Se tivesse havido carinho e sexo de verdade, acho que eu poderia dizer que Marcelo e eu vivemos uma lua de mel naqueles dez primeiros dias de férias, antes de cada um viajar para estar com a família. Bom, não rolou sexo nem eu tinha qualquer expectativa quanto a isso. Mas, para minha surpresa, houve “climas”, digamos assim.
Apesar desses “climas”, continuei a ver Marcelo como um hétero com o qual pensar em sexo não teria qualquer sentido – embora tenha passado a pensar nele nestes termos também; tornou-se inevitável. Otávio e Rodrigo também eram héteros, mas tinham um claro perfil de fudedores. Eu os via assim antes mesmo de começarem a me pegar , ainda que não pudesse imaginar que um dia eles fossem fazer sexo comigo. Mas as conversas que tinham, o gestual displicentemente sensual de seus corpos seminus pela casa, o perfil de pegadores que Otávio alardeava e Rodrigo acompanhava, ainda que com menos ênfase, essas coisas me faziam vê-los efetivamente como machos, ainda que, na época, inalcançáveis.
Mas isso não acontecia com Marcelo. Não que fosse assexuado: impossível ver a musculatura discretamente desenhada no corpo de um homem de 1,92m apenas de short e ignorar a sensualidade que emanava dali. Mas eu o via como um cara muito sério, que provavelmente vivia suas sacanagens quando dormia fora ou chegava muito tarde, mas que mantinha essa sexualidade reservada para quem e quando achava que devia. O que aconteceu naqueles dias foi que nossa intimidade aumentou e, involuntariamente, sua virilidade não teve como não me chamar a atenção, mesmo admitindo que nem de longe fosse direcionada ou adequada para mim.
Afinal, sendo ele um cara fisicamente atraente, charmoso, hétero (e, portanto, ativo) e com uma personalidade que eu julgava interessantíssima, como é que eu, totalmente homossexual e totalmente passivo, poderia ignorá-lo como macho? Claro que não tinha jeito. E naqueles dias, pela proximidade que tivemos, essas suas qualidades ficaram muito presentes, muito claras; transbordaram, ao menos para mim. Eu estava passando dias sozinho com um macho, e nossa diferença quanto a isso era patente. Impossível ignorar – ainda mais porque, como sempre, apenas um short cobria aquele corpo.
Mas ver um homem como macho não significa necessariamente achar que pode acontecer alguma coisa. O que aqueles dez dias fizeram, por conta destes “climas” aos quais me referi, foi me mostrar a dimensão viril de Marcelo; foi vê-lo como homem, e não apenas como o cara bacana com quem eu dividia o apê. Mas era o cara bacana com quem eu dividia o apê.
Bom, em realidade não foram os dez dias, mas apenas uma semana, porque nos primeiros três não nos aproximamos tanto, apesar de quase não sairmos do apartamento. Ele ficava mais em seu quarto, com a diferença de que passou a deixar a porta aberta. Creio que julgou desnecessário fechar porque, sem Otávio e Rodrigo, a casa estava mais tranquila. Eles falavam alto, eram agitados, muitas vezes exageravam no volume da TV, enquanto eu era mesmo mais na minha, e Marcelo sabia disso. Nem mesmo o som da sala eu usava, porque preferia ouvir música no celular, usando fones. Então, não havia por que fechar a porta.
Essas não foram as únicas alterações na rotina. Além de não sairmos e de ele manter a porta aberta, naqueles três dias fizemos muitas refeições juntos. Curioso que, sem eu avisar, ele pareceu logo no primeiro dia entender que teria sempre o café da manhã à espera, e minha companhia também – e isso se repetiu nos dez dias. No primeiro, ele saiu para almoçar num restaurante a quilo que funcionava no térreo do prédio ao lado, mas depois passei a fazer almoço para nós dois. Nunca fui muito de cozinhar, mas me animei por causa dele e, confesso, também porque me deu preguiça de ter de todo dia sair para comer.
Queria passar o dia todo em casa mesmo; esse era meu plano: descansar, me preparando para enfrentar a maratona de duas semanas com meus pais. Depois, descobri que ele tinha pensado a mesma coisa, e por razão parecida. Mas também porque merecia mesmo descansar, já que, pelo que depois comentou, a perspectiva de conviver com o pai nos dias subseqüentes era estafante. Dentre todos nós, Marcelo era quem tinha a rotina mais dura, tanto pela dedicação a uma vida acadêmica bem intensa como porque, eu saberia depois, a conciliava com atividades físicas constantes.
