Descemos então até a sala. Renata me mandou aguardar, enquanto chamava o Uber para nos levar até o salão.
Ainda atônito em estar vestido daquele jeito e estar prestes à sair para a rua daquele jeito, comecei a andar de um lado para o outro, com um princípio de crise de ansiedade:
- Pronto... nosso Uber chega em 3 minutos, Lari... Lari, o que você tem? Está pálida!?
- Puxa, Rê, você ainda pergunta? Estou uma pilha de nervos com isso tudo!
- Calma, amiga... vai dar tudo certo... você está linda! Ninguém, absolutamente ninguém, ousaria dizer que se trata de um homem ou mesmo seria capaz de reconhecer você.
- Sim, acredito, mas parece que está escrito na minha testa que sou um travesti!
- Hahahaha... sério? Escrito onde? Não tô conseguindo ler. Só consigo ver nesse rostinho lindo e bem maquiado uma belíssima morena que será minha mais linda dama de honra em meu casamento...
- Puxa, Rê... obrigada...
E fiquei pensando comigo mesmo o motivo de eu ter me sentido lisonjeado em ser chamado de 'linda'. Mas enfim, já que aquela situação chegara àquele ponto, melhor parecer uma figura bonita do que o contrário.
- Relaxa, amiga... vai dar tudo certo. Tenho certeza de que nos divertiremos MUITO essa noite.
- Se você diz...
- Eu te juro. - e mais uma vez sorriu tão docemente para mim que foi como se todos os meus medos e temores tivessem de súbito me deixado.
E fomos interrompidos pelo som de buzina vindo de fora:
- Ó! Nosso Uber! Bóra, menina!
Renata abriu a porta e ficou me esperando. Fiquei paralisado mais alguns segundos, então ela veio em minha direção e me puxou pelo braço. Então lá estava eu, de vestido e sandália de salto, cabelo com presilha rosa e maquiado, deixando a segurança reconfortante de minha casa para expor ao mundo aquele meu lado até então desconhecido, mulher. Apressei o passo para que ninguém na vizinhança me visse (mesmo estando bem disfarçado, a sensação é mesmo de que todos sabem) e quase num pulo entrei no carro:
- Boa tarde, senhoritas... Salão La Femme então?
- Er... como você sabe??? - perguntei eu apavorado, como se ele tivesse descoberto tudo.
- Porque é o destino que vocês colocaram no aplicativo... - respondeu o motorista, fazendo cara de espanto.
- Ah, sim... claro... esqueci. Desculpe... - e ri amarelo.
- Não dá bola pra ela, Carlos. Ela está nervosa porque será minha dama de honra esta noite.
- Ora, ora... mas nervosa por que? Tenho certeza de que será uma linda dama de honra, se me permitem dizer.
- Hahahaha... com certeza será, né, Lari? - debochou Renata.
- É... vamos ver o que se pode fazer... - disse eu, totalmente sem graça.
No trajeto, o motorista quis saber detalhes da festa: onde seria, quantos convidados, cardápio, etc. Aos poucos, fui conseguindo me soltar e passei a interagir mais da conversa que centrava-se entre Carlos e Renata.
- E o teu par! É bonito, Larissa? - perguntou rindo, o motorista.
- Que?
- Ué... seu par... que vai entrar com você. É bonito?
- Na verdade eu não o conheço.
- Humm... tá com cara de encontro às cegas.
- É... - complementei sem graça.
Renata apenas ria no banco de trás. Tentei olhar para ela com reprovação, mas a cada tentativa minha ela me olhava com ternura e me desarmava inteiro.
- Chegamos, princesas...
- Oba!!! Obrigada, Carlos - falou Renata, exultante.
- Sempre às ordens. Um ótimo casamento para vocês...
- Obrigada.
- Obrigada.
- E Larissa... espero que consigas pegar o buquê e que teu par seja tão lindo quanto você merece.
- Er... obrigada... - falei num muxoxo, com uma vergonha que jamais havia experimentado em toda a minha vida.
