Cheguei à pracinha cinco minutos antes da hora marcada e sentei num dos poucos bancos que havia ali. Era mais uma sobra de rua calçada e gramada do que propriamente uma praça. Otávio chegou com vinte minutos de atraso e ainda tive que esperar outros enquanto ele desenrolava amenidades para tomar coragem e falar o que queria.
– Quero te fuder, Zeca.
– Agora???
– Não... Se liga... O que to falando é que to na fissura de te fuder, mó fissura.
– Mas você já me fode... É você quem agora quer só que eu mame e...
– Não, bro. Eu quero te fuder. Preciso fuder, parça.
Fiquei olhando, sem entender bem. Ele baixou um pouco a cabeça, com uma expressão muito séria.
– Tô na mó merda, Zeca. Preciso de você. Tu é meu parça. Preciso do teu cu. Só eu e você, sem o Rodrigo. Só nos dois, de parça pra parça.
– Como era no início, é isso? Não estou te entendendo, Otávio. Nunca me neguei a te dar sozinho; você é que não me procurou mais.
– É, mas não. Não que nem no início.
Ficou olhando fixamente para mim. Parecia querer que um milagre me fizesse entender algo que não precisasse dizer. Fez uma careta, como de quem acaba de sentir uma ponta de dor.
– Eu não sou um filho da puta, Zeca.
– Eu sei.
– Sou um cara maneiro.
– Eu sei.
Reacomodou-se no banco.
– Mas, bro... Vou te mandar uma. Eu... – fez uma pausa. – Tu sabe que sou maneiro, não sabe?
– Sei – respondi, já com uma voz impaciente.
– Tu sabe que sou ligadão em ti, não sabe? Que te curto pra caralho, que tu pra mim é irmão à vera, não sabe?
Era um exagero, mas concordei.
– Fala, Otávio. Não vou ficar chateado. Você está me assustando, com tanta enrolação.
Olhou-me por instantes, pensativo. Os olhos piscaram forte.
– Seguinte: – fez uma pausa bem longa, que respondi sustentando o olhar. – Quero te comer como você sendo a Raquel. Calmaí, cara; não fica puto. Vi que você ficou boladão porque deixei sair o nome dela nessa última esporrada. Mó peidão eu. Mas não sou filho da puta e não quero fazer de novo te enganando. Quero ficar contigo como se fosse a Raquel. Tá sabendo quem é a Raquel, né?
O que alguém diz ou faz diante de um cara que diz isso? E ainda exprime toda a sinceridade, a mais completa honestidade, ao fazer um pedido filho da puta como esse? Eu não sei, e não soube mesmo. Fiquei calado, olhando para ele, tentando processar aquela merda toda.
– Pode ser assim?
Continuei sem saber o que dizer.
– Porra, Zeca, to te oferecendo minha pica, brother. Na moral. Te comer como uma menina mesmo, nada de gay. Eu o Otávio e você a Raquel – tentou me convencer.
– Eu...
– Tu vai gostar. Vou te fazer mulher. Na moral; na encolha. Ninguém vai saber. Você não vai ter que ficar se segurando; vai poder...
– Eu não fico me segurando.
– Tá certo, bro. Mas vai poder se soltar de boa; não vou estranhar, não. Não vou te zoar por isso; morre na foda mesmo, como sempre é com a gente. Eu e você feito macho e fêmea, na moral; você sendo mulher. Sendo minha mulher; vou te fazer mulher do Otávio caralhudo.
Esforçava-se para conseguir o que queria e, surpreendentemente, dizendo exatamente o que queria. Mas acho que se deu conta que a situação o empolgava mais do que havia imaginado. Fez uma pausa longa. O tesão transbordava dos olhos. Tenho certeza de que, se eu fraquejasse e olhasse, veria seu cacete pulsando por baixo dos jeans. Voltou à carga:
– Minha namorada, Zeca; te faço minha namoradinha. Putaria gostosa mesmo, mó carinho e tal. Só não te beijo, porque me dá... – evitou dizer, a tempo. – Mas te trato feito menina; quero você minha menina. Deixa eu ser feito namorado pra ti. Você, minha garota. Acabou, pá: tudo igual antes; dois parças. Você não abre a boca de mim pra ninguém e eu igual. Sei que você não é bocudo; é parceiro.
Olhou-me, estudando minha reação. Tentei ficar impassível, querendo ganhar tempo. Ele fez uma expressão levemente risonha, muito carinhosa. Não tinha o charme de Marcelo, mas sabia ser irresistível quando queria.
– Minha menininha, Zeca... Não vai ser difícil; você já é quase minha menina quando a gente tá junto. Só vou completar, pra te fazer feliz também.