Ele via filmes, lia, ou simplesmente ficava de papo pro ar dentro do quarto. Às vezes, na sala também, até mais do que costumava quando Otávio e Rodrigo estavam. E eu, no mesmo clima de preguiça, também curtia um bom ócio, quando não estava na cozinha ou tinha de sair para ir ao mercado ou à padaria. À noite, fazíamos um lanche.
Não variei muito o cardápio porque, não sendo muito dado a cozinhar, nem tinha como pensar em diversificação. Ou era macarrão ou um bife com arroz e ovo – e, mesmo assim, porque contava com uma panela elétrica de arroz, dada pelo pai dele antes mesmo de eu ir morar lá, e que antes disso era muito pouco usada. Bom, pra fingir que não era tudo sempre igual, eu fazia também umas saladas, tentando variar nas verduras, e muito mal e porcamente revezando molhos e formatos da massa: rigatone, farfalle, fidelinho.... Não sei se convencia, mas ele não reclamou dessa dieta tão monótona. Apenas, nos nossos dois últimos dias juntos, decidiu descer e trazer umas quentinhas do restaurante a quilo. Trouxe-as, simpático, dizendo que eu estava tendo muito trabalho.
Foi no quarto dia que as coisas começaram a mudar. Falávamos sobre cinema no café da manhã quando coincidiu de eu citar um filme que ele pretendia assistir naquele dia. Marcelo pegava muitos filmes na internet; assistia muito. E então me perguntou se eu não queria ver com ele, no quarto dele. Era o único que tinha uma TV própria, também dada pelos pais, bem maior do que a da sala. Sei que parece meio cômico, mas me senti como tendo recebido a maior honraria do mundo.
Não apenas eu, mas Rodrigo e Otávio também viam o quarto de Marcelo como um cômodo no qual devíamos entrar sempre com muita cerimônia e, claro, apenas na presença dele. Não era uma regra formalizada, explicitamente determinada. Foi se estabelecendo entre nós naturalmente, creio que muito em função de Marcelo sempre se manter no quarto com a porta fechada. Ele a deixava aberta quando não estava no apê, mas mesmo assim ninguém pensava em entrar lá. De qualquer forma, nenhum de nós mexia nas coisas dos outros e sempre se evitava entrar no quarto de quem estava fora; eram normas de convivência que ninguém nunca desrespeitou.
Fomos ver o filme um pouco depois do almoço, e quando entrei no quarto me sentei na poltrona que ficava ao lado da cama, mas numa posição não muito boa para assistir a TV. Era uma poltrona de couro, idêntica à que havia no quarto de Rodrigo e Otávio, e que originalmente compunha a mobília da sala, quando o apartamento era usado pela família de Marcelo em suas estadias na cidade. Com exceção de boa parte da sala, toda a mobília do apartamento ainda era dessa época, inclusive as duas camas de solteiro do quarto dos rapazes, antes utilizadas por Marcelo, ainda garoto, e por uma tia que morava com eles e que falecera alguns anos antes.
O filme mal havia começado e ele apertou o botão “pause” no controle remoto.
– Você vai ficar aí?
Eu olhei para ele, sem saber o que responder.
– Vai ficar com dor no pescoço. Melhor assistir daqui – disse, referindo-se à cama, onde estava deitado. – Anda, pode ficar aqui também; sem problema.
– Pô, Marcelo, não vou ficar deitado na sua cama; nada a ver.
– Deixa de ser fresco, Zeca. Deita aqui logo pra gente assistir.
Obedeci, quicando de alegria por dentro, mas sem deixar transparecer, e me acomodei. Evidentemente, guardei uma certa distância do corpo dele. Não, não, não: não nos roçamos, não houve nenhum movimento suspeito, nenhuma sugestão de contato. Éramos apenas dois caras assistindo um filme deitados lado a lado numa cama porque essa era a forma mais confortável de fazê-lo.
E isso se repetiu em todos os dias subseqüentes, porque ambos gostávamos de cinema, Marcelo tinha muitos arquivos de filmes e sua TV era enorme. Logo nessa primeira vez, vimos três filmes, quase direto. No segundo deles, começou a se estabelecer o hábito de ele dar uma pausa na exibição para falarmos sobre algum assunto despertado pelo filme. Isso mesmo: Marcelo começou a falar mais, a puxar conversa.
