Poderia ser apenas uma caixa de bombons.
Mas não era.
Eu a reconheci assim que olhei pra ela, apesar de tê-la visto pela ultima vez há mais de cinco anos. Era marrom e branca e nem era de uma marca conhecida. Eu tinha comprado em um supermercado, com pressa, pois ia encontra-lo naquele dia e não queria aparecer de mãos vazias. Gastei parte do dinheiro da apostila que deveria comprar, mas nem me importei. Ele valia aquele pequeno sacrifício. Ele valia tudo.
Eu tinha escrito uma frase com caneta azul no lado branco da caixa e ainda conseguia lê-la. Foi assim que a reconheci. Embora eu tenha a impressão de que saberia que era a mesma caixa mesmo que não tivesse nada escrito.
“Ele guardou ela. Esse tempo todo!” Pensei, sentindo uma ternura inesperada no coração. Um bolo ameaçou se formar em minha garganta, mas me segurei. Não que fosse adiantar muito.
Eu ia chorar muito ainda aquela noite.
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Talvez o problema seja que ninguém pergunta como vai o casamento.
Eu reparei nisso depois que fui morar com o Heitor. As pessoas simplesmente deixam de perguntar sobre o relacionamento, como se isso fosse invasivo demais. Antes sempre havia perguntas do tipo: “como vai o namoro?”, “...e você e ele? firme e forte?”. Então essas perguntas mudaram e passaram a ser “Como foi a viagem pra Gramado?”, “Vai passar o natal na casa da sogra?”, “Ele não vai brigar se você chegar tarde, né?”. Deve haver um acordo tácito entre as pessoas de não fazer uma pergunta direta para não obriga-las a pensar onde o casamento delas estão. E onde elas estão no casamento delas.
Se me perguntassem eu teria dito “está tudo ótimo”. Porque estava. Não havia razão para eu pensar de outra forma. Eu morava com um homem lindo em uma casa bonita, projetada e construída por ele. Não tínhamos problemas financeiros. Eu sabia o que era isso, mas Heitor nunca soube (A família dele sempre teve dinheiro e parecia ter mais a cada dia). O sexo era maravilhoso. Oh! E como era! Bastou eu ter ido pra cama com o Heitor apenas uma vez pra saber que eu queria aquele homem pro resto da minha vida.
Íamos completar seis anos. Mas só moramos juntos há dois. Ele insistiu esperar que a casa ficasse pronta antes de trocarmos alianças. A casa já estava sendo construída quando eu o conheci. E ja vinha sendo sonhada e projetada desde a adolescência dele. Heitor sempre quis ser arquiteto. Nunca teve outro sonho e nem pensou em mudar de ideia. Os pais não foram contra apesar do ramo de negócios da família ser transporte naval. Eles deviam ser donos de metade do porto de Santos. Ainda assim, nossa casa não podia ser mais longe do mar.
“Não trabalho em um projeto em que eu não acredite”, ele tinha me dito uma vez. Nos dois na cama, eu com a cabeça no peito musculoso e cabeludo dele. Naquela época estávamos no seu apartamento pequeno e funcional, dado pelos pais dele. “Gosto de ver onde vai cada coisa, tudo tem o seu lugar, amor.” Ele sempre me dizia. E eu acreditava. O lugar onde ele morava era arrumado com precisão militar. Ele mesmo fazia isso. Limpava e organizava do chão ao teto toda semana. Heitor nunca gostou de contratar diaristas. O que vindo de um rapaz rico sempre me surpreendia.“Se eu consigo visualizar isso então posso fazer dar certo, posso dar vida aquilo!” Eu amava o jeito apaixonado como ele falava da profissão. Observava várias vezes de longe, sem querer atrapalhar, ele se debruçar em tabelas, planilhas e projeções. Fotos de terrenos e analises de solo. Construindo parede a parede algo que antes havia estado apenas em sua cabeça.
Já eu era uma história diferente. Tinha me formado em administração no ano passado. Com a mesma falta de entusiasmo que tive desde o começo do curso. Mas com muito mais alivio por concluir aquilo tudo. As vezes acho que só fui até o fim por vergonha de dizer pra ele que me arrependia daquele curso. Naquela altura eu nem pensava no que meus pais diriam. Há muito que só escutava o que o Heitor tinha a dizer. A opinião de mais ninguém me importava. Pior ainda era ter que admitir que não queria me formar em nada. Sabe quando as pessoas dizem que Administração é curso feito por pessoas que não sabem o que querem da vida? Elas estão certas. Pelo menos no meu caso.
Acho que única coisa que eu soube que queria com certeza na minha vida foi o Heitor. Por ele, eu enfrentei meu pai indiferente e minha mãe religiosa e suas miríades viciosas de segundas opniões. Os olhares avaliativos das pessoas, mesmo em meu circulo de amizades, comparando a beleza obvia e escancarada dele com a minha aparência provinciana nem um pouco chamativa. As diferenças entre nossas classes sociais. A perda de amizades. O nome do Victor ainda me doía mesmo passados três anos.
Mas o amor supera tudo não é?