Eu quis ser ponderado. Tentei imaginar como Marcelo reagiria:
– Se você quer substituir tua namorada porque ela não quer transar, se quer fingir que está com ela, por que não procura logo uma outra garota? Por que eu? Melhor uma mulher mesmo; uma garota.
– Não... Não rola... Com uma mina eu ía estar traindo a Raquel.
– Comigo não?
– Não; você é parça. É cueca também. Diferente, mas é. Não tem mané traição nada. É jogo entre parças, tá ligado?
– Não é traição?
– Nada. Claro, se ela ficar sabendo vai surtar do mesmo jeito. Pior até. Mas contigo não tem como ela saber, porque tu não é bocudo; nem conhece ela; não anda com a gente. Meninada lá ía logo me entregar; geral de olho na minha rola. Você não; você é parça, e vai ser só um lance entre parças. E também...
Parou; olhou para os lados, com calma.
– E o que?
– É meu coração, Zeca. Sério. Eu to paradão nessa mina, Zeca. Não quero vacilar com ela. Vou casar; quero ela pra mim. Minha parceira, tá ligado?
– Casar?
– É. To pensando em levar ela comigo, quando acabar a facul e eu me mandar daqui.
– Você é doido; mal conhece a...
– Ela é perfeita, bro. Então a parada toda não é só ela. Sou eu também. Coração. Quero ser maneiro com ela; certinho, tá ligado? Não quero entrar em galinhagem. Não quero sentir como se eu tivesse corneando ela. Contigo, não vai ter isso, porque tu é parça, não é mulher – deu uma paradinha e mudou levemente o tom: – Mas vai ser como se fosse, entende? Na minha cabeça você vai ser; vou te sentir assim. Você também. Não quer que eu seja teu macho? Eu sei que quer. Eu também quero, mano. Quero ser teu macho. Te faço minha fêmea. Não vai ser difícil, com o cuzinho que você tem, bro. Vai ser minha namoradinha gostosa. Minha garota na encolha.
Ainda tentei manter um tom sensato. Tudo aquilo era absurdo.
– Mas o que você exatamente quer dizer com isso?
– O que to dizendo.
– Mas é o quê? Eu me vestir...
Interrompeu:
– Não, brother. Sem dessas viadagens... Na minha cabeça, tá ligado? Aqui – bateu com o dedo numa têmpora – e você na tua também. Você Raquel na minha cabeça e se sentindo menina na tua. Na tua e na minha. Eu teu homem e você minha mina. Mas sem eu ficar mascarado que nem da última vez.
Por mais que falasse, era difícil para mim concatenar aquelas ideias todas dele. Aos poucos, ele ía me fazendo entender tanto a sua cara de pau quanto a honestidade com que me queria tratar, por mais surreal que fosse a situação. Era óbvio que eu não ía aceitar. Era ofensivo, e de uma humilhação tal que não me daria prazer.
Na hora, não me dei conta que seria a única chance de ter Otávio da maneira tão completa, de tê-lo tão bonito, como quando o vi comendo a garota na sala do apê, meses antes. Aquele que presenciei, sim, era Otávio; o que eu havia tido tantas vezes era apenas um pedaço dele. O que me oferecia naquele arremedo de praça era ser inteiro para mim, ou quase, em troca de eu aceitar aquele papel humilhante. Se aquele pedaço já me deixava doidinho, imagina ele inteiro... E ele sabia, seguro de que era gostoso, que tinha grandes chances de eu pensar exatamente assim.
– Parça, na moral, não fica puto, não. Aproveita essa. Eu te comer que nem comia ela; te fazendo mulher... Só não vou beijar; de resto faço tudo que ía fazer com ela, se ela deixasse e não deixa. Ninguém fica sabendo. Nem Rodrigo. Morre com a gente.
Parou. Recomeçou:
– Você vai ter mais liberdade. Vai poder gemer mais, sem vergonha de mim. Ficar mais como fêmea mesmo; nem vou ligar. Dengosa, mulherzinha. Vou até gostar, Zeca. Vou me amarrar. Vou te querer sempre assim. Minha garota.
Não é todo o dia que um passivo se vê na situação de um homem másculo, ativo e gostoso como ele se oferecer dessa maneira tão explícita e, tirante o beijo, prometendo fazer de tudo para proporcionar prazer. Talvez Otávio não tivesse tanta consciência de quão raro era o que me oferecia, mas não era burro: sabia que ele era precioso, que era difícil resistir. Se, pelo que eu podia perceber, ele mesmo estava com tesão, creio que imaginava a dimensão de como eu deveria estar. E, em parte, estava mesmo. Ele contava com isso.
