Não fosse o vinho, que abrimos com o pretexto do friozinho que fazia lá fora, teria sido mais uma das muitas noites de fim de semana que passávamos curtindo um ao outro. Bebermos um tinto juntos não era inédito, mas também não era habitual. Habitual era conversarmos muito, ouvirmos música, vermos um filme. Volta e meia, interrompíamos uma coisa ou outra para o sexo, que fazíamos várias vezes – e, não raro, repetíamos mesmo depois de ele ter gozado.
Já tínhamos aberto uma segunda garrafa, que não chegamos a esvaziar porque ele insistiu que devíamos deitar, percebendo que minha voz começava a enrolar por conta do álcool. Como sempre, ele tinha razão. E pôde constatar isso quando, quase chegando à porta do quarto, dei uma titubeada, revelando uma ligeira tontura.
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[Pequena pausa informativa:
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Boa leitura!
Continuando:]
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Ele riu, me beijou na testa e me pôs na cama, tirando com cuidado o camisão de malha que eu usava. Já há meses, com algumas exceções para dar uma variada, era assim que eu o recebia quando ele voltava do trabalho: apenas com uma camiseta bem folgada que, quando eu estava em pé, chegava a cobrir a cuequinha boxer branca. Punha ainda um par de sandálias de dedo, uma borrifada de perfume na nuca e outras duas em cada um dos pulsos e algumas gotinhas de uma água de colônia leve nas partes mais íntimas – e só.
Eu havia entendido seu recado quando, umas duas semanas depois que ele me levara para morar com ele, disse baixinho, enquanto me despia, que eu usava roupas demais pro tesão que ele sentia quando chegava em casa. Depois daquela noite, deixei de lado as roupas de grife que vestia pensando agradá-lo. Nesta época, eu ainda trabalhava, mas, por sorte, largava o serviço mais cedo do que ele. Ía o mais rápido possível para casa e, sem tirar o olho do relógio, fazia uma higiene íntima caprichada, me banhava, hidratava a pele, me perfumava e esperava por sua chegada, enquanto esquentava o jantar preparado pela empregada.
Na maior parte das vezes, ele aparecia quando eu ainda punha a mesa. Quando passei a usar apenas a camiseta, foi mais rápido sentir suas mãos ávidas me bolinando o corpo, para depois me pôr na cama e me possuir como se dependesse daquilo para viver. Na verdade, nem sempre chegávamos até a cama: era comum ele me comer já no meio do caminho, às vezes com as calças ainda no meio das pernas e a camisa jogada em qualquer lugar.
Depois, quando perdi o emprego, não precisei mais de tanta ansiedade e me preparava com mais calma. Nos primeiros meses, ainda saía para procurar trabalho, mas, diante da dificuldade, um dia ele me perguntou se não estava bom daquele jeito. “Você sabe que nós não precisamos que você trabalhe. O que eu ganho dá pra nós dois e ainda sobra”. Eu a princípio recusei a ideia, me senti mal com aquela situação, mas ele me convenceu quando disse que estava adorando saber que podia contar comigo o tempo todo em casa e que se sentia mais tranqüilo assim.
Insistiu, disse que não queria me proibir de trabalhar, mas que se isso era possível, por que não aproveitar para eu ter uma vida mais tranqüila ao lado dele? Acabei aceitando, mas combinamos que, então, em contrapartida, eu cuidaria da casa e das coisas dele, pois do contrário me sentiria um sanguessuga. Ele dispensou a empregada e ficamos apenas com uma diarista semanal, que fazia a limpeza mais pesada e preparava as guarnições e um ou outro prato, que eu descongelava e servia junto com o que cozinhava para ele.
A princípio a situação era estranha para mim. Eu me sentia um desocupado, um vagabundo, mas ele não via sentido em nada disso. “Você começou a trabalhar muito cedo, muito mais jovem do que eu... Agora está tendo um descanso, pode se dedicar mais a você e a mim. Por que tanta culpa...?”, e me beijava na orelha, divertindo-se com as cócegas que eu sentia quando ele fazia isso.
Logo, ele sugeriu, já que me sobrava tempo, que eu freqüentasse a academia diariamente, para me manter em forma (“mas sem exagerar, porque gosto do teu corpo macio assim; não quero você todo musculoso”, ele advertiu). Depois, contratou uma massagista duas vezes por semana, me matriculou em aulas de dança, num curso de desenho e em outro de culinária, me indicou um salão onde passei a ter limpeza de pele todas as semanas e onde passei também a cortar o cabelo. Ufa! Eram tantos compromissos que cheguei à conclusão que, mais uma vez, ele tinha razão: aquela nova rotina, para minha surpresa, foi se tornando indispensável, porque não imaginava mais a felicidade de nossa vida a dois sem ela. E, evidentemente, eu não teria como fazer nada daquilo se ainda trabalhasse.