Tínhamos passado por tudo isso juntos. Ele lutou por mim e eu por ele. Ele me conhecia profundamente e eu o conhecia. Estávamos em um ponto da nossa relação onde podíamos conversar e resolver qualquer coisa. As brigas bobas e os ciúmes infantis tinha ficado pra trás. Nosso aniversário de casamento estava próximo. Eu estava pensando em fazer uma surpresa pra ele.
Foi então que eu conheci o Guido.
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- Eu ligo pra você assim que chegar no hotel. - Ele dizia enquanto abotoava a camisa no peito largo. - Com sorte eu to de volta amanhã ja de noitinha...
Eu observava aquele ritual tão natural de bruços na cama. Ainda estava ardido e não tinha certeza de que podia confiar na força das minhas pernas pra chegar no banheiro da nossa suíte. Ele tinha me acordado cedo linguando meu cuzinho e depois me fodendo com vontade. “Pra você não ficar com saudade” Ele tinha dito, com o pau duro ainda dentro de mim as cinco da manhã.
O voo dele pro Espirito Santo ia sair em duas horas, mas ele não demonstrou nenhum pânico. A mala dele, rigorosamente arrumada, ja estava no corredor perto da porta interna da garagem desde ontem. Mesmo a roupa que ele vestia agora tinha sido separada e colocada sobre poltrona de design moderna do nosso quarto na noite anterior. “Aposto que até o nosso sexo foi cronometrado” pensei. Mas tinha sido tão bom então do que eu iria reclamar?
Ele se despediu e saiu dez minutos mais tarde. Nem precisei me levantar. Ele sabia que eu gostava de dormir até mais tarde. E foi o que fiz. Acordei as onze com a bexiga estourando e corri pro banheiro. Tomei banho e ao sair conferi o celular no criado-mudo.
Havia várias mensagens. Uns dois grupos de conversas da faculdade que não tinha se dissolvido mesmo depois da formatura. Minha mãe perguntando se eu ia no batizado da filha de uma afilhada da igreja dela. Uma garota que eu nunca conheci na vida e que tinha engravidado aos dezesseis anos. Nenhuma mensagem do Heitor, apesar de eu não está esperando por uma. Ele disse que ligaria quando chegasse ao hotel. E ele faria exatamente isso.
As duas horas encontrei uma amiga de faculdade no Shopping. Fomos almoçar e colocar o papo em dia ja que não nos falávamos a meses. Heitor me ligou nesse meio tempo me confirmando que chegou ao hotel e ela aproveitou pra perguntar sobre ele.
- Ele foi pra Vitória. - Respondi quando desliguei. - A Empresa dele recém abriu um escritório por lá e pegaram um projeto grande. Aí ele precisa ficar indo e vindo umas duas vezes por mês.
- E você Matheus, ta trabalhando? - Ela emendou.
- Que nada. Nem tô com pressa!
- O macho banca tudo né migo?! Trabalhar pra quê?
Rimos. Ela conhecia minha situação desde a faculdade. Depois de um leve surto meu em um dos estágios obrigatórios pra faculdade, Heitor disse que não dava a mínima se eu não trabalhasse. O que ele ganhava nos dava uma boa vida. E eu não me envergonhava daquilo. Sei que a família dele me via como um encostado, mas como eu disse antes, só o que o Heitor pensava era o que importava pra mim.
Não vimos as horas passarem enquanto conversávamos e quando sai do shopping ja era noite. Aproveitei que estava na rua e resolvi dar uma passada na casa dos meus pais. O que era sempre uma experiencia quase agonizante. Minha mãe não parava de tagarelar sobre coisas e pessoas que eu não conhecia ou dava a mínima. Meu pai me tratava como se eu fosse uma visita em que ele era obrigado a fazer sala e que não tinha certeza que assuntos abordar porque nunca tínhamos nada em comum pra discutir. Então, em geral víamos tv e comentávamos o que aparecia sem nunca entrar em algum assunto muito pessoal. Nenhum deles me perguntou sobre o Heitor. A politica de fingir que eu não tinha marido ainda era forte naquela casa.
Sai da casa dos meus pais, com um suspiro alto de alivio, por volta das dez da noite. Chovia fracamente. Mas ia piorar, com certeza. Eu estava dirigindo um dos carros do Heitor. Um Audi TT coupé 2016, que ele tinha comprado dois meses antes e eu ainda não tinha experimentado. Eu dirigia um Honda Civic que ele me deu de presente de formatura. Oito meses antes de eu me formar!
Nossa garagem tinha um teto alto então Heitor aproveitou e colocou um elevador hidráulico pra suspender um carro de modo que coubessem três carros. Eu nunca usava aquilo pois sempre deixava o meu carro do lado de fora. Era o Heitor que colocava pra dentro e fazia toda a manobra. Mas com aquela chuva fiquei com pena de deixar meu carrinho ali ao relento. Então em um sopro de responsabilidade resolvi colocar tudo no lugar certo. Posicionai o audi na plataforma o que fez eu me sentir como se tivesse voltado pra autoescola. Tive que sair três vezes pra ter certeza de ele tava bem posicionado. Acionei o botão e observei o carro subir lentamente.
Foi quando ouvi o telefone tocar.
