Cinquenta e três dias, um pouco mais de um mês e meio. Este tempo havia transcorrido desde a última vez em que havia visto Cauã Audebert. Esse espaço serviu como período de reflexão, para reavaliar nossa condição e por fim aceitar que dali em diante seria tudo ou nada: ou ele largaria todas as amarras que o prendia, ou esqueceríamos um ao outro definitivamente. Nesses dias, pensei em fugir, dar continuidade à vida em outro lugar, para evitar as possibilidades de esbarrar com ele, sabia que se o visse ao lado da família eu ficaria destruído. No entanto não poderia dar-me ao luxo de largar o emprego e se fosse, seria algo para pensar minuciosamente. Talvez uma vida na capital valesse a pena: São Paulo e seus milhões de habitantes, um refúgio perfeito.
Cheguei a compartilhar a ideia com papai e mamãe, mas eles me fizeram desistir:
-Filho, você é maravilhoso, vai encontrar alguém que te irá fazer absurdamente feliz. Tenho certeza disso. – Mamãe alisava meu rosto enquanto me abraçava em palavras. – Não precisa fugir, o que tiver de ser, será.
E, na tarde de domingo, após o quinquagésimo terceiro dia, assim como os anteriores, fiquei a janela olhando a rua, buscando ideias para tocar a vida em frente. Flávio, que há horas atrás dormira comigo no mesmo quarto, havia me deixado sozinho. Estive apreciando sua companhia, pois ela me impedia de pensar muita besteira e consequentemente ficar deprimido. Nós deixamos de nos relacionar sexualmente quando Rogério passou a namorá-lo. O amor entre os dois florescia de tal forma que Rogério optara por adiar seu retorno ao Rio de Janeiro, afim de viver mais uma temporada em Campinas ao lado do novo amado. No entanto, os dois faziam planos de morarem juntos no Rio e em breve eu perderia meu companheiro de quarto. Claro, por uma boa causa. Pela manhã saíram para ter um dia de casal juntos, desde então eu montava em uma bad profunda. Para fomentar, em um ato de total masoquismo, busquei uma caixa na qual guardava fotos do passado. A viagem de ano novo a Lagoinha, anos atrás, quando Cauã e eu éramos dois jovens medrosos acerca do risco que corríamos, e, refletindo melhor, um bom tempo depois estávamos ali, dando voltas em círculos novamente. A minha fotografia favorita, Cauã aparecia com um belo sorriso rasgado, mostrando todos os dentes branquíssimos, numa camisa xadrez cinza, e eu ao seu lado, tímido e sem jeito ao lidar com a câmera sendo apontada para mim. Mirei a fotografia na luz do dia, tampando a iluminação do sol e escutei uma música ao longe, quase inaudível. Conhecia aquela canção, doce, de um toque antigo, nostálgico. Home By The Sea – Genesis. Quando abaixei a foto e olhei para rua, como um truque de mágica, o carro de Cauã encontrava-se lá, parado, aguardando-me.
Em um pulo eu já estava lá embaixo, abrindo o portão para saber por que ele teria parado ali, em frente à minha casa. Para minha surpresa, dei de cara com Milenna no banco do passageiro. Ela riu da minha expressão de espanto. Os dois dentro do carro se entreolharam. Cauã usava um óculos de sol Wayfarer preto combinando com uma camisa da mesma cor. Roupas simples, mas que lhe caíam perfeitamente bem.
Milenna saiu do veículo, e por baixo de um vestido azul, começava a formar-se uma barriguinha bem arredondada.
- Como vai a gravidez? – Perguntei curioso.
Eu nunca seria capaz de desprezar aquela criança e nem pensar que qualquer desventura causada pela sua vinda ao mundo merecesse meu ódio a ela. Por isso essa pergunta fora feita de coração.
- Vai bem, tudo nos conformes. – Disse ela, alisando a protuberância, rindo orgulhosamente.
- Meus parabéns. Qual será o nome?
- Obviamente ainda não sabemos o sexo, mas se for menino será Eliél, e menina Isabella.
- Entra ai Johnny, vamos dar um passeio! – Disse Cauã, oferecendo-me o banco do motorista ao seu lado, agora vazio.
- Não se preocupe, já conversamos, eu vou no banco atrás. – Ela piscou para mim.
Sem pensar duas vezes, embarquei junto com eles.
- Desculpe ter ficado muito tempo sem dar notícias, muitas coisas aconteceram desde então. – Falou Cauã, dirigindo ao mesmo tempo. – Felizmente estou empregado agora. Ainda não trabalho como advogado e tenho a OAB para passar, no entanto trabalho como secretário em um escritório de advogados. – Ele parecia mais revitalizado, dando essas noticias com um sorriso nos lábios.