Ele elogiava a suavidade da minha pele, notava como vagarosamente meu corpo ia se moldando, tornando-me mais vigoroso sem perder a suavidade. Elogiava quando eu fazia uma receita nova na cozinha ou estava com o corte de cabelo recém-atualizado. Como decerto ele tinha previsto, tudo aquilo foi me aperfeiçoando, melhorando. Em resumo: eu ia ficando mais gostoso e com mais recursos para agradá-lo – e isso era o que eu mais queria na vida.
Um dia, uma tarde de domingo, me viu cortando as unhas e mandou que eu procurasse uma profissional. Eu ri, disse que ele não tinha do que reclamar, já que eu mesmo cortava as unhas dele e ele gostava muito. Ele me abraçou por trás, encheu minha nuca de beijos e me disse ao pé do ouvido: “Mas eu sou uma coisa e você é outra coisa; eu não sou caprichoso como você pra cortar tuas unhas tão bem como você faz, e você não precisa ter esse trabalho com você mesmo. Quero que uma manicure cuide de você com a delicadeza que você merece”.
Eu ri, lisonjeado, mas ao mesmo tempo surpreso com aquela preocupação dele. “Além do mais, seus pés estão meio ásperos. Você precisa de alguém que cuide dos teus pés e das tuas mãos pra mim”. Como eu imaginava, logo na tarde de segunda-feira ele ligou para saber se eu havia providenciado a manicure/pedicure e me passou o telefone da que atendia sua secretária. Não reclamei de ter mais um compromisso semanal: eu nunca havia me sentido tão cuidado na vida.
Deitado na cama, meio tontinho, deixei que ele tirasse minha cueca, cuidadoso como sempre, e, flexionando o corpo sobre mim, depositasse o cacete sobre meus lábios. Eu os abri e, com ele aproximando a pélvis, fui sorvendo aquele membro que todas as noites vinha me penetrar. Ele foi entrando naturalmente, enchendo minha boca à medida que crescia dentro dela, e eu mamava com dedicação, sentindo o gostinho do restinho de esperma que sobrara das caralhadas que ele me dera pouco antes de esvaziarmos a primeira garrafa de vinho.
Orientando minha cabeça para que eu não perdesse seu pau, ele se pôs de lado, ajeitou os travesseiros em minha nuca para que a inclinação facilitasse minha tarefa e estendeu uma mão entre minhas pernas. Com agilidade, me penetrou com os dedos, que sem dificuldade me percorreram em busca da próstata. Desde que firmamos a relação, quase um ano e meio antes, eu não passara um dia sequer sem ser comido por ele – exceto nas poucas vezes em que ele teve de viajar a trabalho. A freqüência e a intensidade dois coitos foram gradativamente aumentando a capacidade de dilatação do ânus e deformando meu reto, de modo que em poucas semanas ele havia me moldado de maneira a receber seu volume sem dificuldade. “Você precisava de um homem que te fizesse uma cucetinha de verdade, meu amor. Eu fiz ela perfeita pra você ter teu prazer”, ele me disse uma vez, e fingi acreditar que ele me deformara daquele modo pensando mais em mim do que nele...
Mas ele realmente se preocupava com meu prazer, e agora me acariciava por dentro justamente para isso, enquanto meus gemidos eram abafados pelo seu membro que me tomava toda a boca. Sua atenção e gentileza comigo me conquistaram desde o primeiro contato, quando num bar gay ele mandou um bilhetinho pela garçonete. “Você está sozinho e eu também... Não podemos ficar sozinhos juntos? Quero ver você feliz”. Eu olhei para o homem que a garçonete indicara e recebi um sorriso contido, mas convidativo. Titubeei um pouco por timidez, mas me rendi quando ele piscou o olho e charmosamente fez um gesto para que eu me sentasse junto a ele.
