O intruso suspeitoso
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
1
NO ÔNIBUS LOTADO ÀS SEIS HORAS DA MANHÃ A CONFUSÃO se formou de repente. O velhinho sentado na janela do banco dos idosos se levantou furioso. Ele estava realmente fora de si. Dava a impressão de que teria um treco.
- Quem foi esse filho da puta?
O senhor ao lado com um boné da seleção do Brasil entrou na onda, engrossando os ânimos, aos berros:
- Fedeuuuuuuuu...
2
Bota fedeu nisso. Todos os demais, principalmente os que estavam em pé, no corredor, aderiram a roda, em coro uníssono.
- Demais. Além da conta. Essa bunda só falta ser enterrada. A alma apodreceu faz tempo.
- E fiofó tem alma?
Um mais gaiato e engraçadinho que esse, no espaço dos cadeirantes rugiu estrepitoso.
- Que mal cheiro dos infernos! Não tem banheiro em casa? Precisava vir cagar logo na nossa beira?
Um homem que carregava uma sacola cheia de bugigangas se manifestou a voz enfestoada.
- Deveria ter deixado o bufante nos infernos.
3
Pelo fato de chover torrencialmente, todas as janelas do coletivo estavam fechadas. Não havia uma sequer aberta, para deixar entrar um arzinho benfazejo. O cheiro acre se espalhava com uma velocidade impressionante. Em questão de minutos, todos os passageiros sentiam a podridão que impregnava o ambiente.
- Puta que pariu!
4
Um afoito e completamente fora de si escancarou:
- Vai arrotar feio assim nos quintos. Nos quintos, nos quintos...
- Deve ter comido lavagem de porco – observou um rapaz todo encapuzado encostado nas barbas do trocador.
- Se tivesse como, eu tirava o nariz...
- Não haverá uma próxima. Deixarei o meu cheirador em casa.
- Sair sem nariz? Qualé, mano? Pega esquisito!...
- Esquisito é cheirar essa catinga. Olha que coisa de louco.
Na entre prosa aqui e ali, lá e acola, retardatários seguiam resmungado:
- Quem foi esse desgraçado? – procurava um.
- Só pode ser um cagador sujo – obtemperava outro.
5
Claro que o dono do traque fumegantemente catingoso se mantinha quietinho no seu canto. Todos se olhavam, se mediam se mimoseavam com gestos impassíveis. “Foi você?”. O autor da inhaca não podia, sequer, dar sinais da sua presença. Certamente seria agredido, pisoteado. Sem contar que levaria uma surra, além de xingado e arrancado a força de dentro do buzão. Seu silêncio, no âmago do coração, não podia no pior dos mundos, dar sinais de estar respirando. Nessa balbúrdia, quem seria o funesto vilão?
6
Enquanto esse questionamento vagava de canto a canto, de passageiro a passageiro, uma jovem em aparência de dezoito anos, bela, impecável, elegantemente vestida numa blusa azul e um jeans branco, puxou a cordinha do sinal. Os machos de plantão, incluindo os dois idosos dos assentos preferenciais, por milésimos de segundos se esqueceram do desastroso fluido anal abortado em hora incerta e local proibido para se deliciarem com a deusa que desceria no ponto seguinte.
- Que maravilha!
- Que fofura! Oia...
- Essa eu levava para casa sem pensar duas vezes.
- Teria coragem de jogar minha mulher na lata de lixo.
7
A deusa, enfim, apeou deixando atrás de si um amontoado de assovios ominosos. Até ai tudo bem. Todavia, quando ela se distanciou do coletivo, um malicioso jocoso ao meter a cara na janela e molhar o rosto em vista da chuva forte, deu o sinal.
- Reparem amigos. Foi ela. Foi ela quem peidou.
De fato. Do traseiro da elegante, uma roda amarelada possivelmente de bosta, se destacava. Sinalizava que a flatulência se desgaizeficara, inquestionavelmente de seu belo e suntuoso orifício anal. Em peso, a resposta tomou vida e forma.
- Cuuuuuu sujo, cuuuuuu sujo, cuuuuuu sujo...
Conclusão.
Sem olhar para trás, a beldade seguiu em frente sem se importar com os alaridos que retumbavam às suas costas.
(*) Aparecido Raimundo de Souza. Escritor. Do livro. "Punhetagens do cotidiano"Editora Orion - São Paulo 160 páginas.