Descemos. Ajeitei a bolsa no ombro, dei uma ajeitada no vestido passando a mão por ele e respirei fundo, em algo que parecia evocar coragem mas soava como medo absoluto:
- Aí, Larissa, arrasando corações!
- Que?
- Ué, não viu? O Carlos ficou dando em cima de você o tempo todo.
- Sério?
- Aff... tá bom... fazer de conta que não percebeu. Enfim, vamos que temos horário.
Eu realmente não havia percebido o tal cortejamento. Para mim, Carlos tinha sido apenas solícito e educado, como a maioria dos motoristas do Uber que já havia pegado.
Subimos as escadas (eu com certa dificuldade, devido à falta de costume com o salto) e adentramos o Salão. Era um lugar maravilhoso, suntuoso, cheio de arranjos de flores e com música clássica ambiente bastante convidativa:
- Boa tarde, senhoritas. Me chamo Lorraine. Sou a recepcionista daqui do La Femme. Em que posso ajudá-las?
- Boa tarde, Lorraine. Somos Renata e Larissa. Temos hora hoje para o Dia de Noiva. Aliás, nós duas e mais minha prima Luciana, que não sei se...
- Oiiii, Rêêêêêê!
E lá do fundo do salão vimos uma belíssima moça loira, corpo esbelto, vindo em nossa direção com uma taça de champagne em uma das mãos.
- Luuuuuu!!! Oiiiii! Que bom que você já chegou!
- Sim, né? Alguém tem que chegar no horário aqui!
- Pois é, demos uma atrasadinha básica mesmo. Mas hoje eu posso porque hoje eu sou a noiva.
- Hahahahaha... verdade.
- Lu, deixa eu te apresentar a outra dama de honra: essa é Larissa. Larissa, essa é minha prima Luciana.
- Olá - disse, sem jeito.
- Olá, Larissa! Nossa... modéstia à parte, Renata, mas você arrasou nas damas de honra. Uma morena e uma loira, uma mais gata que a loira. Vai bombar...
- Hehehehe... pois é - disse eu, pensando no quanto eu gostaria de dizer para Luciana o quão gata eu havia achado ela, mas, devido às circunstâncias, não poderia fazê-lo.
- Bom, então partiu, meninas? - falou Renata, ansiosa.
- Calma, calma lá... primeiro vocês tem que me acompanhar. Eu já bebi sozinha quase meia garrafa... garçom, garçom! e gritava, sem muita vergonha pelo salão, Luciana, intercalando seus gritos com 'psiu... psiu... hey...' para cada vulto que julgava estar lá para lhe servir.
Renata me olhou e riu. Acabei sorrindo também: inegável que a figura de sua prima deixava aquilo tudo mais leve.
Então voltou Luciana, abraçada em três taças e com uma garrafa de champagne em uma das mãos. Serviu sem parcimônia as taças, ordenou que as erguêssemos e bradou 'À Renata, a noiva mais linda desse mundo! Saúde!'
- Saúde!
- Saúde!
Dei um golinho tímido, ao que Luciana interceptou, levantando a haste de minha taça e me fazendo beber tudo, quase que de guti-guti.
- Hoje é dia de festa, Larissa. É pra beber sem moderação. - e piscou sorrindo.
Terminados os drinks, Luciana ordenou:
- Agora sim: partiu dia de noiva, meninas.
E seguimis seus passos, obedentemente.
Luciana parecia muito a par de tudo e praticamente nos guiava pelas salas. Sinalizou com o rosto para que adentrássemos em uma salinha, na qual sentamo-nos em três cadeiras daquelas reclináveis, que eram extremamente confortáveis e reconfortantes.
- Que luxo... - exclamei baixinho.
- Você ainda não viu nada, menina... acalma o coração - disse Luciana.
Em seguida, entraram três atendentes, que, num trabalho quase que sincronizado, ordenaram que relaxássemos enquanto faziam nossas sobrancelhas.