A princípio, esses assuntos surgiam por alguma observação ligeira que ele tinha feito a propósito de uma cena. Depois, eu mesmo, sem me dar conta, também passei a fazer observações. E, quando elas se desdobravam em diálogo, ele parava o filme para que pudéssemos conversar sem perder nada. Não agia como se fossem interrupções indesejadas, como algo que estivesse atrapalhando. Parecia gostar, e eu também.
Dessa primeira vez, também começamos um outro hábito: o de assistirmos os filmes beliscando alguma coisa. Uma vez brincou comigo, dizendo que eu voltaria para a minha cidade com pelo menos dois quilos a mais. Bom, se acontecesse, valeria a pena mesmo. Eu não era gordo, nem sequer cheinho, mas era fácil perceber que eu era daquele tipo “falso magro”: se vacilasse, me tornaria gordo com facilidade. Era o oposto dele: Marcelo tinha um corpo esguio, “seco”. Sua musculatura era relativamente aparente não porque fosse especialmente desenvolvida, mas pela quase ausência de gordura. Ele tinha um corpo bonito, embora bem diferente do troncudo Rodrigo ou do também “falso magro” Otávio – embora este ainda guardasse uma herança razoável dos anos seguidos da musculação abandonada já há algum tempo.
Quando combinamos de assistir o terceiro filme, fizemos um intervalo, claro, não apenas para lanchar mas para descansar mesmo. Afinal, ninguém – ou, pelo menos, não eu – está habituado a ficar vendo um filme atrás do outro. Então, desci rapidinho e comprei pipoca e refrigerante para nós. Ele me recebeu com um sorriso de aprovação – e, me pareceu também, de quem estava achando graça de eu estar propondo um programa tão adolescente. E que se repetiu todos os dias, dali para a frente.
Fiz essas compras ainda nos dois dias subsequentes, até que ele mesmo assumiu essa tarefa. Deixei escapar que estava meio duro, porque, como era mês de férias e eu iria estar com meus pais, eles não haviam depositado a grana habitual para mim. Então, Marcelo estabeleceu que ele é quem compraria estes petiscos – praticamente, as únicas saídas que fez naqueles dias. E expandiu as opções: além da pipoca ou da batata frita e refrigerante que eu comprava antes, trazia também cerveja, vinho, uns frios, coisas assim mais diferentes. Não me avisava antes: decidia e trazia, como surpresa.
Foi por causa do vinho que aconteceu o primeiro incidente, digamos, sexual. Não, não ficamos meio bêbados e aí, por conta disso, eu ou ele nos liberamos e acabamos nos agarrando. Esse tipo de artifício não combinaria com Marcelo, mesmo que ele fosse gay e estivesse interessado em mim. O que aconteceu foi que, efetivamente, fiquei meio alto, por causa do vinho, e acabei tendo de desistir do filme. Eu sou de beber, mas apenas quando estou com amigos – o que significa que eu não estava habituado, já que não tinha uma vida noturna muito agitada. Além disso, eu costumava beber cerveja, não vinho.
Foi num dia – na verdade, numa noite, pois a esta altura ficar no quarto dele frente à TV se transformou no nosso programa noturno – em que assistimos nada menos do que quatro filmes. Na véspera, ele havia falado em como gostava de filmes noir e eu comentei que também me atraía, mas que eu havia visto muito poucos. Então, selecionou cinco, que considerou fundamentais para que eu conhecesse melhor o gênero. Eu topei a maratona, inclusive porque, como é comum nestes filmes, eles duravam, cada um, pouco mais de uma hora.
Marcelo havia comprado presunto parma, queijo gorgonzola, um pão italiano e um vinho também italiano, que era muito bom. Acabei me entusiasmando e, pela primeira – e única vez – abrimos uma segunda garrafa, só que de outra marca. O fato é que, já de madrugada e no final do quarto filme, eu me senti meio zonzo. Ele percebeu e decidiu que era melhor eu ir dormir; que continuaríamos a assistir depois. Eu obedeci, levantei meio titubeante, ele quis ajudar, mas eu, orgulhosamente, disse que não era necessário.
