Mesmo não tendo mais a companhia de Machadinho, o clima no trabalho era legal. O bom humor e a camaradagem dos peões me distraíam da monotonia das tarefas. Não era propriamente divertido, mas, no fim, estava dando pra levar de boa – e eu ainda tinha o prêmio de, volta e meia, ouvir papai me elogiar; reconhecer meu esforço.
Sentia falta quando ele ficava ausente, mas geralmente não se demorava muito. Resolvia o que tinha que resolver e logo retornava. Eu não escondia minha alegria quando o via de volta. Uma vez, os operários riram de mim, depois que um deles falou:
- Aí o Mateus: já tá abanando o rabo com a chegada do dono!
Caímos todos na gargalhada, inclusive eu e papai. Procurei seu olhar para uma troca cúmplice, mas ele evitou. Eles não tinham ideia do quanto a piadinha tinha de verdade.
Eu e ele não almoçávamos juntos. Dizia que eu ali tinha que ser tão peão quanto os outros, e que peão não come com patrão. Só que eles levavam marmita, e eu não. Não havia cabimento que, além da jornada na obra, em casa e no sexo, eu ainda fosse preparar comida para levar. Teria que acordar a que horas? Repetir o prato do jantar da véspera, nem pensar.
Então, a situação era bizarra: eu almoçava sozinho e ele, que na maioria das vezes não tinha companhia, também – só que em restaurantes separados. Ele me indicou um bar onde a comida era boa e barata, e que ali era o meu lugar. A clientela era composta justamente por homens semelhantes a meus colegas da obra. Não era ruim.
- Tu tem que aprender o que é a vida de verdade – o desgraçado falou. Mas, no fundo, eu mesmo estava achando aquela coisa toda bem interessante.
Ao contrário de papai – tudo conosco era ao contrário! –, eu não sou ciumento. Mesmo quando ele passava a tarde toda fora, não ficava imaginando bobagens. Somente naquele dia fiquei com uma pulga atrás da orelha.
O celular dele tocou insistentemente e ele nada de vir atender. Um operário estranhou, fez sinal para que eu pegasse o aparelho, mas eu não fiz: não tinha licença para isso; papai nem precisara me advertir. Até que ele veio, olhou a tela para identificar a chamada e foi quase correndo para atender junto à janela. Ficou um bom tempo lá, e falava baixo. Depois, voltou, pôs de volta o celular sobre a bancada de trabalho e retornou para um dos quartos, onde vistoriava um acerto de última hora.
Enquanto eu terminava a pintura do rodapé, fiquei matutando sobre o que tinha se passado. Seu comportamento tinha sido estranho. Ele era dessas pessoas irritantes que berram quando falam ao telefone e nem se importam que estejam ouvindo, até mesmo quando tratam de assuntos particulares. Na capital, volta e meia me revoltava nos ônibus, por conta de passageiros assim. Mas, tudo bem, nele até achava gostoso; coisa de homem mesmo, de macho que fala grosso...
Nesse dia, porém, ele conversara num tom de voz baixo, claramente para não ser ouvido – e não foi mesmo. E ainda se afastara de nós, para fazer isso. Ele nunca tinha ido para a janela para atender uma ligação! Podia ser por causa do operário que estava trabalhando naquele quarto também, mas podia ser para que eu mesmo não escutasse: só havia nós dois ali.
Aquilo ficou me remoendo até o fim do expediente. Comecei a ver pontas soltas para interligar e criar suspeitas: nos últimos dias, ele tivera saídas longas. Passara duas tardes consecutivas fora. Tinha sido a primeira vez que isso tinha acontecido, em mais de um mês, quase dois. E, agora, aquele telefonema misterioso.
- Pai.
Ele ruminou, enquanto dirigia.
- Não fica bravo comigo.
- Que foi?
- Por que você se escondeu pra falar no telefone, aquela hora?
- Não me escondi.
- Você não queria que eu ouvisse. Quem era? Está acontecendo alguma coisa?
- Uma amiga minha. Você não conhece. Era amiga da tua mãe também. Ficou viúva antes de mim.
Fiquei em silêncio. “Uma amiga”.
- Que foi? – disse, meio rindo. – Minha mulherzinha está com medo do marido ter arranjado uma amante?
Fiz uma careta, mas ele não chegou a ver.
