“Quero vive-lo em cada momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento”
Soneto de Fidelidade, Vinicius de Moraes
A água saindo em espasmos da minha garganta, os lábios estranhos na minha boca, forçando para dentro do meu pulmão golfadas ritmadas de ar. Tempestade.
–Aaron– Sussurrei tão baixo que nem mesmo eu consegui ouvir minha voz em meio ao som da chuva caindo no mar. Sentia o balanço do bote entre as ondas, um motor pequeno misturava seu som ao da tempestade.
Água doce e salgada misturava-se na minha boca. Abri meus olhos, com força. Minha garganta ardia, sentia uma mão no meu pescoço. Perdi os sentidos.
Abri os olhos, cordas içavam o bote para cima. Do alto do convés eu pude ver o rosto do capitão do navio, do comandante e da Dra. Tess Lirian. Fechei meus olhos, cansado. Perdi os sentidos novamente.
Abri os olhos, estava numa maca. O céu negro com nuvens cinzentas, parecia desabar em chuva, raios e trovões. Tentei perguntar por Aaron, mas não tive forçar para mover meus lábios. Estava dormente, não sentia nenhuma parte do meu corpo. Perdi os sentidos pela terceira vez.
Abri os olhos, estava num corredor branco, entrando num centro cirúrgico. Sentia o cheiro de alvejante. Rostos estranhos amontoavam-se ao meu redor, Dra. Tess ministrava uma seringa.
Fechei os olhos, ouvia a voz dos médicos.
–Batimentos emEstabilizando.
–Começo de hipotermia. Adrenalina, Dra. Tess!
–Cobertores, rápido. Bolsas térmica
Senti uma injeção no braço, imediatamente senti um formigamento espalhar-se do braço até as mãos. Meus ombros... Meu tórax... Meu corpo formigava enquanto um calor espalhava-se por toda a minha carne. Alguém apertou um cobertor em cima de mim, colocaram bolsas térmicas com água quente nas extremidades do meu corpo. Adormeci.
Despertei, ainda dolorido apesar de não ter sono algum. Abri meus olhos, a luz artificial era forte demais. Voltei a fechá-los.
–Aaron– Balbuciei numa lamúria. Passos... Alguém começou a tirar as bolsas térmicas do meu corpo e ajeitou outro cobertor– Aaron...
–Ele está bem– Disse uma voz masculina. Eu não conhecia– Ambos foram resgatados em alto mar. Imaginamos que você caiu e o soldado pulou para te salvar.
Engoli em seco. Minha garganta doía. Tentei me acostumar a luz. Demorou alguns segundos, cansaço e angustia me dominavam. Queria ver Aaron. Queria perguntar-lhe se as memórias dele dizendo que me amava eram reais ou delírio fruto do afogamento.
Suspirei fundo. Meus pulmões doíam. Lembrei-me da tempestade. Das estrelas... O Cruzeiro do Sul... Estávamos navegando na direção contrária? Comecei a me acostumar com a luz, fiz força para levantar mas uma mão me parou. Era difícil competir forças com a pessoa que me segurava na cama.
–Não faça esforço.
–Eu vou levantar– Anunciei por mera formalidade. Rolei para o lado oposto da pessoa que me segurava, antes que alguém pudesse falar algo, eu já estava de pé, cambaleante.
Me encontrava numa enfermaria, mas não era a enfermaria que havia visto ao levar Aaron para fazer o curativo, na briga dele com Brad. Era uma enfermaria muito maior e mais iluminada. As paredes eram brancas, na outra ponta estava Aaron. Caminhei me apoiando na parede. A pessoa que tentara me segurar antes deu a volta e agora tentava me fazer voltar para a cama. Era um enfermeiro jovem, cabelos cortados em estilo militar.
Arranquei a agulha do soro do meu pulso e continuei caminhando, não conseguia prestar atenção no enfermeiro. Vendo minha resignação, ele desistiu de tentar me levar de volta para a cama e auxiliou minha curta mas demorada caminhada até Aaron. Me sentei na cama em que o soldado dormia. Seus cabelos estavam secos, seus lábios rachados. No entanto, sua beleza ainda continuava presente.
–Quanto tempo se passou?– Perguntei. O enfermeiro me vigiava a poucos centímetros de distância.
–Dois dias e meio– Respondeu o soldado– Irei chamar Dra. Tess. Ela aguardava seu despertar para lhe examinar.
Concordei com um menear de cabeça e observei o enfermeiro sair da ala hospitalar. Assim que desapareceu atrás do par de portas da entrada, me aproximei aflito de Aaron.
Toquei em seus cabelos, em sua pele, em seus lábios. Bolsas térmicas azuis aqueciam quase o corpo todo dele. Desesperado, solucei num começo de choro.
–Sobreviveram– A voz altiva de fundo da enfermaria anunciava a chegada da Dra. Tess. Sequei as lágrimas com o dorso da mão e me virei para vê-la. Ela caminhava na minha direção– Deveria estar deitado.
–Ele está bem?– Perguntei. Ela sorriu, um sorriso que não consegui classificar como sincero ou torto.
