PARA ALÉM DO VÉU - Capítulo 02 de 07

Um conto erótico de Alison T
Categoria: Homossexual
Contém 1753 palavras
Data: 04/01/2018 13:34:24

NOTA: Quando o coração resolve zonear a vida das pessoas, ordem e método tornam-se luxos. Digressões, spoilers, relatos em tempo real ou flashbacks passam a integrar a mesma dor e, por isto, o mesmo tempo - enquanto durar, enquanto não se transformar, portanto, usem as datas para a correta montagem deste quebra cabeças. Durante seis dias, trabalharemos com as peças. Ao sétimo dia, descansaremos porque a vida porá tudo em seu devido lugar.

Capítulo 02 de 07

* Dezembro de 2017, em algum lugar do passado *

Gastei anos e anos me preparando, adiando e, por fim, escolhendo o momento crucial: no dia do segundo casamento de Laura, eu regressaria à minha cidade natal e a raptaria à porta da Igreja, não porque ela quis. Ao contrário. O faria porque eu quis e assim, daria ensejo propício à antiga fantasia dela: submeter-se, por prazer.

Ela estaria a pé, a caminho da porta da Igreja, linda e quase pronta para declarar o grande "sim", mas um carro pararia ao seu lado. Dentro desse carro, eu, homem apaixonado, a olharia com os olhos mais brilhantes, magnéticos e safados da vida. Eu abriria a porta a puxaria para dentro do carro. Ao redor, a gritaria seria geral. Vários convidados acionariam a polícia.

Sem me reconhecer, ela olharia em meus olhos e, extremamente amedrontada, pediria que não lhe fizesse nenhum mal, pois seria apenas mais uma mulher sonhando em construir uma família, apenas uma noiva que ama ao homem com quem se casará e receberia a seguinte resposta:

-Posso imaginar, mas não é dele que vais ser. Você vai ser minha! Hoje! Ou já se passou tanto tempo que o amor morreu e não há como saber quem sou?

Neste momento, os olhares dela se tornariam indescritíveis. Laura penetraria mais de década de mistérios e, submergindo do mergulho nas memórias do nosso amor proibido, absolutamente chocada, diria:

-Meu Deus! Como? Impossível! Não pode ser! É você, T...

-José Mário... Há uma imensidão a dizer, mas não agora.

-Mas... e a minha família... e o meu noivo... e os convidados... O que farei com eles?

-E VOCÊ? QUANDO VAI SE PREOCUPAR CONSIGO MESMA, COM A SUA FELICIDADE? Abra AGORA a janela do carro, jogue o buquê e grite: "-FODA-SE!"

E é o que, num ímpeto, Laura faria. Ela jogaria o buquê do foda-se, alguém o apanharia e eu arrancaria, imediatamente. Para onde ela não saberia o que há de vir. Com um misto de medo e tesão, ela indagaria:

-E a polícia?

Eu sorriria, seguiria o caminho e simplesmente diria:

-Foda-se!

Isto era minha utopia, era o que idealizava, confiando meus planos apenas a Felipe, o melhor e mais leal dos amigos.

Devo dizer, desde já, que NADA do que planejei se concretizou. O que aconteceu foi que...

* Em algum dia do último trimestre de 2006 *

...E as pernas de Laura abraçavam-lhe as costas... Sentada sobre suas coxas, lábio engolindo lábio, língua perseguindo língua, sexos pulsantes, tesão elevado ao inimaginável...

-Zé Mário... Ei, cara, acordaê!...

Dor... Dor persistente, aguda, vívida, ora revelando-se, ora escondendo-se. Um minutoAgora, não dói mais, apenas incomoda. Subitamente, lateja e lateja e lateja. Dói, porra, voltou a doer, tá doendo, caralho!

Mas Laura já se encavalou em seu corpo e toda dona da situação, rebola, espalhando mel. Sentir aquela mulher úmida de desejo sempre o deixa prestes a perder o controle. Algumas vezes, já gozou inadvertidamente, qual garoto que nunca tocou em mulher.

Porém, a dor aperta. Dor misturada com fogo. Calor. Fogo onde todo mundo está pensando. Fogo da porra. E a dor, que não junta as trouxas e vai embora de vez? Nessas idas e vindas, um calor úmido e viscoso vem junto. Vem e fica. E cresce. E se alastra.

-Puta que pariu, o que deu nesse maluco que não acorda nem por um cacete? Porra, Zé Mário, acorda, cara! Tá ficando difícil. Vai, acorda! A gente tinha compromisso. Agora, nem sei se tem mais. Como é que você vai...

"-Laura... Não, para tudo! Tem mais alguém, aqui? Tem ou não? Eu podia jurar que ouvi a voz do Felipe... Não ouviu? É que a voz dele tá loooooooonge, mesmo. Ou eu que tô ficando esquizofrênico..."

A dor. V-o-l-t-o-u! Em 220 volts. É o corpo todo que convulsiona. Umidade que segue se alastrando. Dentes cerrados. Consciência longe. Terra chamando. Laura chamando. Felipe chamando. O dever chamando.