Encantei-me quando percebi que minha timidez o encantava: a maioria dos caras força a barra para descontrair, mas ele parecia fazer justo o contrário. Parecia se deliciar com meus sorrisos envergonhados, com minhas mãos que não sabiam bem o que fazer diante daquele homem, um pouco mais velho e bem maior do que eu, que me olhava no fundo dos olhos mesmo quando dava aquele seu meio sorriso. Dali, após conversarmos por um bom tempo, ele me levou para um hotel e me comeu pela primeira vez com o desembaraçado de quem há muito tempo conhecia e tinha propriedade sobre meu corpo. Eu não demorei nada a me entregar totalmente nos braços daquele homem tão grande, que me envolvia inteiro com um ardor quase animal sem deixar de lado a delicadeza de quem não quer assustar a presa cobiçada. Quando abri os olhos após uma careta pela dor sentida pela primeira entrada do membro, ele me encarava sereno, como que já previsse minha reação. Então, sem falar nada, acalmou-me apenas com alguns beijinhos, mantendo o cacete firme, sem render-se aos tímidos movimentos de rejeição que meu corpo involuntariamente fazia.
Logo depois, meteu um pouco mais, apertando-me com força contra os pelos de seu tórax. “É assim mesmo, meu doce. É sempre assim, mas logo vai passar; sempre passa, meu machinho pequenino”, sussurrou em meu ouvido. Foi a primeira vez que me chamou daquela forma, e semanas depois, numa das raras vezes em que expôs seus sentimentos em palavras e já certo de que eu me tornara dele e que não haveria perigo em deixar as coisas claras, explicou durante uma foda: “Você me fascina porque é o mais passivo que já conheci, e de todos os passivos que conheci você é o que mais parece macho, um machinho mesmo; é o que menos se percebe como realmente é”. Eu engoli em seco, pasmo diante do que ele dizia, mas ao mesmo tempo enfeitiçado pelo peso de seu corpo sobre mim. Continuou: “Um machinho passivo, um machinho pela metade, um machinho pequenino feito pra me dar prazer e pra eu ensinar”.
Quis perguntar o que ele achava que iria me ensinar, mas o torpor que sentia me impediu e, minutos depois, entrei num dos muitos orgasmos infindáveis que ele me provocava, e logo ele mesmo inundou-me de esperma. Só bem depois, já na cozinha, voltei ao assunto. “Ensinar a tua outra metade, meu doce”, ele respondeu, sem dar muita importância. “Que outra metade?” Ele se aproximou, me pegou pela cintura e, me levantando do chão pelos quadris, me deu um beijo caprichado. “Essa metade que te vem quando eu faço isso, meu machinho pequenino, meu machinho pela metade...”.
Naquele um ano e meio, ele me tornara o homem mais feliz do mundo e, quando eu olhava para trás, não sentia saudade do que tivera antes de conhecê-lo, ainda que não fosse propriamente infeliz, mas apenas carente. Tantas vezes lhe declarei isso e lhe agradeci, mas ele apenas sorria e em resposta me enchia de beijos e carinhos. Não era de conversar muito sobre sentimentos e foram raras as vezes em que falamos sobre nós mesmos, sobre a nossa relação. Mesmo sentindo necessidade de transformar toda aquela feliz reviravolta em palavras, meu acanhamento diante daquele príncipe maravilhoso me impedia de insistir em qualquer assunto que ele desviasse.
Eu sentia falta de alguém com quem compartilhar tudo o que estava vivendo e todas as transformações em minha vida. Sem que eu percebesse, eu me afastara dos poucos amigos com os quais tinha algum convívio para dedicar-me cada vez mais a ele e àquela doce rotina de tornar-me cada vez melhor para agradá-lo. Havia deixado o emprego e minha profissão de bibliotecário e as reuniões de família foram se tornando cada vez mais entediantes e eu cada vez mais ausente.
Meus pais e irmãos sabiam da minha homossexualidade, embora esse assunto não fosse muito abordado entre nós, e cheguei a apresentá-lo a eles, num almoço no qual tudo correu bem e me esforcei para que não notassem o óbvio: que estavam conhecendo o macho de seu filho ou irmão passivo. Minha pose de machinho não era capaz de compensar as evidências: nossas diferenças físicas, o respeito natural que eu demonstrava por ele, sua posição de comando embutida em todos os comentários que fazíamos sobre nosso dia-a-dia.
Meu irmão, que percebera desde cedo minhas tendências homossexuais e que, inicialmente apenas tolerante, foi aos poucos se tornando meu maior incentivador a buscar a felicidade do meu próprio jeito, aproveitou um momento a sós, na saída do banheiro, para comentar baixinho, entre risos: “Manera nessa coisa de ‘ele me levou pra lá’, ‘ele me levou pra cá’, que daqui a pouco isso vai começar a incomodar o papai. Não precisa dar tanta bandeira assim porque todo mundo já entendeu...” Eu fiquei perplexo, porque, seguro da minha masculinidade, nem me havia passado pela cabeça que pudessem perceber meu papel na relação. Mas eu o incorporara de maneira tão natural que, via agora, se tornara involuntário torná-lo evidente.
