhava as palavras do meu pai e tinha uma expressão de ansiedade no rosto demonstrando que compartilhava da curiosidade do meu pai.
- Eu não sei, mas depois que soube que tinha um fã é que ele estaria vindo para cá me deixou muito animado. Tentei explicar mesmo sem entender tudo que eu estava sentindo.
- E essas bochechas vermelhas ? - disse minha mãe diante de um breve olhar reprovador do meu pai, pois eles realmente não gostavam de invadir minha privacidade.
- Por nada mãe, não sei a razão mas fiquei feliz de saber que ele vem para cá. - respondi sentindo minhas bochechas corarem ainda mais.
A realidade era que eu não sabia mesmo porque aquele carinha que vinha de tão longe havia mexido tanto comigo, só sabia que ele era lindo. Finalmente chegado o dia de conhecer o Pedro eu não me aguentava de ansiedade e euforia, andava pela casa como se cada passo que desse adiantasse o relógio em meia hora, havia marcado de ir buscá-lo na casa que ele iria ficar hospedado bem próximo ao centro de Dublin, a Mary assistindo de perto toda a minha ansiedade se ofereceu para me acompanhar e pra me fazer companhia na volta após o show. Grande foi minha surpresa quando cheguei no endereço que ele havia me mandado e ao abrir a porta notei que diante de mim estava um príncipe, minhas mãos suavam, meu peito batia desesperado e por alguns segundos de tanto nervoso sentia as vistas escureceram mas o apertão que Mary deu na minha mão me trouxe a realidade, lembro que ele chorou ao me conhecer minha mãe nem acreditou quando contei, ela me olhava como se esperasse que já faria o pedido em casamento e foi notória a sua feição de desapontamento quando disse que não tinha acontecido nada demais e que tinha tido a ligeira impressão que o Pedro tinha tido mais interesse em Mary do que nele. Comentei também com meu pai que um dos caras que dividia a casa com o Pedro muito se parecia com um dos traficantes que meu tio havia prendido uns meses atrás e fugido, não me prendi muito a isso mas a cara só sujeito ficou marcada até o dia que me encontrei com ele novamente e ouvindo seu nome tive a certeza, Ângelo já havia sido preso por envolvimento com drogas pelo meu tio que é chefe da polícia local, tentei avisar o Pedro mas ele já estava envolvido demais.
Queria muito ter levado o Pedro para conhecer o meu país, mas ele optou pelo outro fiquei muito triste e ao mesmo tempo arrependido de não ter beijado ele no dia que tive a chance, como a Mary disse posso ter me enganado com as coisas e estar inventado, fantasiando que um dia eu possa ter ele ao meu lado. Embora meu coração diga para eu insistir eu não sei se devo, hoje ele veio se despedir, está voltando para seu país amanhã. Ver o Pedro saindo pela minha porta e indo me trouxe lembranças do dia do enterro de Gustav quando vi seu caixão baixando aos poucos e sendo coberto por terra.
Infelizmente Gustav estava morto e eu não podia fazer muita coisa, mas o Pedro estava vivo e eu iria dizer a ele tudo que sentia. Depois que Pedro saiu fiquei parado em meu portão por uns minutos pensando em tudo isso, decidido seguir o caminho para a estação de trem disposto correr atrás do cara que eu gostava. Já próximo da estação vi quando um rapaz mediano, corpo esguio e pele parda se aproximar de Pedro o golpeado na cabeça e jogando seu corpo desmaiado num carro que estava parado próximo, o choque da situação me fez parar e ficar estático, sem acreditar no que via, um grande desespero tomou conta de mim e corri para casa para pedir ajuda dos meus pais, com muito sacrifício e submerso em lágrimas contei o que havia visto e de imediato minha mãe ligou para seu irmão que era policial. Meu tio Henry era um senhor já de meia idade, ruivo de olhos claros e com aquela barriguinha de casado, estava a mais de quinze anos na polícia e conhecia cada palmo de nosso condado, sem mencionar na influência que tinha nos condados vizinhos. Como toda informação era valiosa contei do envolvimento do Pedro com o Ângelo que segundo meu tio após os primeiros incidentes já havia um pedido de expulsão de Ângelo do país, algumas investigações tinham comprovado a ligação dele com tráfico internacional de drogas. Minha mãe que já estava desesperada antes ao saber disso ficou ainda mais preocupada com Pedro, meu pai apesar de transparecer calma a essa altura também tinha em sua face um semblante de preocupação. O primeiro lugar que fomos buscar foi na casa de Ângelo, qual não foi nossa surpresa quando lá chegamos e não o encontramos em casa, Juan assustado com a presença da polícia questionou nossa visita e sabendo do motivo de imediato levou os policiais no quarto de Ângelo. Não foi preciso uma busca muito longa para achar uma série de coisas erradas, além das drogas foram encontrados documentos falsos e dinheiro em quantidades dissonantes de um intercambista. Juan também confirmou que Ângelo havia saído logo após o Pedro e que nenhum dos dois haviam retornado até aquele momento. Assim como todos Juan também nutria algumas desconfianças sobre Ângelo mas ainda não podia afirmar nada sem provas, mas que era muito estranha suas constantes mudanças de trabalho, suas viagens constantes e suas gastanças. Todo o histórico de Ângelo não foi surpresa nenhuma para meu tio, mas naquele momento toda nossa preocupação tinha que se concentrar no que poderia estar acontecendo com o Pedro.
Continua...
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