- Parabéns, fico muito contente!
- E nós vamos pedir o divórcio. – Falou Milenna, me assustando com a tranquilidade ao passar uma notícia séria. – Mas pensamos tudo pacificamente, será o melhor para ambos.
- E o seu pai, Cauã? Já sabe disso? – Perguntei, morrendo de curiosidade.
- Sim, sabe. Resistiu muito a principio, me ameaçou, suspendeu meus cartões de crédito. Felizmente já tenho meu emprego para me sustentar, não precisarei depender da “bondade” dele. Acho que papai está começando a perceber que não pode assumir o controle da minha vida.
- Isso é bom... Fico feliz por ver as coisas mudando. – Elogiei.
Cauã me olhou com satisfação, era um homem diferente desde a última vez que nos encontramos, parecia que pela primeira vez estava tomando o rumo certo da vida.
- Para onde estamos indo? – Perguntei, só agora percebendo que estávamos pegando a estrada.
- Um barzinho no Cambuí. Tem coisa melhor para um dia de domingo? Ou você prefere beber toddynho? – Informou, sendo brincalhão.
- Para mim é ótimo. Só não sei se vai ser legal para a Milenna, já que não vai poder beber. – Olhei para trás, dando de cara com o semblante cheio de dentes dela.
- Tudo bem, estou animada da mesma forma. O Matheus vai estar lá.
- Eu fiz as pazes com aquele cachorro. Ele me contou que veio do Rio para estragar meu casamento, é ou não é um verdadeiro filho da puta? – Brincou Cauã. – Mas sou grato por isso acontecer, e você ter tentado ajudá-lo. – A mão de Cauã posou na minha perna. - Eu fui burro por não ter te escutado naquele dia, dentro da sacristia. Aliás, há uma série de coisas pelas quais preciso te pedir perdão.
- Deixa isso para outra hora. Vamos nos divertir, ok? – Falei, levantando a sobrancelha.
- Assim que se fala! – Ele concordou.
Música boa, copos cheios de bebida, sorrisos fáceis, Cauã ao meu lado, seu braço quente nos meus ombros. Em poucos instantes as coisas tinham se transformado, e o futuro era próspero, tinha certeza disso.
- Eae galera, tudo na boa? – Perguntou Matheus, radiante, aproximando-se da nossa mesa.
Cauã e ele abraçaram-se como dois irmãos, as pazes feitas e selando o fim de uma sessão de desventuras, ambos contentes e apalpando as costas. Ainda que fosse um pouco estranho Milenna estar carregando uma criança de Cauã em seu ventre, os dois pareceram não se importar com a situação.
Voltamos aos nossos lugares. O garçom, homem que aparentava ter entre quarenta e cinquenta anos, trouxe uma bandeja com recipientes de batatas-fritas, bacon e cheddar. O braço de Cauã não saíra um instante sequer dos meus ombros. Estávamos livres da fobia de estarmos ali, juntos, nos acariciando em público. Esse foi o primeiro ato de amor público que Cauã teve comigo, e lembraria disso por toda a minha vida.
- Opa, acho que tem mais gente chegando. – Falou Matheus, erguendo o celular e lendo uma mensagem.
Os últimos dois convidados dividiram a mesa conosco: Flávio e Rogério. E então, como uma família reunida em uma confraternização de domingo, nós comemos e bebemos, contentes e satisfeitos pela guinada na vida.
- Um drink pelo nosso futuro. – Bradou Cauã, e juntos batemos os copos.
...
NOS ANOS SEGUINTES
Sim, muita coisa tem acontecido desde então, meu querido leitor.
É tão empolgante acordar todos os dias e me contemplar no espelho do banheiro e, dessa forma, ver o quanto mudei. Não só fisicamente, mas como ser humano. Amar, e pela primeira vez em toda a minha existência, ser reciprocamente amado, é uma experiência única e acredito que isso tem me deixado cada vez mais forte como ser humano.
Cauã e eu moramos em um apartamento, que com bastante empenho, compramos juntos através de um financiamento e economias minhas. Meu salário de professor nos proporciona uma vida confortável, mas nem tanto. Infelizmente somos muito desvalorizados pelo trabalho que executamos, no entanto, somando o ganho mensal do trabalho de Cauã na advocacia, conseguimos dinheiro para realizar uma singela cerimônia, onde celebraríamos a nossa união: nosso casamento.