- Oba! - exclamou Renata!
Não havia entendido naquele momento o motivo da felicidade dela pelo fato e comecei a entender ainda menos assim que comecei a sentir meus pelos sendo lenta e maldosamente arrancados por um pinça que parecia de tortura pela esteticista:
- Menina... mas você tem sobrancelha, hein? - exclamou minha atendente.
- Pois é... não costumo fazer sempre. - ao menos nisso havia verdade.
- Capricha, Maria! - disse Renata -. Quero essa sobrancelha bem arqueadinha e feminina.
Sequer tive tempo de ficar brabo com ela, pois a dor a cada pinçada era mais forte que qualquer pensamento que pudesse expressar.
Passados alguns minutos (que poderiam ser calculados em horas para mim), as esteticistas terminaram o serviço, dizendo que poderíamos seguir para a outra salinha para os demais procedimentos.
- Meu Deus!!! Ficou linda! - disse Renata rindo.
- Obrigada... - disse olhando com certa indignação para ela -. Presumo que essa sobrancelha arqueadinha vã durar bastante tempo, não é mesmo?
- Que nada, Lari. No máximo dois meses - disse, Luciana, de forma inocente -. Vamos que tem mais diversão! - e seguiu, com sua taça de champagne na mão.
Seguimos então as atendentes, que nos levaram até uma espécie de vestiário:
- Agora vocês entrem e coloquem seus roupões, meninas. Vamos fazer uma sessãozinha de sauna para abrir os poros e fazer o tratamento da pele.
Olhei com indisfarçável terror para Renata, que entendeu meu pavor, mas, com o olhar pareceu dizer que tinha tudo sob controle:
- Claro... vamos, sim. Lari, vai indo na frente que preciso falar uma coisa com a Lu. - e foi tirando Luciana do recinto, para me fazer ganhar tempo.
- Oba! Segredinho!!! - gritou Luciana, já visivelmente alterada pela bebida.
Então, com toda a pressa possível, corri para o vestíario, tirei meu vestido e coloquei o roupão. Minha sorte era que meu sutiã era tomara-que-caia, assim como meu espartilho era bastante discreto, não ficando para fora do roupão rosa pink que nos foi entregue. Tirei o sapato, vesti os chinelos que haviam no provador e me olhei no espelho: a silhueta estava perfeitamente feminina e não havia motivos para que eu me apavorasse.
Esperei intermináveis segundos, até que vi o rosto de Renata espiando para dentro, esperando que eu desse o ok para trazer Luciana. Nem precisei responder: ela me olhou de cima abaixo, deu uma piscadinha e veio junto com sua prima:
- Francamente, Renata... grande coisa eu saber que você perdeu a virgindade aos 17 anos... - falou Luciana, visivelmente decepcionada.
- É que... eu queria tanto te contar... enfim...
- E eu jurando que era algo picante... mas ok... hoje você pode fazer dessas...
Então entrou no recinto uma senhora de feições orientais, que mandou que sentássemos na sauna e relaxássemos um pouco antes de darmos seguimos ao tratamento.
Sentamo-nos então na sauna, com taças de champagne novamente abastecidas por Luciana, e ficamos curtindo o momento ao som da música ambiente. Estava quase que totalmente relaxado, quando Luciana veio me perguntar:
- E então, Lari... qual você vai querer?
- Não entendi, Lu...
- Afff... qual dos boys-magia que serão nossos acompanhantes você vai querer? O Fábio ou o Ramiro?
Fiquei sem chão:
- Er... na verdade eu não conheço nenhum deles... por mim tanto faz.
- Tem razão... um mais lindo que o outro. Tanto faz mesmo...
- É...
Renata ria baixinho, mas com gosto.
Em seguida, fomos chamadas para outra sala. Fiz menção de voltar ao provador para colocar novamente as roupas, mas Luciana intercedeu:
- Não, amiga... daqui em diante é de roupão. E do roupão para nossos vestidos.
- Ah, sim... claro. Esqueci - falei, fingindo naturalidade.