-Acorda, Zé Mário, pelo amor de Deus! Eu tô ficando assustado! Vamos, cara! Reage! Acorda! Nem sei o que é pior: você não acordar ou ter certeza absoluta de que depois, vai se abrir e me contar seu sonho erótico. Que pesadelo! Acorda, por favor...

-Hã? Felipe? Caralho, que horas? Ah, não! NÃO! NÃO! ISSO, não, puta merda! Eu tô fodido, Felipão! Fodido! E agora? Acho que eu nem sei mais lidar com isso! Quase cinco anos que não...

-Calma, não precisa explicar. Como você está?

-Sentindo dor para um caralho.

-Engole esse comprimido. Vai te fazer bem. Isso. Toma um banho, sem pressa. Morno, viu, animal, rs? Toma pra você. Se não for desse tipo, depois a gente arranja o certo.

-...Onde...?

-Sem perguntas, meu. Vai logo.

Ele no banho, eu aqui, perdido em pensamentos emaranhados... Caralho, Zé Mário, para ficar tranquilo com a minha consciência, vou ter que ir com você ao ginecologista. Você é maior e mais forte que eu, mas.. Mas é que eu tenho tanto medo de alguém fazer uma covardia com você! Tantos foram espancados para apanhar "feito homem"! Tantos foram mortos! Eu não posso deixar que nada de mau aconteça a você, porque... Bem... porque... Porque deixa quieto, Zé Mário! Você está aí, a vida toda, apaixonado por essa Laura, enquanto eu, que me importo, que estou bem aqui... Que merda, Zé Mário, eu, casado, dez anos mais velho que você, pai de três filhos e... E hétero, porra! Ou era. Hétero é você, que só curte mulher. Eu pensava que só curtia mulher. Até surgir você, colega de estrada, caminhoneiro, viril e... e transgênero. Verdade seja dita, antes de o saber, já estava apaixonado pelo homem que você é... Agora me fala, filho duma puta, o que é que eu faço com meus sentimentos? Enfio no cu? Acredite que se pudesse enfiar, eu já tinha enfiado...

-Vixe, Felipão, sua cabeça vai dar curto, rs! Menos pensamento e mais ação! Bora tomar café para carregar?

-Carregar? Ficou maluco? A gente vai, sim, mas é procurar médico para você.

-Menos, meu. Não estou doente. Não sei em consequência de que resolveu descer mas a causa, eu sei: cheguei até aqui sem nenhuma cirurgia.

-E por que não? Não quer se ver livre disso?

-Eu estava livre, Felipão. Há quase cinco anos. Além disso, você sabe quanto tempo de repouso é necessário após a histerectomia? Não posso ficar parado todo esse tempo sem ganhar nada, haja reserva! Desde que a Ieda se casou e partiu, não tenho família, aqui. À casa dos meus pais, sinto que ainda não é hora de voltar, principalmente operado e dependente de cuidados. Não tenho quem cuide de mim e sou péssimo para fazer repouso. Bora. Já vivi isso antes e sei que uma cólica não vai me matar. No máximo, vai me matar de raiva. Vai ser uma merda ficar parando para me trocar mas o que não tem remédio, remediado está.

-Eu fui burro, né? Podia ter procurado se a Isa deixou alguma caixinha de absorvente interno no caminhão. Quer que eu vá procurar? Isso te ajuda?

-Não, Felipão, não ajuda. Onde você está pensando não entra nada. Se fosse obrigado a introduzir algo, preferia colocar no segundo distrito. Lá, não, de jeito nenhum.

-Quer dizer que você nunca...

-Uma vez, Felipão. Só uma vez e nunca mais. É uma longa história. Um dia, eu te conto.

Após deixarmos a pequena pousada onde tínhamos passado a noite, fomos carregar e senti um medo insano de que em algum momento, o sangue pudesse vazar, denunciando o meu parceiro. Que tinha nome e documentos de homem. Todos. Como os conseguiu, eu ignorava mas pressentia expedientes heterodoxos. Sem cirurgia. Sem processo. Sem lei. Sem burocracia. Ainda assim, documentalmente do sexo masculino.

Naquele dia, não tive paz. Viajava, mas pensando nele. Quando nos separamos, quis deixar a cartela de buscopam em seu bolso mas me contive. Meu segredo, a cada dia, se aproximava mais e mais da superfície. Isa se queixava e apontava - com toda razão - a minha recente frieza quanto à "nossa" intimidade. Um "nossa" praticamente não aplicável. Eu estava ali, mas o coração tinha deixado de participar. Sem dramas mas também, sem entrega.

Lembrei-me da noite em que, para desestressar, ao chegar na parada, não quis água, café, refeição ou banho mas peguei meu violão e comecei a cantar e tocar o que viesse à cabeça. Entre as músicas, uma, excepcionalmente brega, que ouvia à minha mãe, desde a infância: "ela nem sabe que eu a vi chorando em frente ao altar com seu véu branco e um rosto triste por alguém que já não está."