Não meu celular, mas o fixo dentro de casa. Eu sabia que era Heitor. Ele as vezes ligava pro fixo quando viajava. A gente sempre brincava que ele fazia isso esperando que meu “amante” atendesse o telefone. Entrei pela garagem e virei o corredor pra entrar no escritório dele.
Eu não gostava de entrar no escritório do Heitor. Era aonde ele guardava todos os projetos e documentos de obras que ela era responsável. Quando ele precisava trabalhar em casa era onde passava boa parte do tempo. Mas o telefone ja tinha dado alguns toques e ao escritório dele era mais perto do que a extensão lá na sala.
Nem acendi a luz quando entrei. Dei a volta pela escrivaninha simetricamente organizada e do IMAC de 27 polegadas no canto da mesa e peguei o telefone que apitava.
- Oi Amor - Ele falou risonho assim que atendi. - O Ricardão não deixou você sair da cama nem pra atender seu marido?
- Ele ainda não chegou - Respondi me sentando na cadeira dele. - Mandei ele comprar vinho porque não quero que ele beba das suas garrafas.
- Pelo menos isso. - Ele riu.
- Como foi hoje? - Me recostei na cadeira macia dele e pus o pé na quina interna da mesa.
- Nada demais. Só uma reunião rápida no escritório deles e uma visita no canteiro. Vou te contar se eu não estou por perto pra evitar que esse povo faça merda...
Fiquei escutando o tom grave da voz dele na sala escura e percebi que podia sentir o perfume dele levemente naquela cadeira. Fechei os olhos e imaginei que ele estava ali, do meu lado. Me deu uma saudade dele. Aquelas saudades bobas que as adolescentes sente dos namoradinhos do colégio. As vezes me surpreende como...
Então meu pé afundou pra dentro da mesa.
- Porra! - Falei no susto.
- Que foi amor?! - ele interrompeu o que dizia com a voz preocupada.
- Eu tropecei. - Falei rápido. - Tava indo pro banheiro.
De jeito nenhum eu ia dizer que tinha quebrado algo na mesa dele. Possivelmente a própria mesa. Heitor nunca chegou a me proibir expressamente de entrar em seu escritório, mas eu sempre achei que pra bom entendedor meia palavra basta. Ele mesmo o havia decorado, assim como o resto da casa. E ele mesmo fazia a limpeza e organização rigorosa do local. Nossa diarista (contratada depois de muitos protestos dele) era terminantemente proibida de entrar ali. Heitor chegava até a mandar eu trancar a porta quando ela vinha. Com todo esse zelo até eu me mantinha longe daquela sala. Sou um pouco estabanado e a prova disso é que mal tinha entrado ali por cinco minutos e ja tinha encontrado algo pra quebrar.
- O pé ta doendo? Sangrou? - ele ainda parecia preocupado.
- Não amor. - Eu ja estava arrependido da mentira. - Foi só o batente. Nem doeu. Mas então, você tava dizendo que não vem amanhã?
Andei até a porta da sala e finalmente acendi a luz. precisava avaliar o tamanho do estrago
- É, é isso. Eu preciso visitar outra obra amanhã e cuidar de uns detalhes. Então acho que só volto quinta-feira se tiver voo. Vai morrer de saudade até lá?
- Não, eu e o Ricardão vamos preencher o tempo livre com alguma coisa.
Ouvi ele rir do outro lado. Então ouvi outro coisa também. Adrenalina é um troço engraçado. Faz seus sentidos ficarem um pouquinho mais alertas depois de um susto. Reparei que estava ouvindo um barulho insistente do lado dele da linha. Era pequeno e distante, mas bem irritante. Tinha impressão de ja ter ouvido aquilo antes.
- Ok então, já vi que tá tudo arranjado. - Ele falou. - Amanhã a gente se fala amor. Beijo.
- Beijo. - E Desliguei.
“Bom, talvez seja pra melhor” pensei, enquanto deixava o aparelho na base preta e me abaixava pra ver o lado interno da mesa. “agora tenho mais tempo pra consertar seja lá o que eu quebrei aqui.”
Olhei pra onde tinha apoiado meu pé e vi um buraco perfeitamente retangular onde ficava o compartimento das gavetas. Bem no final, já perto da parte da frente que bloqueava a visão das pernas de quem sentava. Cheguei mais perto e vi que o pedaço de madeira que tampava aquele buraco estava solto e torto do lado de dentro. Senti um alivio. Devia ser só uma particularidade da mesa ou algo assim. Era só puxar com os dedos e colocar no lugar.
Foi quando eu comecei a fazer isso que eu percebi. O buraco tinha um bom espaço pra guardar alguma coisa. E de fato, não estava vazio. Pus a mão la dentro e puxei um volume quadrado e leve.
Era uma caixa de bombons.
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Pensei nesse conto tem um tempinho. Um personagem com uma vida aparentemente perfeita se vê diante de um dilema moral. A ideia não é original, mas não vejo muito disso por aqui, então achei que valia a tentativa de escrevê-lo. Acredito que posto o segundo capítulo ainda essa semana. Mas queria saber se tem alguém interessado nele.