A curiosidade guiou meu corpo e eu girei sobre meus calcanhares. Meu olhar seguiu uma linha reta que atropelava cabeças em movimentos rápidos e risadas exageradas. No final daquela via, beirando a escuridão de alguma passagem para outro espaço, eu não consegui focar em mais nada além dos dois olhos azuis que me miravam em um silêncio angelical. Imóvel, a figura que me observava, distante, parecia guardar a passagem para o paraíso e todo aquele caminho até ele era o próprio inferno.
Eu quis duvidar daquele momento. Eu quis duvidar do táxi que tomei, da cor das flores compradas, da apresentação de casa cheia, do abraço de Carlo, das mãos quentes de Catarina e dos olhos brilhantes que me assistiam. Eu quis duvidar da minha sanidade e quis acordar para a realidade. Mas aquela era, de fato, real. Eu estava mesmo a alguns passos de Bernardo, que lançou para mim um sorriso contido ao mesmo tempo em que arrumava a gola da jaqueta jeans bastante surrada que vestia. Do que pude ver, eu reconheci cada costura da peça. Eu já estive incontáveis vezes sobre ela, e sobre o corpo que a vestia.
E então eu sorri. Um sorriso abobalhado e medroso, talvez. Eu não poderia acreditar cegamente naquilo que estava acontecendo. Depois de tantas vezes fantasiando nosso encontro, é claro que eu não poderia cegar-me diante da minha capacidade imaginativa.
Novamente duas mãos quentes pousaram sobre meus ombros, agora pelas minhas costas.
- Ele está lindo, não está? – Catariana sussurrava livre da raiva que carregava segundos antes. - Os olhos são os mesmos: magicamente azuis, brilhosos, mas tristes em algum nível. Veja aquela boca. Eu sempre invejei Bernardo por isso. – Ele me fez rir quando também riu antes de continuar. – Tão pequena e tão carnuda. Você precisa ouvir as coisas doces que ele diz, quando não está sendo um brincalhão provocador.
- Você precisa me garantir que isso está acontecendo mesmo. Parecerá bobo pedir para ser beliscado? – Eu sussurrei mantendo a figura presa em meu olhar. Ele continuava imóvel como uma aparição inesperada, mas me assustar parecia ser a última de suas intenções.
- Prove o sabor da realidade, pequena criatura fantasiosa. – Ela me respondeu com um leve empurrão enquanto tomava as flores da minha mão.
Desacreditado, eu dei cada passo com lentidão na esperança de dar tempo para que tudo se desmoronasse antes do encontro entre nós dois, caso aquilo não passasse de uma ilusão. Mas não, nada daquilo sumiu diante dos meus olhos. Estava tudo ali enquanto eu me aproximava.
Parte da minha descrença vinha de como eu enxergava ele naquele momento. Era exatamente como ele aparecia nas minhas fantasias: o cabelo dourado descia do alto da cabeça, mas parava na altura das orelhas. Apenas na frente que alguns fios desciam um pouquinho mais. O queixo continuava liso, como sempre fora, mas agora exibia a marca da barba que insistia em nascer ali e ele não tinha crescido nada. Claro que seu corpo evoluíra, mas Bernardo continuava franzino. Tão igual que a jaqueta desbotada ainda lhe servia perfeitamente.
É claro que ele se deixou ser analisado e fez o mesmo comigo. Como ele, eu mantinha muitas características: o cabelo curtíssimo, quase raspado, as bolsas embaixo dos olhos, a testa grande e o queixo também barbeado.
Não sei por qual motivo, mas eu queria falar primeiro. Antes que eu pudesse pensar em formular algo entendível, eu vi Bernardo liberar sua voz mansa para mim:
– Que dramáticos!
Eu tive que rir porque era isso que ele queria fazer. E eu o entendi: se nossa última troca de olhares tinha sido em um momento tão difícil, que nosso reencontro fosse leve, como um dia fora a nossa descoberta como dois garotos que gostaram imediatamente um do outro.
– Bem do tipo de coisa que eu escreveria. – Confessei.
– Tem certeza que não somos personagens em um universo criado por alguém que colocou em você a própria personalidade?
– Os descolados diriam que isso “é muito Black Mirror.”
– Eu sei do que você está falando. – Ele disse para em seguida rir despreocupadamente.