Quando cheguei ao meu quarto e me deitei, parecia que tudo rodava. Aquilo me deu aflição e achei que deveria tomar um banho frio para melhorar. Mas eu não queria que Marcelo ficasse tão a par assim do meu estado. Fiquei com vergonha. Parecia coisa de adolescente inexperiente, e eu sentia que ele volta e meia me tratava mesmo como se eu fosse um, e não um cara com a mesma idade que ele. Eu até gostava disso, e nem soava artificial, porque o próprio jeito dele sugeria mesmo que fosse mais maduro que eu. Mas confirmar que efetivamente merecia aquele tratamento porque era um galalau que não conseguia agüentar meia dúzia de taças de vinho era demais.
Então, decidi que tomaria banho ali no meu banheirinho mesmo, debaixo daquele chuveiro mal ajambrado que fatalmente molharia o entorno todo. Mas, àquela altura do campeonato, foda-se. No dia seguinte, eu secaria tudo. E aí veio o problema: eu não tinha como secar meu próprio corpo, pois a única toalha ali era a de rosto. Eu poderia sair para a área de serviço, mas estava completamente nu e se pusesse o short de novo, ele também ficaria molhado. Enfim, bêbado do jeito que estava, tomar tantas decisões me pareceu um desafio intransponível. Então, joguei tudo pro alto e saí peladão mesmo, me jogando todo molhado na cama, sem nem apagar as luzes nem nada. E acabei adormecendo desse jeito.
No dia seguinte, acordei com o despertador do celular. Embora não tivesse mais aulas, eu acordava relativamente cedo. Era uma garantia de que compraria o pão fresquinho e prepararia o café antes de Marcelo levantar-se. Eu gostava que ele encontrasse tudo já pronto quando chegasse à cozinha.
Sempre o esperava lá porque, embora ele tivesse passado a dormir de porta aberta, eu achava muito invasivo entrar no quarto para acordá-lo, mesmo que estivesse na hora em que estava se levantando naqueles dias de férias. Então, comia alguma coisa só para matar o jejum e ficava esperando por ele.
Bom, eu não sou santo, e acho que por tudo o que já contei é fácil perceber isso. Então, confesso que houve duas manhãs em que arrisquei ir até o quarto e dar uma entradinha, para fazer a coisa mais gay do mundo: tentar pegá-lo em ereção enquanto dormia. Eu sei perfeitamente que não há proporção entre o corpo, a altura, e o pênis, assim como também não com o nariz, as orelhas, os dedos. Mas a gente sempre carrega essas fantasias. E, assim, eu tinha uma tremenda curiosidade de saber qual o dote que aquele cara tão alto tinha entre as pernas. Mas, para meu azar, Marcelo dormia justamente na posição oposta à minha, que sempre ficava de barriga para cima: o desgraçado dormia de bruços! Mesmo que estivesse com o pau durão, eu não teria como ver. Por isso, desisti logo na segunda tentativa.
Bom, o despertador tocou e, claro, a primeira coisa que fiz foi procurar um short para me vestir – e, também, uma camiseta. Sei que o que vou revelar agora beira o ridículo, mas o fato é que, por alguma razão inexplicável, à medida que aumentava a proximidade com Marcelo eu fui me sentindo constrangido em estar com ele apenas de short. Então, passei a me cobrir com uma camiseta.
Ele não demonstrou qualquer estranhamento. Seria normal fazê-lo, porque era muito raro que qualquer um de nós quatro ficasse no apê de outra forma que não sem camisa. Mas, se comentasse alguma coisa, eu atribuiria ao fato de estarmos no inverno. Era uma desculpa estúpida, porque naquela cidade o inverno só dava as caras em três ou quatro dias da estação, e mesmo assim com temperaturas que não iam abaixo dos 16 graus. Mas ele não falou nada, e então não tive que dar satisfação.
Foi então que, ao pegar o celular para sair do quarto, me deparei com o carregador ao lado dele, em cima do banquinho que fazia as vezes de mesa de cabeceira (não haveria como ter uma de verdade, devido à pequenez do quarto). E, justamente porque o banquinho era muito pequeno e corria o risco de o celular cair caso eu o enchesse de coisas, eu tinha por hábito guardar o carregador no armário. Nunca o deixava ali.