Em uma salinha um pouco maior e muito bem perfumada, fomos acomodadas em três cadeiras de salão, daquelas que mais parecem uma cama do que uma cadeira.
- Prepare-se que vai começar a viagem! - riu, Luciana. Vai começar agora cabelo, unhas e maquiagem - disse Luciana, que já havia notado minha falta de familiaridade com aquilo tudo.
- Sim... eu sei... - menti.
Em seguida, senti meus cabelos sendo molhados e lavados, estando com a cabeça confortavelmente descansada em uma pia que havia na extensão da poltrona. Após a tortura de fazer as sobrancelhas e o medo de ser descoberto na sauna, estava me sentindo no céu com meu couro cabeludo sendo deliciosamente lavado e massageado.
- Humm... - cheguei a gemer baixinho.
- Delícia, né? - concordou Renata.
- Uhuum...
Em seguida, senti meu cabelo sendo envolto em uma toalha, com a atendente solicitando que fosse até a outra cadeira, em frente ao espelho iluminado. Assim, sentamos nós três, extremamente relaxadas e descansadas:
- Oi, meninas... que cor vão querer pintar?
- Branco! Com muito brilho! - exclamou Renata.
- Rosa pink, bem cheguei - falou Luciana.
Mediante meu silêncio, a moça insistiu:
- E a senhora, vai pintar de que cor?
- Lilás! Com rendinhas e adesivos florais muito fofos! - ordenou Renata.
Foi então que percebi que era a moça que fazia as unhas. O relaxamento da lavagem de cabelos havia me feito esquecer de onde eu estava e do que eu estava fazendo ali.
- Ótima escolha. Vai ficar um arraso!
Cheguei a pensar para Renata com desaprovação, mas àquela altura já nem tinha mais forças para manifestações do tipo; apenas deixava acontecer. Enquanto uma das atendentes secava delicadamente meus cabelos, sentia meus dedos sendo levemente mexidos, o que não era uma sensação ruim. Então fechei meus olhos e por instantes cheguei a cair no sono, acordando de súbito:
- Prontinho! Ficaram lindas! - exclamou a esteticista.
Para meu espanto, quando virei minha mão direita em minha direção percebi que não bastava eu ter unhas liláses e decoradas com adesivos de flores, mas também eu tinha unhas enormes, levemente quadradinhas nas pontas, que me haviam sido coladas enquanto estava no meu momento zen.
Renata me olhava, com atenção. Então olhei para ela, mostrei minha mão e fiz uma cara de 'nada mal'. Ela rindo consentiu com a cabeça. Eu podia até não gostar, eu podia estar até desconfortável, mas não havia como negar: eu estava com unhas lindíssimas.
Então, me acostumando à ideia daquelas unhas incomuns, vi minha imagem no espelho diante de mim, o que me fez perder o ar alguns segundos...
- Mas... o... que... é... isso??? - falei, engasgando.
- Isso é a nova ruiva do pedaço! Gostou? - falou Luciana, rindo, me trazendo uma taça de champagne.
- Mas... mas... como isso?
- Ah, Larissa, camarão que dorme a onda leva. Enquanto você tirava seu soninho de beleza, cochichei pra Renata o que ela acharia de ter uma dama de honra ruiva e ela, rindo, apenas disse 'adoraria'.
E então lá estava diante de mim novamente uma pessoa que não era eu. Eu mal havia me acostumado à figura de Larissa defronte ao espelho, agora então teria que lidar com uma Larissa ruiva, de cabelo extremanete liso e brilhoso.
- Milagres que só uma escova faz pela gente, não é? - riu, Luciana.
- Gente... estou passada... - falei, sem me dar conta do gênero que colocava naquele advérbio de modo a que me referia a mim mesmo.
Luciana e Renata riram alto. Então chegou um rapaz alto, esbelto, de gestos delicados e voz suave, anunciando:
- Hora do make e do cabelo, meninas!!!
CONTINUA...