No meio do meu riso eu precisei me forçar a acreditar na veracidade daquele momento. Tocá-lo sem avisos seria invasivo demais? Eu precisava senti-lo de alguma forma.
– A gente sempre idealiza os reencontros, não é? – Ele já estava em outro assunto e eu continuava hipnotizado pelos olhos pequenininhos.
Eu engoli algo que se formou em minha garganta ao ouvir Bernardo dizer aquilo. Eu idealizei esse momento uma centena de vezes. Uma centena ou mais.
– É sempre uma visão romântica ou cinematográfica demais – eu forcei a saída das palavras.
– Já me imaginei correndo em sua direção sob uma fina chuva. Um beijo substituía todas essas palavras.
– Não brinca! – Eu sorri. Aposto que meu rosto estava todo corado. Olá, adolescência.
– É sério – ele disse balançando os ombros em um riso faceiro e aquilo me desmanchou. – Mas os encontros e reencontros se dão da forma como devem ser, não é? Nem sempre será romântico ou super dramático.
– Mas sempre será significativo de alguma forma – eu completei a frase dele.
Ele segurou o que queria dizer por alguns segundos e continuou me olhando em uma serenidade que me envolvia. Não só me envolvia, como fazia reaparecer em mim a vontade de permanecer olhando-o pelo resto da vida.
– É bom ver você. – Eu confessei antes que ele pudesse falar. Se eu tivesse o deixado falar, talvez fossem essas as palavras usadas. Mas também poderiam ser outras.
– Ver você é melhor do que eu achava que seria nas minhas idealizações. – Ele também confessou um pouco mais contido.
– O fator realidade melhora, mas também pode tornar as coisas piores – eu terminei analisando o que eu mesmo tinha dito.
– Escritores! – Ele riu.
Eu parei o mundo ao redor para focar naquela risada e tudo virou nada quando eu vi seus dedos se esticarem em minha direção. Eu não sabia qual era o destino deles, mas pedi aos deuses que sua intenção fosse me tocar. Os alvos das minhas preces estavam de bom humor, pois o destino final era mesmo meu corpo. Os dedos pararam em meu cotovelo e ele os escorregou um pouquinho para cima, sentindo-me real. Eu que queria aquilo tanto quanto ele, não deixei que o toque acabasse e coloquei a outra mão do braço livre sobre a mão dele. Um toque suave abriu caminho para um apertar de dedos. Os meus sobre os dele.
Bernardo olhava nossas mãos, eu admirava e me apaixonava por seus olhos. Quantas vezes eu me apaixonaria por ele na mesma vida? Ou melhor, numa mesma noite?
– Faça a pergunta certa. – Ele praticamente ordenou.
Se eu o conhecia e se pouco tinha mudado, ele estava louco para sair dali. Eu sabia mesmo o que perguntar. Ou naquele caso, o que sugerir.
– Vamos sair daqui – eu emplaquei, arrancando dele um sorriso sincero de concordância.
– Não sei quantas vezes você já me propôs isso. Parece até algo inerente a nós. Sempre saindo pelos cantos.
De fato ele estava em pé ao lado de uma passagem que dava para a porta de saída lateral. Ciente de que não precisava de explicações, somente lancei para Catarina um sorriso que substituía qualquer coisa que eu pudesse falar e ela me entregou um olhar que dizia tudo. Ele me dava até a permissão de fugir daquela pequena comemoração e ainda carregar comigo um membro de sua equipe. Por um segundo eu vi Bernardo abrir caminho entre fios e restos de materiais que pareciam ter sidos esquecidos ali há tempos e ele estendeu sua mão para mim, a fim de garantir que nada fosse me acontecer. Eu não perderia a oportunidade de sentir aquele toque que tanto me fez falta e em vez de apenas segurar sua mão eu entrelacei nossos dedos, que ainda pareciam ajustados uns aos outros como se o tempo e a distância não tivesse existido entre eles.
Do lado de fora eu não quis forçar nada e soltei nossas mãos. Ele olhou a distância nascer outra vez entre elas e estendeu seu braço para mim.
– Segura. – Disse tão decidido.
– Sua mão?
– É claro, né? – Ele mesmo fez isso, pois viu que eu não passava de uma pedra embasbacada.
Eu tive que sorrir e aposto que outra vez fiquei corado. Olá, juventude. Os 39 anos pareciam não existir e éramos novamente dois jovens descobrindo a sensação do toque. Ou mais que isso: a textura do pertencer.