Tentei me lembrar dos momentos antes do banho, pois talvez eu tivesse vindo com ele e, zonzo como estava (e continuava ainda um pouco, na verdade), o soltara por ali mesmo. Mas, não. Eu tinha certeza de que saíra do quarto de Marcelo direto para o meu, justamente porque estava ávido por me jogar na cama e dormir para me livrar daquela tonteira toda. E foi aí que percebi, com um certo horror, o que devia ter se passado.
Bom, antes tenho que explicar algumas coisas, para que se possa compreender o porquê de eu ter ficado tão apavorado. E o porquê de ter permanecido por tantos minutos sentado na cama, antes de tomar coragem para enfrentar o olhar de Marcelo naquela manhã.
Creio que, até hoje, um cara com o pau todo lisinho, especialmente pelas minhas características, cause uma certa impressão. É verdade que atualmente não é tão incomum que os caras se raspem, inclusive os heterossexuais. Muitos, inclusive, postam selfies mostrando o cacete careca durão, na tentativa de atrair mulheres.
Eu não gosto. Podem argumentar que é mais higiênico, que é mais confortável para quem vai fazer o boquete ou que a ausência dos pelos faz o pau parecer maior. Nada disso me convence – nem mesmo essa história de parecer maior, porque, se o cara tiver um dote médio, o resultado apenas evidencia o óbvio: que, além de ele ter um pau apenas médio, ainda passa a apresentá-lo de uma maneira menos viril. E, se tem o pau grande, fica parecendo uma tromba desconjuntada no meio das pernas. Acho feio. Macho tem pelos no pau e pronto; cada um com seu gosto.
Mas, naquela época – e nem tem tantos anos assim –, ninguém depilava aquela área; quando muito, aparavam discretamente. Os caras que faziam musculação recorriam à depilação, mas se limitavam ao tronco, às pernas, para exibir a musculatura obtida após tanto esforço. Mas não, jamais, depilariam a parte mais determinantemente masculina de seus corpos. Acho que nem mesmo os gays passivos faziam isso; creio que não. E eu, desde a primeira vez que havia feito, nunca mais deixei de passar o barbeador naquela área assim que via os primeiros fiozinhos despontarem. Praticamente, me raspava todos os dias, deixando sempre bem lisinho.
Nem era para me exibir para Otávio ou Rodrigo, porque eles simplesmente haviam ignorado a novidade; não davam qualquer importância a como era ou deixava de ser o que eu tinha na frente. Era para uma satisfação minha mesmo. Desde aquela primeira tarde em que me admirei no espelho estando daquela maneira, passei a encarar a existência daqueles pelos como um defeito que eu tinha que banir para me sentir à vontade comigo mesmo.
Pois bem: eu dormira completamente pelado, com meus genitais todos lisinhos e, como era costumeiro devido ao calor do quarto pequeno e sem janelas, deixei a porta aberta. Para completar o quadro que me levou à terrível constatação do que havia ocorrido, deixara a luz acesa e... eu sempre dormia de costas para o colchão! Essa era a posição que assumia quando caía no sono. Mesmo nas cinco ou seis noites que passara com os únicos dois caras com quem havia tido relações fixas, eu acabava ficando deitado assim, de barriga para cima, mesmo tendo adormecido em posição de conchinha. Claro, devia mudar de posição durante o sono, como qualquer pessoa, mas sempre acabava voltando a ela.
Na hora, em fração de segundos, me veio à cabeça tudo o que devia ter ocorrido. Na noite anterior, eu tinha conectado o celular ao carregador plugado numa tomada no quarto de Marcelo, para recarregar a bateria enquanto víamos os filmes. Quando saí, tonto, nem me lembrei do aparelho. Marcelo, provavelmente, ficou assistindo o resto do filme, nem que fosse para esvaziar a garrafa de vinho – pois dizia que não há outro destino senão o lixo quando há sobra de vinho na garrafa.
Então, possivelmente, quando se levantou para apagar a luz e dormir, deve ter visto o aparelho e decidiu levá-lo para mim. Ele sabia que eu contava com o celular junto à cama, porque punha o despertador todos os dias. Eu mesmo, sem me dar conta do que revelava, havia comentando sobre isso. Como sempre, ele apenas me olhou. Não fez qualquer observação sobre o quão paradoxal era aquilo, já que eu havia dito que naqueles dez dias não queria nem compromissos nem atividades, pois, tal como ele, eu só queria mesmo era ficar de papo pro ar. A única razão concreta que poderia haver para eu me preocupar com a hora de despertar era preparar o café da manhã para que tomássemos juntos. Não haveria outra explicação, e ele não a pediu.