- Te falei que de vez em quando sinto falta de buceta. Você sabe disso.
- Você está transando, pai?
Ele demorou um pouco para responder, mas respondeu:
- Não. Só contigo, e para mim está muito bom. Mas, se estivesse, não teria nada a ver conosco. Tu não tem nada a ver com buceta. Isso é comigo.
Fiquei em silêncio.
- Mas eu não estou comendo a Wilka. Fui para a janela só porque a mulher fala baixo; não consigo entender direito o que ela fala.
- Você também falou baixo.
- Teu pai é grosso, mas sabe ser educado quando tem que ser. Essa dona é meio pentelha... Mas é boa pessoa. Gostava muito da tua mãe, apesar de ter um olho comprido aqui pro gostoso.
- Então, ela quer te dar. É isso? É isso, pai?
- Acho que sim. Ela é decente, ficou viúva há três anos. E, que eu saiba, não teve ninguém depois disso. Tem suas necessidades.
Eu estava realmente bufando com o cinismo dele. Mas, no fundo, não acreditava que estivesse tendo qualquer coisa com a tal mulher. Ou, sei lá, talvez acreditasse, mas fingia que não.
- Decente? A mulher fica secando o marido da amiga e você diz que ela é decente????
- Manera os termos, garoto.
- Tá. “Ela ficou de olho em você”. Isso é respeitar minha mãe? Ser amiga dela?
- A Wilka nunca tomou nenhuma iniciativa. Nunca deu realmente em cima de mim. Mas um homem percebe quando encanta uma mulher. É que você não sabe dessas coisas – disse, e fez então uma pantomima de galã, para me irritar: – Sabe como é, né, Mateus... Fica difícil não olhar para um homem como eu...
Começou a rir da minha cara. Como sempre. E ainda completou:
- Mas disso você sabe.
Durante o jantar, não me saíam da cabeça as palavras que disse depois, ainda no carro: “Você vai acabar entendendo a história com essa dona. Vou te trazer um presente um dia desses, e você vai entender”. Insisti, mas, rindo, não explicou mais nada.
Fiquei imaginando mil coisas enquanto preparava o jantar. A melhor delas é que a mulher era dona de uma joalheria na capital e ele estava negociando com ela um anel de noivado para me dar – ou até uma aliança de casamento, quem sabe. Por isso, eu acabaria entendendo tudo quando ele me desse o presente – ou seja, a aliança. De toda forma, logo, logo, eu pretendia insistir para saber mais daquele mistério todo.
Mas não pude levar à frente meu plano, porque no jantar ele veio com mais uma novidade.
- Amanhã tu não vai para a obra comigo.
- Por quê? Você vai ter um compromisso antes?Então, vou ter que sair mais cedo de casa. Não sei a hora que o ônibus passa. Sei que de um pro outro demora muito.
- Não, Mateus. Tu não vai comigo nem vai sozinho. Tu não vai mais.
- Como assim?
- Não trabalha mais lá. Hoje foi teu último dia.
Fiquei olhando para ele, tentando entender. Ele ficou impassível.
- Eu fiz alguma coisa errada? Você disse que eu estava indo...
- Muito bem; indo muito bem. Mas não quero você lá.
- Eu não estou entendendo, pai.
- Não precisa entender.
Insisti.
- Cansei de te ver no meio de macho. Isso não vai dar certo. Você tem um fogo que não apaga nunca e a peãozada anda rindo demais pra tu.
- Isso de novo, pai...? O Machadinho já foi demi...
- Ele vai voltar. Liguei para ele hoje; está só fazendo um biscate. Amanhã mesmo vai estar de volta. Ele é bom no serviço e tu não vai estar mais lá. Então, fico com ele de novo.
- Pai, isso...
- Qual é, Mateus? Tu nunca gostou de lá. Reclamando do quê?
- Eu gosto, sim.
- Porra nenhuma. Tu nunca reclamou porque quer me agradar.
E era mesmo verdade. Como sempre, ele tinha razão.
- Além do mais, não gostei daquela brincadeira do Givaldo, hoje.
- Do rabo abanando?
- É. Não sei se estão desconfiando.
Eu ri.
- Claro que não, pai. Deixa de paranoia...
- E tuas mãos, também.
- Minhas mãos?