De repente, avisto um vulto que vai se delineando. Botas, pernas compridas escondidas por um jeans surrado, homem que sai de debaixo do seu caminhão. Pergunto-lhe se precisa de ajuda. Não. Já resolveu. Mentira. Resolveu só o problema do caminhão mas o do coração está de pé. Pelo visto, a pérola do Magal o afetou. É jovem, posso perceber. Tem os olhos vermelhos. Chorou, é óbvio. E quem chora, sente dor. Quem sente dor, em tese, psicopata não é, logo, tem uma grande chance de ser gente boa. Chorou pelo amor que já não está? Analiso ao mesmo tempo em que ele se apresenta. Nos tornamos bons colegas. Bons amigos. Fácil ser amigo dele, Zé Mário era um cara de bem com a vida. Solteiro mas fazia bastante sucesso com a mulherada. Na rota que fazíamos, conhecia a putaiada toda. No sentido bíblico.

Mais de um ano se passou até que eu tivesse coragem de perguntar acerca do que sentiu, ao ouvir a música que lhe fez chorar. Era feriado, estávamos na minha casa e Isa fazia as crianças dormirem. Entre uma e outra cerveja, joguei o assunto. Ele me confiou parte de sua história de vida e seu segredo. Retribuí admitindo para mim mesmo o que estava latente: eu pensava demais nele, importava-me demais com ele, interessava-me amiudadamente por tudo que dizia respeito a ele. Porque, na verdade, o queria. Não só na minha cama. Para ser meu. No coração eterno que ultrapassa quinhentos incêndios e mil mortes.

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Comentários

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Perdão, meu comentário saiu cortado. Tive que postar de novo. Beijos.

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Coroa, o seu elogio sobre a escrita significa muito para mim pois você é um ótimo escritor, sempre atento e colocando tudo em contexto. Muito obrigada! Sobre a questão da histerectomia: ele não fez. Felipe e José Mário passam a noite em local próximo aonde irão carregar. Felipe acorda primeiro e descobre que seu amor secreto está sangrando, o que ele não estranha, pois sabe que José Mário é trans. O que Felipe questiona é que ele deveria fazer a histerectomia para deixar de menstruar, momento em que indaga: não quer se ver livre disso? Seguindo-se o esclarecimento: "Eu estava livre, Felipão (livre da menstruação, não do útero). Há quase cinco anos...", enumerando suas razões para não submeter-se à cirurgia: lucros cessantes, falta-lhe família e paciência para fazer o repouso exigido. José Mário é um trans sem nenhuma cirurgia. Nem mastectomia (por quase completa ausência de seios) nem histerectomia, porque a terapia hormonal lhe fez deixar de menstruar. O sangramento que ocorre neste capítulo é um episódio ocasional que José Mário, futuramente, associará ao falecimento de Augusto, como uma reação inconsciente. Um detalhe: escrevi o início do conto com muita ajuda da Nandinha (minha mulher, Fernanda). Foi ela quem me explicou detalhadamente a dor misturada com excitação que muitas mulheres sentem quando estão prestes a menstruar e que relatei no sonho erótico de José Mário. É o útero que o induz ao sonho que posteriormente, ele irá contar a Felipe, que, subentende-se, ouve tudo com o coração partido. Beijos e obrigada pela alegria de ver que você leu.

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completa ausência de seios) nem histerectomia, porque a terapia hormonal lhe fez deixar de menstruar. O sangramento que ocorre neste capítulo é um episódio ocasional que José Mário, futuramente, associará ao falecimento de Augusto, como uma reação inconsciente. Um detalhe: escrevi o início do conto com muita ajuda da Nandinha (minha mulher, Fernanda). Foi ela quem me explicou detalhadamente a dor misturada com excitação que muitas mulheres sentem quando estão prestes a menstruar e que relatei no sonho erótico de José Mário. É o útero que o induz ao sonho que posteriormente, ele irá contar a Felipe, que, subentende-se, ouve tudo com o coração partido. Beijos e obrigada pela alegria de ver que você leu.

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Devo antes de mais nada elogiar a qualidade do texto. Escrita primorosa aumentando o prazer de ler. Leitura esta que exigiu muita atenção, para saber da paixão do Felipão pelo Zé Mario/Talita, que ama a Laura. Se faltou algo foi sobre a histerectomia. Foi por opção para não engravidar ou algum tumor obrigou a isso? Beijos.

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Mas gente! Além de cavalheiro é modesto! Falou uma grande verdade, Alec W. É difícil de conciliar mesmo mas as crianças crescem e aos poucos a gente vai arranjando um tempinho aqui e ali. Beijos, inclusive para sua família.

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Vim agradecer pela parte que me toca, em comentário no conto anterior. Agradecer e responder à tua pergunta. Para criticar, eu deveria saber fazer melhor. Realmente não sei. E, claro, visualizado o triângulo, já escolhi meu lado favorito. Parabéns por escrever. Sou pai e há mais de ano não consigo conciliar paternidade, trabalho e escrita. Abraço, beijo, aplausos e prossiga!

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