–Ambos estão. Após o milagroso resgate, aplicamos adrenalina e um sedativo. Você e seu companheiro passaram alguns minutos mortos.
–Mortos?– Repeti, assustado.
–Seus corações não batiam, nenhum dos dois respirava. Aaron quase morreu, ainda mais porque não pudemos dar choque de ressuscitação até ele estar minimamente seco.
–Ele vai acordar?
A doutora inclinou a cabeça. Sorriu torto, como na primeira vez que a conheci.
–Ambos sabemos a resposta.
Meneei com a cabeça. Não contaria que sabia que o navio navegava para o sul invés das águas nordestinas. Nem contaria que me lembrava que não foi um acidente meu afogamento e sim que alguém me jogara da popa. Não sabia em quem poderia confiar, o jogo havia se estreitado para mim. Apenas confiava em Aaron.
–Se um dos passageiros não tivessem visto as braçadas de Aaron na água e procurado pelo sinalizador de emergência, teríamos notado a falta de ambos apenas na manhã seguinte, milhas de lonjura– Comentou a doutora– Sorte a sua o TITAN VI ter lhes encontrado já afundando no mar. Estamos numa profundida de quatro mil metros.
Mordi meu lábio e concordei mais uma vez com a cabeça. A doutora examinou minha respiração, meus olhos e fez um rápido teste para saber se meu cérebro estava ok. Após alguns minutos, ela saiu. Fiquei sozinho com Aaron, sem conseguir medir o tempo, já que não havia vigias na enfermaria em que estava. Cansado, voltei para minha cama e me encolhi em minhas cobertas. Em algum momento as luzes da enfermaria se apagaram, indicando que provavelmente era madrugada. Adormeci de lado, contando as respirações de Aaron do outro lado dos vazios leitos hospitalares.
Eu suava, meu coração batia forte. Acordei assustado em alguma hora da madrugada, tendo certeza que escutara algo, tudo que me vinha a mente era meu assassino aproximando-se para terminar o serviço. Sentei na cama hospitalar e olhei para o par de portas da enfermaria, pronto para ver algum alguém ou algo entrar por ela. Após alguns minutos sem nenhum movimento e com as luzes ainda apagadas, um grunhido fantasmagórico, quase um lamento sobrenatural, me arrepiou mais uma vez.
Sim, era real o som que escutei. Talvez viesse dos motores do navio, afinal, eu não sabia onde ficava essa enfermaria em que estava. Mesmo assim, juntei minhas cobertas e levei até a cama de Aaron. Entrei embaixo das cobertas dele e me acomodei, segurando-o como se fosse uma píton. Adormeci.
Quando acordei, Aaron já estava desperto, olhando-me dormir agarrado nele. Que vergonha... Senti minhas bochechas avermelharem enquanto levantava da cama num pulo. Resolvi não tentar me explicar, seria horrível dizer que tivera medo na noite anterior.
As luzes estavam acesas. Quase assim que saí da cama de Aaron, o enfermeiro com corte de estilo militar entrou. Ele deixou duas bandejas de café da manhã conosco enquanto ia chamar a Dra. Tess para examinar Aaron. Demorou bastante até Tess chegar, provavelmente estava trabalhando no laboratório quando foi interrompida.
Ela o examinou exatamente como fez comigo e depois o parabenizou por ter me salvado. Aaron era um herói, conforme as palavras dela. Assim que ela saiu, comemos o café da manhã. Não aguentava esperar e comecei a conversar com o soldado.
Contei-lhe que fui empurrado da popa e, expliquei que percebi que navegávamos para o sul. Subitamente, o nascer do sol no horizonte da vigia do meu antigo quarto, já era o suficiente para explicar que navegávamos em sentido contrário.
–Não iremos para o Caribe, não é?
–Não– Confirmou Aaron, fitando as camas hospitalares vazias na frente das nossas– Deveríamos sair daqui essa tarde. É proibido passageiros no quarto e quinto andar.
Juntei as sobrancelhas numa expressão de confusão.
–Como assim?
–No quarto andar fica as cabines dos funcionários e soldados. No quinto... Bem, estamos nele.
Olhei ao redor da enfermaria. Naquela tarde recebemos alta de um médico que eu não conhecia, assim que saímos da enfermaria, a primeira missão de Aaron foi me guiar até minha cabine. Subitamente, me lembrei de Brad.
–O que farei se encontrar Brad? Tenho certeza que foi ele quem me empurrou da popa.
–Impossível– Murmurou Aaron subindo as escadas para do quarto para o terceiro andar– Ele estava num turno de vigilância. No entanto...
Aaron calou-se. Eu sabia que não adiantaria eu insistir para ele me falar o que pensava. Ele segurou meus ombros e me fez o encarar nos olhos.
–Tome cuidado com ele. Não confie nele.
–Não confio– Retruquei.