- Não quero mão de macho me pegando. Vão acabar ficando grossas, feito as minhas.
- Mas eu estou passando o creme, como você mandou. Passo até no trabalho; me escondo no banheiro, passo e depois ponho as luvas...! Você sentiu elas grossas?
- Um pouco só. Mas vão acabar ficando mais. Não quero.
- Por que não pensou nisso antes, então?
O olhar dele meteu medo. Voltar atrás numa decisão não era de seu feitio. E eu acabara de pôr o dedo na ferida. Voltou à comida, sem responder.
- Além do mais... – continuou, depois de um tempo. – Não está certo isso com você. Tu tá sobrecarregado; eu vejo. Já é magrelo; cansado do jeito que chega, daqui a pouco cai duro aqui no chão.
Ele me ofendeu:
- Magrelo?
Ele parou e me olhou. Sua expressão parecia impaciente, mas se desfez. Sorriu.
- Modo de dizer. Só pra tu parar de teimosia. Você não é magrelo; é magrinho. Tu sabe que eu gosto.
Agora, fui eu quem sorriu. Eu gostava quando a gente namorava assim.
- Às vezes quando estou te fudendo me dá vontade de te levantar e ficar te rodando na ponta do dedo.
Esse era o modo de papai se declarar para mim.
- Bom, então vou ter meu tempo de volta... – falei, com voz contente, pondo fim à minha refeição.
- Isso. Vai poder cuidar direito do teu pai, da casa, do teu cuzinho... Tudo como era antes.
Alvorocei-me novamente:
- E eu não cuidei? Meu cuz...
- Chega, Mateus. Tu tá querendo brigar com teu pai? É isso?
Fiquei calado. Mas ele tinha razão, de novo. Eu estava o tempo todo procurando algo para brigarmos, apesar da trégua de todo aquele xodó sobre minha magreza.
-É que essa história dessa amiga da mamãe... Desculpa, pai, mas eu... Você me deixou meio chateado com isso.
- Não tem que ficar chateado – parou um pouco. – Aliás, esse bife está meio duro.
- Você comeu ele inteiro.
- Não está ruim; só duro. Além do mais, tu sabe como é a minha fome.
Fiquei olhando. Voltei à carga:
- Mas, pai, o que tem essa mu...
Bateu com a mão na mesa:
- Caralho, Mateus!
Os talheres pularam.
- Esquece essa dona. Tu vai ganhar um presente de coração, já te disse.
Se eu queria irritá-lo, consegui. Mas eu não queria. Quando completou a bronca, meu pau mostrou que, no fim, eu tinha gostado mesmo:
- E tira logo essa mesa que eu vou te meter pra você ficar calminho. Aproveita que não tomei banho; aproveita tua tara com meu cheiro sem banho pra me fungar quando eu estiver dentro de ti.
Na manhã seguinte, não pude esconder minha animação por voltar a ter os dias livres. Ele mesmo pareceu se contagiar com minha alegria. Antes de ele abrir a porta, quando eu acariciava o peito dele, após nos beijarmos, disse:
- Não pensei que a obra estava te fazendo tanto mal; não tanto assim. Você hoje está... Tu tá lindo, garoto.
Minha antiga rotina voltou. Pus em dia as pequenas tarefas da casa que vinham se acumulando, fui ao mercado para repor algumas coisas da dispensa, me preparei para ele com toda a calma, caprichei no jantar... Tinha até tirado um cochilo à tarde, para estar bem disposto quando ele me pegasse, e não foi em vão: ele mesmo comentou a diferença para com os últimos dias. Me fudeu como um touro – e dos reprodutores. Acabamos os dois exaustos. Mas essa exaustão era diferente da outra; era boa.
No dia seguinte, aproveitei a tarde para resolver logo um velho problema. Não tinha a menor urgência, mas eu estava numa onda de pôr tudo em dia, depois daquele quase um mês ficando fora de casa oito horas seguidas.
O botão da máquina de lavar – um modelo antigo – estava muito desgastado; feio mesmo. Funcionava, mas me incomodava. Eu sabia que na estrada, perto da entrada da cidade, havia uma loja grande de peças de tudo quanto é tipo e para tudo quanto era eletrodoméstico e mais um pouco. Até, descobri lá, para cortador de grama – e eu nunca tinha visto naquela cidade casa alguma que tivesse gramado. Como o modelo da lavadora era antigo, apostei que justamente por isso eu encontraria. E acertei.