Naturalmente, como se nossos corpos atendessem um chamado natural, caminhávamos pela calçada na direção oposta à pequena aglomeração formada na frente do teatro. Para trás deixávamos também qualquer assombro de vergonha ou temor. Naquela noite, havia mais coragem em duas mãos grudadas do que no mundo inteiro.
Mas é claro que ele não deixaria de me provocar:
– Não sei nem se eu poderia fazer isso – instigou seriedade.
– Como é?
– Segurar sua mão. Eu não sei se poderia fazer isso. Nos bastidores Eric só sabe falar sobre a noite mais ou menos que teve com o “Ralph, aquele outro cara que escreveu a peça”. Espero que isso não seja considerado uma traição, porque eu odiaria soltar seus dedos.
Em qualquer outro momento aquela frase despertaria em mim a vontade de se esconder, mas eu entendi o tom brincalhão que Bernardo usava para me provocar.
– Ai meu Deus, esqueci de falar para o Eric que sairia com o meu grande caso amoroso. – Eu respondi ainda mais sério.
– Então agora você sai com garotos descolados do mundo das artes?
– Pra ser sincero ele foi o único que conseguiu me arrastar para algum lugar além da primeira fase dos olhares.
Ele apertou meus dedos quando riu.
– Impossível. Você sempre foi bom em conseguir convencer garotos. Eu sou o exemplo mais próximo disso.
– Mas você seria meu de qualquer jeito – eu disse logo em seguida, apressado e orgulhoso.
Não paramos para nos olhar, mas diminuímos os passos. Ele estava com o rosto levemente inclinado em minha direção e nesse exato momento passamos por um poste que iluminou seu rosto de forma graciosa. A pele dourada pedia um toque meu, mas logo ele virou os olhos para o caminho em um riso baixinho e muito, muito gostoso.
– Como sempre tão encantador – o ouvi sussurrar.
Nossa caminhada e conversa não durou muito tempo. Tínhamos dado um tempo para nossas mãos e estávamos mais distantes um do outro quando um vento frio soprou os cabelos da nuca de Bernardo. Eu estranhei aquilo e enfiei minhas mãos nos bolsos da frente da calça, juntando os braços na lateral do corpo.
– Isso é...
– Chuva?
Eu completei, mas nem precisava. Segundos depois de anunciar o óbvio, vários pingos certeiros acertaram minha testa e eu vi Bernardo reclamar ao meu lado, olhando para o alto como se bradar que aquele não era o melhor momento pudesse fazer os pingos repensarem sua trajetória. Eu ri quando os pingos aumentaram e soubemos que uma chuva, de fato, estava caindo. Aos risos e protestos iniciamos uma pequena corrida para a marquise mais próxima e eu novamente implorei aos deuses que me mandassem um táxi, mas a realidade é sempre mais cruel e o que eu vi se aproximar foi o Circular, um ônibus que rodava naquela região da cidade.
– E agora? – Eu gritei.
– Para esse troço, ué.
E eu me lancei outra vez na calçada, não me importando se estávamos há alguns muitos passos do ponto de ônibus e chacoalhei minha mão no ar. Talvez por pena ou pelo horário que permitia uma flexibilidade não vista em outros momentos, o motorista freou o ônibus e as portas se abriram imediatamente. Eu fiz Bernardo entrar primeiro e eu entrei logo atrás dele, ouvindo-o reclamar da chuva ao dar boa noite para o condutor. Nem parecia ter gritado com a mãe natureza segundos antes.
A catraca parou Bernardo e eu parei atrás dele, próximo demais. Eu já tinha pescado uma nota do meu bolso e passei para o cobrador antes que Bernardo se movesse para fazer isso.
O interior do circular estava vazio e a chuva aumentara, molhando o vidro e tornando a cidade lá fora em um borrão bonito e iluminado. Sentamos distantes do cobrador e entre risos nos olhamos, desacreditados. O topo dos ombros dele estava molhado, assim como os meus e o cabelo dele era bagunça ainda inacreditavelmente apreciável. Pingos escorriam por nossos rostos e invadi o espaço dele para passar meus dedos em sua testa. Ele fechou os olhos e eu tentei secar a região dos olhos. A boca molhada e muito vermelha estava entreaberta e eu não consegui mover meus olhos para outra região. Os pingos que escorreram foram parar dentro dela e ele a fechou, como se saboreasse o próprio gosto da chuva misturado ao salgado de sua pele. Aquele apertar de lábios foi o estopim de uma explosão de desejos e eu precisava fazer aquilo que queria.