Eu podia agora visualizar a cena perfeitamente: ao entrar no quarto, ele se deparou com meu corpo nu, estirado na cama, e ainda por cima sob plena luz. O quarto era pequeno; a cama ficava junto à porta. Pior: para depositar o celular e o carregador no banquinho, ele necessariamente teve de abaixar-se e ficou muito próximo do meu corpo. Ele tinha visto tudo, sem disfarces! Se fosse hoje, talvez achasse até engraçado que eu me depilasse, podendo me considerar apenas um hétero sem noção. Mas, no contexto da época, certamente não foi isso o que concluiu.
Então, ao constatar o óbvio, o que restou foi me sentar e permanecer completamente sem ação. Marcelo descobrira meu segredo: que eu tirava meus pelinhos, que eu depilava meu pau, que o preferia assim, menos viril! E, evidentemente, deduzira que eu era gay. Mesmo eu tendo modos masculinos, sem qualquer afeminação, mesmo ele não sabendo do que rolava com Rodrigo e com Otávio, mesmo ele nunca tendo visto nada que denunciasse minha atração por homens, Marcelo agora devia estar sabendo que eu era gay!
Eu desconhecia a posição dele sobre homossexuais; nunca havíamos falado disso. Rodrigo e, especialmente, Otávio viviam chamando um ao outro de viado, como uma forma de sacanagem entre si, e mesmo depois de saberem da minha condição, continuaram a usar o termo de maneira depreciativa mesmo na minha frente. Eu não me lembrava de Marcelo agindo assim, ponderei comigo mesmo. Mas, ainda que agora se mostrasse mais descontraído, ele era um cara sempre muito sério; simpático, mas sério. Talvez fosse conservador nestas coisas. Talvez mesmo um homofóbico enrustido. Se fosse assim, jamais iria querer amizade com gays, quanto mais dividir o mesmo teto com um (e, afinal, era ele o dono do teto!). E ainda podia estar mais bravo ainda por estar passando aqueles dias a sós comigo, o que lhe seria altamente comprometedor. E tendo deixado eu deitar na sua cama!
Eu me senti um criminoso, um oportunista que havia se aproveitado da ingenuidade de um cara bacana. Comecei a enumerar meus pecados: de quando tentei perceber sua ereção antes de acordar, do dia em que diminui o passo para conseguir ver alguma coisa de seu corpo enquanto se barbeava pelado no banheiro... Ou das vezes em que não consegui desviar o olhar quando ele se levantava da mesa e, à medida que suspendia o torso, exibia o tórax largo e logo se anunciava aquele caminho de pelos ralos na altura do umbigo que terminava num volume que, em vão, eu procurava identificar sob o short. Nessas horas, como desejei que ele fosse exibido como Otávio e não usasse cuecas em casa! Não foram muitas as vezes que isso ocorreu, inclusive porque eu me apressava em me levantar da mesa antes dele, para que não houvesse dúvida que eu estava pronto para lavar a louça e tudo o mais.
Naquela manhã, nem fui à padaria. Decidi que faria umas torradas com pão de forma mesmo. Não sabia o que me esperava pela frente. Estava ansioso para saber meu destino. Bom, Marcelo era antes de tudo um cara educado, cordato. Eu não levava muito a sério a hipótese de ele simplesmente me expulsar dali naquela hora mesmo, aos berros, como talvez outros fizessem. Mas, numa situação como essa, em que um cara maneiro como ele é traído por um viado que estava se passando por amigo, tudo é possível.
Quando eu terminava de passar o café, ouvi o movimento de sua entrada na cozinha. Eu não tinha saída: tinha chegado a hora de mover a cabeça e enfrentá-lo.
...
[esta parte continua no segmento 8-B]
[PS: Esta parte estava ficando muito grande, e por isso decidi publicá-la assim, dividida em dois segmentos (8-A e 8-B). Estou postando ela mais cedo justamente para ter tempo de terminar o segmento que falta a tempo de publicá-lo ainda hoje. É por este motivo – ter tempo de terminar o que resta ainda hoje – que também não vou dar retorno agora aos comentários feitos pelos leitores nas partes anteriores.]