Contente, resolvi passar na obra. Era no meio do caminho para casa e eu não tinha podido me despedir dos peões, que tinham sido tão legais comigo. E iria também encontrar o Machadinho; ia ser bacana revê-lo. Fizeram uma festa quando me viram e, embora continuassem logo a trabalhar, ficamos jogando conversa fora. Papai tinha dado uma saída e fiquei fazendo hora com eles para esperá-lo e dar um alô.
Quando chegou, eu estava justamente ao lado de Machadinho – o que, obviamente, foi um erro. Ele disfarçou uma cara feia, mas não dei muita bola. Fazia parte do charme dele; tudo bem. Mas a coisa foi mais séria. Resolveu uns detalhes com os rapazes e logo mandou que eu descesse com ele para um café.
Não houve café algum. Nem desceu comigo, na verdade. No meio da escada, vociferou:
- Vá para casa agora. Nós conversamos lá.
- Pai...
- Não gostei, e você sabe que eu não gostei. Conversamos em casa. Te prepara.
Aquele “te prepara” me deixou na dúvida. Era uma ameaça ou ele queria dizer que era para eu caprichar que ele ia me fuder de novo a noite inteira? O fato de ele estar agressivo não queria dizer nada: quantas vezes ele não fora assim e tinha me enchido de carinhos depois? De carinhos e de porra também.
Eu estava voltando para a sala com os descansos de mesa na mão quando ouvi a porta fechar, quase num estrondo.
- Põe essa porra na mesa e guarda tuas roupas na tua mochila.
Ele estava realmente feroz. Eu instintivamente me encolhi.
- Pára com essa frescura e vai logo.
- Você vai... vai me mandar embora...?
- É o que eu devia fazer. Mas tu é tão desgraçado que eu não consigo mais viver sem você. Pega as roupas e põe a mochila no quarto.
- Que... que quarto? – perguntei, meio trêmulo, enquanto saía para obedecê-lo.
- O meu quarto, o nosso quarto, panaca. Põe os sapatos lá também; tudo, tudo que é teu.
Apesar de dormimos juntos na suíte de casal, eu continuava a guardar as roupas no meu antigo quarto. Tinha sido minha escolha mesmo, porque me sentia com mais liberdade para me arrumar, quando ele estava em casa. Sempre havia coisas de última hora para resolver, eu era meio indeciso para escolher o que vestir... Era uma frescura, como ele dizia, mas já que o quarto estava vago, resolvi fazê-lo de closet.
Eu não tinha trazido muitas roupas, mas tinha novas, depois que ele decidiu que eu não voltaria para a capital. Na verdade, ele havia me dado um banho de loja; não economizou: disse que me queria sempre bonito para ele. As antigas, que eu não tinha levado, haviam se perdido, já que ele mandara Caio se desfazer de tudo meu que ficara no apartamento.
Pus a mochila onde mandou, com ele atrás de mim. Perguntou se tinha roupa na corda. Não tinha.
- E tua roupa suja?
- No cesto, aí no banheiro. Pai...?
Guiou-me para o corredor, junto com ele. Trancou a porta do quarto a chave.
- Você agora só entra aqui quando eu estiver em casa.
Eu não entendia nada. Como eu ia mudar de roupa quando ele estivesse fora? Fui atrás dele. Entrou no antigo quarto e conferiu se eu não tinha deixado nada. Ía voltar para a sala, quando parou. Voltou-se para mim.
- Aliás...
Fez um sinal para que eu o seguisse.
Virou a chave na porta e abriu novamente o quarto de casal.
- Tira isso.
- Tirar o quê?
- A roupa, garoto. Tira tudo e joga pra dentro do quarto. Agora.
Obedeci o mais rápido que pude, me despindo e jogando de qualquer jeito. Trancou. Seguiu para a sala, comigo atrás.
- Daqui pra frente, tu vai ficar sempre assim quando eu estiver fora.
- Assim como?
- Nu. Só vai se vestir quando eu estiver aqui. E quando sair comigo.
- Pai, mas como é que eu...
- Tu não sai mais de casa, Mateus. Só comigo – disse, já na sala, junto à mesa.
[continua]