Não era a primeira vez que eu era passivo numa relação. Bem longe disso, na verdade. Na segunda vez em que nos encontramos, quando ele fumava enquanto fazíamos uma pausa para uma segunda foda, arranjei um jeito de dizer, como quem não quer nada, que eu era versátil. Ele permaneceu em silêncio e eu, constrangido, engatei outro assunto após ele dar uma baforada.
Tempos depois, novamente em sua casa, mas em outra situação, me posicionei de novo como versátil, no meio de uma conversa qualquer. Fiz de propósito, embora tivesse encaixado a palavra numa frase que não dava muita importância ao assunto, pois queria ver se ele comentaria alguma coisa. Mas, novamente, ele ignorou. Não deu conversa, como alguns outros já haviam feito comigo: ignorar para, sem ter que concordar com uma mentira, também não me contrariar e me expor ao ridículo. Mas, até ali, eu realmente acreditava que eu era versátil. Na verdade, eu queria acreditar que era, pois precisava disso para poder aceitar minha própria passividade.
Eu já estava com 27 anos quando o conheci, e tivera minha primeira vez aos 16, com um colega de infância que só então tomou a coragem de me agarrar. Não vivia em boates nem lugares de pegação, mas tinha uma vida sexual bastante ativa, normal para um gay que tem uma vida independente. Embora eu nunca tenha morado efetivamente sozinho, saí de casa já no meio da graduação em biblioteconomia, dividindo apartamento com colegas da faculdade. Antes de ele me levar para morar com ele, eu dividia um apê com uma amiga que conhecera no emprego anterior. Meus companheiros de casa nunca me inquiriram sobre a ausência de namoradas, mas meu comportamento masculino e a também ausência de namorados creio que cuidavam para que eles não ultrapassassem limites sobre a minha vida. Minha sexualidade, eu a exercia fora do ambiente que compartilhava com eles. E sempre fora dessa forma, mesmo quando tinha relações fixas.
Elas não foram tantas assim, mas em todas fui exclusivamente passivo, mesmo me declarando versátil e alguns dos namorados idem. Mas em todos aqueles anos eu só fora ativo duas vezes, ambas em encontros avulsos, também com versáteis, e ambas insatisfatórias. A primeira vez, já no início dos vinte anos, ocorreu por insistência minha e, após meter no cara por um bom tempo sem conseguir uma ejaculação, ele deu um jeito de, numa troca de posição na cama, efetuar também uma troca de papéis e enfiando em mim. Mesmo a contragosto, o que senti na hora foi um alívio por me livrar daquela situação, e deixei que ele me comesse até gozar, mesmo sem camisinha. A que eu usara para comê-lo permaneceu, inútil, pendurada em meu órgão flácido enquanto era sodomizado de quatro. A segunda vez foi mais frustrante, porque novamente fui incapaz de gozar enquanto penetrava o sujeito, concentrando-me para não perder a ereção – e nunca tive uma ereção muito vigorosa, bem ao contrário. Até que, entediado, o rapaz fez com que eu saísse de cima dele e perguntou se eu não preferia que ele me batesse uma punheta para eu gozar logo e irmos embora.
Parece inacreditável, mas mesmo diante de tantas evidências, eu insistia comigo mesmo que eu, no fundo, era versátil. Só na convivência com ele, e especialmente após ele me dizer que eu era o mais passivo que ele já tinha conhecido, é que comecei a me acostumar com aquela verdade e conformar-me com ela.
Creio que foi a naturalidade com que ele encarava meu modo de ser e, talvez mais importante do que isso, a naturalidade com que ele tratava as nossas evidentes diferenças que me fizeram, como num passe de mágica, aceitar-me com toda tranqüilidade. Muito rapidamente, passei a encarar meus “tempos de versátil” como algo ocorrido há séculos, tão sem propósito que poderia fazer rir, de tão absurdo. Eu sabia que o mágico que dera aquele passe era ele: fora o cuidado dele comigo, a segurança que eu sentia a seu lado e a proteção que sua presença me transmitia, na cama e fora dela, que me fizeram tão repentinamente perder o medo da verdade.
[continua na segunda parte]