Os dias seguintes foram relativamente normais. Trabalhava o dia inteiro no laboratório, apesar da fraca dor nos meus músculos da perna. Encontrava Aaron apenas nesse momento, já que ele era encarregado de vigiar e proteger Dra. Tess Lirian Kathreen. Já Brad, eu via com frequência na hora do jantar. Ele parecia esperar toda noite para me ver lá. Depois de jantar, ele me acompanhava até a cabine, não sem antes perguntar como foi meu dia. Por vezes, ele tentava entrar e transar comigo, mas eu negava apesar das marcas arroxeadas que seus dedos começavam a causar no meu braço.
Haviam se passado dez dias desde o meu afogamento e quinze desde o início da viagem do navio. Nesse momento, todos os passageiros já se perguntavam o que estava acontecendo. A cada dia, ventos mais frios batiam em quem se aventurasse à caminhar no convés. Inclusive começávamos avistar um e outro iceberg.
Rapidamente murmurinhos começavam a se espalhar sobre o que estava acontecendo com o navio. Das teorias, a mais aceita era a de que o navio havia sido tomado, provavelmente, por extremistas islâmicos. Para reforçar tais teorias, nem o capitão ou o comandante dos soldados eram vistos em lugares públicos. Dra. Tess Lirian fazia o mesmo e concentrava-se no seu trabalho.
Eu estava terminando meu dia no laboratório, numa troca de olhares entre o camundongo branco dentro de sua caixa de acrílico e o soldado Aaron do outro lado da parede de vidro que limitava o laboratório, quando ouvi as vozes alteradas de Brad e o comandante ultrapassando do convés até dentro do laboratório.
Aaron engoliu em seco enquanto ouvia as palavras de Brad, reclamando do silêncio de todos em meio a viagem para o sul. O capitão acalmava os ânimos dele ameaçando-o e lembrando que em breve poderíamos continuar navegando para o norte.
–Christian– Numa voz autoritária, falou a Dra. Tess. Pulei de susto– Acho que encontrei um estabilizador entre a cepa original e a mutante. Chame o Dr. Slomman, preciso que ele verifique a composição da vacina preventiva.
Lancei um olhar para Aaron e movimentei os lábios formando o nome do Dr. Slomman. O soldado acenou com a cabeça e saiu para fora.
–Podemos continuar amanhã?– Perguntei, cansado depois das dez horas consecutivas ajudando Dra. Tess. Até hoje nunca tive coragem para perguntar porque ela me quis como ajudante, sendo que era totalmente desqualificado sem nem mesmo uma faculdade de medicina.
–Vá. Amanhã de manhã a vacina já estará pronta para os primeiros testes.
Concordei com um menear de cabeça e realizei todos os processos para poder sair do laboratório e pegar a minha roupa. Eu até gostava daquele conjunto de calça branca e camiseta branca, mas depois do afogamento me lembrava muito as roupas do enfermeiro que nos ajudou a se recuperar.
Eu sai do laboratório para o convés, era uma das únicas pessoas me aventurando no vento frio que açoitava o navio. Estava pronto para ir direto para minha cabine, quando resolvi esperar um pouco mais e observar o nevoeiro que vinha em direção ao navio. Aproximei-me na borda do navio, imaginava-me no Titanic. Se não houvesse nenhum marinheiro observando meus movimentos da ponte, eu com certeza abriria os braços como no filme.
Amava o frio que fazia. Adorava ver o vapor saindo da minha boca a cada respiração. E adorava ficar com os lábios em vermelho vivo decorrente das baixas temperaturas. Quase nem me lembrava que alguém do navio tentara me matar. Pensar nisso me estremecia. Me virava para voltar em direção à superestrutura central do navio, quando fui agarrado por Brad. O empurrei para longe, mas ele não se moveu um centímetro.
Eu sentia o vento frio batendo em mim, as respirações minhas e as dele ondulavam no ar. Diferente das primeiras vezes que o vira, agora ele usava uma jaqueta militar, assim como todos os soldados que começavam a circular livremente pelo navio.
–Hey– Brad reclamou enquanto aproximava seu corpo do meu, seu pau duro tocava na minha barriga– Sente como você me deixa...
–Caí fora!– Gritei, afastando o corpo dele e aproveitando a deixa para ir em direção do interior do navio. Ele me agarrara por trás, dessa vez.
–Preciso da sua ajuda.
Me desvencilhei dele e voltei a olhar para seu rosto. Era a primeira vez que ele me pedia algo do tipo. Separados por um metro, ouvi em silêncio apenas as batidas fortes no meu peito. Depois de um tempo interminável, ele prosseguiu.
–Você mataria por mim?
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Descobrimos que o TITAN II e VI estão navegando rumo ao sul e não para as praias nordestinas de águas quentes. Descobrimos também sobre um quarto andar onde vivem os soldados e um quinto ainda muito misterioso, onde ficava a grande enfermaria. Tivemos uma passagem de tempo, durante dez dias Christian aproximou-se um pouco de Brad. Conversavam sobre seus dias e o soldado era atencioso, apesar de ainda agressivo. Desesperado ou talvez apenas jogando com Chris, acabamos o capítulo com Brad perguntando se ele seria capaz de matar...
Me surpreendi por ninguém fazer muitas perguntas sobre o nome da história ser TLK até hoje.
Vejo vocês amanhã.
Com todo amor,
B.