Antes desse tão esperado dia, outras alegrias vieram: Cauã passou no tão temido exame da OAB e finalmente poderá trabalhar como advogado, isso foi para ele a maior conquista profissional, e em breve estará atuando como sempre desejou. Outro dia importante, passados alguns meses em que oficialmente começamos a namorar, foi o nascimento da criança, a qual seria uma alegria para o nosso quarteto: Tanto para Milenna e Matheus, quanto para Cauã e eu. Foi em uma sexta-feira durante a noite, enquanto na sala de espera Matheus e eu aguardávamos o papai orgulhoso nos dar a notícia do nascimento. Já sabíamos o sexo: um garoto, nosso pequeno Eliél. Cauã, como uma cara de bobo e um sorriso de orelha a orelha atravessou a porta de vidro e nos agraciou com a notícia sobre o parto bem sucedido. Dei-lhe um abraço forte, o qual impedia-me de respirar, e um beijo apaixonado em seguida, ainda que o lugar comportasse outras famílias esperando seus bebês na maternidade.
Infelizmente não pude acompanhar os primeiros dias com a criança. Milenna passou a morar com os pais de Cauã segundo ordens do próprio Sérgio, o qual recolheu a residência com que tinha “presenteado” o filho. Ele dava condições absurdamente favoráveis para cuidar do neto, com assistência médica, alimentícia, entre outros meios, sem poupar nenhum gasto. Visto que isso estava acontecendo, Milenna optou por não regressar ao Rio de Janeiro junto ao namorado e, sendo mais justa com Cauã, que viveria em Campinas ao meu lado, resolveu escolher a nossa cidade como lar definitivo. Assim, estando sob o mesmo teto que Sérgio e Eliane, significava que eu estaria impedido de ver o pequeno Eliél. No entanto, em uma visita à minha casa, pude segurar o pequeno ser-humaninho nos braços e me surpreender com o quanto ele parecia-se com o pai. Não existiam palavras para descrever o sentimento que me envolvia ao segurar aquela criança, como se ela também fosse uma parte de mim, sangue do meu sangue. E era: meu primo de segundo grau.
Sérgio continuou um velho ranzinza, pretensioso e prepotente. No entanto, percebeu que Cauã tinha coragem suficiente para viver por conta própria, tendo independência e desprendendo-se dos luxos materiais que lhe rodeavam desde a infância. Isso diminuiu seu poder, e só aceitava que Cauã visitasse Eliél por intermédio de Milenna, no entanto os dois não conversavam e evitavam ficar no mesmo ambiente.
A saúde de Sérgio se complicou por um bom tempo, cheguei a pensar em determinado momento que ele bateria as botas se continuasse com os ataques. Mas recuperou-se, assim como passou a aceitar melhor a nova vida de Cauã. Eliane, mesquinha, ignorava o filho, no entanto cobrava que Cauã reatasse o namoro com Milenna, mesmo a própria Milenna tendo assumido a relação com Matheus. Sônia, a tia carrasca, junto ao filho esquisito, André, retornaram à terra natal e espero que de lá não saiam nunca mais.
Papai e mamãe apoiaram a minha investida no apartamento, e, pela primeira vez sentiram firmeza na minha relação com Cauã. Marisa costuma dizer que ele mudou da água para o vinho, e aprendeu ser mais responsável, assim como ela notou em mim felicidade plena, satisfação e uma empolgação inédita. Esse era o luxo de viver com amor, disse papai em uma visita ao meu apartamento. Eles me presentearam com alguns móveis, colaborando com a mobília da casa.
Rogério e Flávio partiram para o Rio. E, conforme os meses vão avançando, parecem ainda mais ligados um ao outro. Agora Flávio tem um emprego na mesma agência de eventos que Rogério trabalha, e ambos foram muito elogiados pelo serviço que desempenham e por tamanha cumplicidade, o que só confirmam que eles dão muito certo juntos.
...
Casar-me foi a coisa mais importante que já aconteceu em toda a minha vida até então, e a cerimônia, a mais linda. Talvez perdesse apenas para as noites de amor onde Cauã jurava me amar, embaixo dos cobertores, ali, no nosso porto seguro.
Foi uma cerimônia íntima, poucos convidados, sem teor religioso, seguindo um roteiro estabelecido pelo celebrante, um rapaz muito simpático e jovem, com no máximo trinta e cinco anos de idade. Aconteceu em uma chácara, no sábado ao fim da tarde. Os organizadores do evento fizeram um trabalho impecável, produzindo um altar com um arco coberto de flores, combinado a uma paisagem natural do entardecer e um uma vista deslumbrante para o horizonte próximo a umas colinas onde o sol descia entre elas.