Deixei meus dedos sobre os olhos dele, impedindo-o de abri-los e toquei seus lábios com os meus. Ambos estávamos molhados e quentes. Ele assustou quando me sentiu, mas sabia o quanto aquilo era inevitável e entregue me retribuiu o beijo que foi curto, mas necessário.
Eu senti sua saliva misturada ao gosto da chuva e a saudade. Eu o fiz sentir meus desejos e os sentimentos acordados pelo encontro. Ele apertou os lábios nos meus e eu os chupei rapidinho para largá-los enquanto liberava sua visão. Ele sorriu quando me viu tão perto e eu desci os dedos para o queixo dele, deixando ali um carinho suave.
– Quase tão romântico quanto o dos filmes.
– Com direito a chuva e tudo – eu completei. – Viu só? O destino nunca brinca.
– Com a adição da realidade brasileira, é claro. – Ele brincou. – Destino esperto.
– Nada poderia ser melhor que isso.
– Nada? – Ele fingiu duvidar de mim.
– Nada. O mesmo cheiro, a mesma quentura, o mesmo sabor. Só a textura que mudou um pouco. Você não é mais menino. Eu estou beijando um homem.
– Continue falando – ele sussurrou mantendo seu olhar preso nos meus lábios. – Eu desço na próxima curva.
– Mas já? Você não vai descer. Você vem comigo. O destino também previu isso.
– Continue falando – ele insistiu.
– No meio de muitos detalhes acrônicos, o meu Bê. Delicioso como sempre foi.
Ele sorriu e aproveitou que eu estava meio de lado para olhá-lo e pressionou sua testa ainda úmida contra os meus lábios. Eu beijei os cabelos que estavam caídos sobre ela e o vi sorrir para logo em seguida se levantar e tentar sair daquela armadilha que era o banco. Eu não ousaria levantar e entregar uma formação exagerada na região da virilha causada pela excitação de tê-lo outra vez em meus braços. Ou quase em meus braços.
Quando em pé ao lado do banco, eu o vi dar sinal, avisando que desejava descer na próxima parada e alisou minha nuca molhada. Os dedos se arrastaram pelo cabelo que provavelmente espetava seus dedos.
– Você não vem mesmo comigo?
– Não. – Respondeu-me com uma doçura apaixonante. – A pressa não nos veste mais. Os tempos são outros, os ritmos também. Encontre-me onde você sabe onde. Estarei entre figurinos e atores que despertam o seu desejo sexual.
Seus olhos brilhavam em outro riso brincalhão e eu tomei seu pedido para mim. Eu deixei minha cabeça pender para o lado e encostar-se a sua barriga quente e mais seca que os ombros. Ele a segurou, cobrindo minha visão por alguns segundos com a jaqueta que acompanhara nossa história. Eu gargalhei quando isso ele fez e virei meu rosto para deixar um beijo um pouco abaixo acima do seu umbigo. Num riso provocado pelas cócegas que sentiu, ele se afastou para a porta e pediu que eu ficasse no banco. O ônibus parou, as portas se abriram mostrando a chuva fina que caía naquele momento e ele virou-se para fazer um último pedido antes de descer:
– Tenha a decência de me levar flores também.
Com o sorriso causado pelo último pedido eu fiz todo o caminho de volta para casa. Com aquele mesmo sorriso eu arranquei minhas roupas que guardavam o cheiro dele e me joguei sobre os lençóis da minha cama. Ainda sorrindo eu enfiei meu rosto no travesseiro e repeti a lembrança daquele curto beijo dentro do circular uma dezena de vezes. Esse era um momento que valia a pena ser memorizado em todos os detalhes.
Com o sorriso de quem se encontrara com o amor, eu adormeci sobre uma camada espessa de contentamento e paz. Pura e leve paz.
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Criei suspense, né? Foi desnecessário? Foi, mas se sintam abraçados com esse novo capítulo. :D
Plutão, não preciso mais brincar, você já sabe quem era. ;) Espero que tenha gostado de como tudo rolou. Todos os abraços do mundo pra você!