Terno branco, cor da paz, um frio na espinha, emoção a flor da pele. Chego à frente do altar e papai acompanha-me, enquanto uma banda composta por duas mulheres no vocal canta “Pra Sonhar”, do Marcelo Jeneci. Digo a mim mesmo que preciso ser forte e resistir para não chorar compulsivamente. Meu rosto esquenta e tento não respirar, contendo assim uma lágrima, a qual desceu involuntariamente quando vi Cauã a minha espera próximo ao arco de flores. O sorriso que nunca saíra da minha memória, radiante como nunca antes. O coração batendo forte, no peito de ambos, uma tremedeira nas pernas e as mãos geladas. Era a hora de jurarmos o nosso amor. E as coisas ocorreram na mais perfeita harmonia. Não existia nada capaz de nos interromper. O momento do “Aceito” teve uma resposta positiva da parte de ambos, desse jeito, fomos declarados marido e marido.
Ao nosso redor, os padrinhos acompanhavam a cerimônia. Renan e Maria Eduarda, ainda que pertencesse à família de Cauã, a qual havia me causado danos e incômodos, em nenhuma de suas atitudes Renan fora indelicado comigo. Merecia estar ocupando aquele lugar, por ser justo e respeitar as escolhas do irmão. Milenna e Matheus formavam duas almas em sintonia, eu ainda me perguntava qual fora o motivo que os havia separado anteriormente. Sentia uma boa vibração da parte deles, e esse amor seria uma ótima referência ao nosso pequeno Eliél. Rogério e Flávio, tão companheiros e unidos, constituíam o único casal gay de padrinhos. É estranho pensar como esse amor cresceu devido ao meu louco e incansável desespero por Cauã. Se eu nunca tivesse ido ao Rio procurá-lo, não teria conhecido Rogério, logo Flávio não o encontraria naquela noite na balada. Me sinto contente por ter feito o trabalho de cúpido e unido duas almas. E, por fim, Mariana e Victor: Eles se reencontraram anos depois do ensino médio, no dia da cerimônia pareciam muito animados por retomar a amizade, marcando um encontro para dali alguns dias. Torço para que tudo ocorra bem, eles merecem.
Nos bancos da primeira fileira, mamãe segura o principezinho Eliél, ela sente-se uma vovó quando o encontra e faz questão de mimá-lo de diversas maneiras. Ao seu lado estão mais duas pessoas da família: Uma delas é Helena, a mãe do problemático Leandro. Tempos atrás mamãe a ajudou em um tratamento contra depressão após o incidente com o filho. Felizmente o procedimento surtiu efeito e ela recuperou a vontade de viver, ainda que às vezes parecesse um pouco tristonha. Heloísa sorria parecendo satisfeita em ver-nos felizes. Miguel ficara em Lagoinha cuidado de Isaura, que sofria de alzheimer e suas memórias iam apagando-se cada vez mais. No entanto, o meu cowboy favorito, João Clemente, assistiu todo o casamento, com pose de contentamento, dentro de uma roupa social típica do campo. Finalmente havia decretado sua independência, no mês seguinte viajaria para Minas Gerais, lugar onde cursaria Agronomia. A vida acadêmica seria a chance de livrar-se de sempre se esconder atrás da sombra de Miguel, agora ele tinha a oportunidade de brilhar, e isso acontecerá, sem dúvidas, ele tem um forte potencial intelectual.
A festa aconteceu logo depois, animada, bonita, e claro, seguindo certos protocolos, como a valsa dos noivos. Foi o instante mágico em que eu e Cauã desfilamos nossa tão merecida alegria, e, parecendo um fim de novela, quando os créditos estão próximos de subir na tela e a mensagem “Fim” aparecer , beijamo-nos, intensamente, sendo aplaudidos pelos convidados.
E essa foi uma das vitórias que conquistamos, ainda há outras por vir. Felizmente podemos converter a união civil para casamento, direito esse que tempos atrás era negado a homossexuais. No entanto não nos sentimos completos nas ruas. Há medo e insegurança para pessoas como nós: vítimas de homofobia são anunciadas quase todos os dias nos vínculos de comunicação e tememos que isso venha a acontecer com um de nós ou alguém próximo. Há discussões para a criminalização da homofobia no meio político, no entanto nenhuma atitude é tomada. Isso é preocupante, extremistas conservadores ameaçam nossos poucos direitos, e esquecem que a luta da comunidade LGBT não é para alcançar privilégios e sim igualdade. Cauã e eu nos sentiremos completos no dia que gozarmos de um mundo mais igualitário. Enquanto isso não acontece, vivemos sonhando.
FIM.
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NOTA DO AUTOR: Obrigado a todos que acompanharam a trama até o final. Pretendo postar outros contos em breve, ou seja, aqueles que gostaram da minha escrita poderão acessar outras obras minhas através do meu perfil. Por hora é tudo, agradeço a oportunidade de ter compartilhado essa história com vocês. Até a próxima!
Agradeço aos leitores que vierem a dedicar um tempo para realizar a leitura, e gosto de receber críticas de toda natureza (me refiro as construtivas), então, não deixe de comentar o texto, isso é muito importante para mim.
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