Olhou-me bem nos olhos.
– Pode confiar em mim. Na moral mesmo, Zeca. Não vou contar pra ninguém. Nem pro Rodrigo; ninguém. E você eu sei que também não; galera não vai saber o que a gente vai fazer. Eu junto de você, parça, não como parça, mas você minha, e eu teu. Na encolha. Pode confiar aqui no Otavão.
Fez nova pausa, insistindo na estratégia de cumplicidade com uma expressão ainda mais séria:
– Não fica puto. Sei que você é parceiro, só to te mandando essa porque sei que é parceiro.
Meio atordoado, eu disse que ía pensar, mas que para mim era difícil a situação que ele propunha. Uma coisa é ter consciência de que se é apenas um substituto de uma buceta; outra coisa é dividir essa consciência com quem te come, às claras assim.
Subimos juntos. Não ficou um clima ruim. Mas ele quis desfazer qualquer desconforto. Falou de outras coisas, descontraído como era seu jeito, embora não fosse difícil perceber o quanto estava tenso, ansioso, preocupado. Não só pela posição de filho da puta em que sua proposta o punha. Nem só pela expectativa de minha resposta. Estas duas razões talvez fossem as mais fortes. Mas havia também o volume que, embaraçoso para ele, ainda marcava a calça quando nos levantamos do banco. Eu fiz que não vi. Ele aderiu ao meu fingimento e, receoso de que seus movimentos tornassem a situação notória, sequer tentou acomodar o cacete para disfarçá-lo.
Otávio se sentia culpado. Não era um filho da puta, como ele mesmo tinha afirmado tantas vezes, mas sabia que aquela era a solução pensada por um filho da puta, e que estava sendo mais filho da puta ainda do modo como estava querendo me convencer. Antes de abrir a porta do apê, virou-se para mim, mexendo no chaveiro sem me encarar, e falou bem baixo:
– Sou ligadão em você, mano. Não fica bolado comigo.
– Não, não fico.
– Mas quando tu me responde?
Não havia pensado em nada.
– Depois do feriado.
– Depois? – a voz ficou um pouco mais alta. – Tudo isso?
– Queria quando?
– Amanhã, brother. Tô agoniado.
– Depois do feriado, Otávio.
Passei aqueles três dias numa tremenda ansiedade, mas não pela proposta de Otávio. Fui tomado por uma expectativa, totalmente irracional, de que os quatro dias a sós poderia levar-nos, eu e Marcelo, a algum momento de sacanagem, pelo menos quando ele não fosse se encontrar com a mulher. Eu imaginava que seus encontros com ela seriam poucos, talvez até um único, e certamente não por períodos longos, pelo fato de o marido passar o feriadão em casa.
Não havia probabilidade de nada sexual ocorrer, mas fui tomado por uma espera de que pudesse. Não fazia sentido. A situação não seria assim tão diferente dos dez dias que passamos juntos nas férias. Por alguma razão que não compreendia, dessa vez me passavam coisas pela cabeça que antes nem de longe.
Rodrigo me pegou ainda uma vez antes de viajarem. Foi tesudo, mas não apagou meu fogo. Talvez o próprio fato da impossibilidade do tesão ser saciado é que fizesse com que esse fogo me consumisse mais. Admitia que estava apaixonado por Marcelo, mas naqueles três dias fui admitindo mais do que a paixão: que tinha tesão nele, que o queria como homem, como macho.
Não era mais só o fascínio pelo Marcelo, pelo cara interessante, perfeito, o príncipe que só podia ser meu amigo e nada além disso, mas o desejo pelo macho que havia por trás dele, dentro dele. Pelo macho com quem eu ficaria a sós tantos dias seguidos. Talvez tivesse sido assim desde o primeiro dia, desde que o vi. Talvez eu viesse escondendo de mim mesmo, por todo esse tempo, que Marcelo era um macho, e um macho que me atraía exatamente como macho.
Também foram dias de alguma tensão pela tarefa que ele me passara, da escolha dos filmes. Ele me deixou muito inseguro, mesmo que sem ter essa intenção. Era Marcelo quem sempre tinha escolhido os filmes da outra vez, e foram sempre escolhas legais. Um ou outro meio chatinho, mas nenhum que, quando chegasse ao fim, eu concluísse que havia perdido tempo e poderia ter passado muito bem sem ele. Tinha medo de não conseguir acompanhar seu nível.
Para relaxar, numa onda de descansar carregando pedra, dediquei-me a finalizar um trabalho da faculdade que só teria de entregar na terça-feira, após o feriadão. Era justamente da disciplina mais complicada, aquela para a qual havia me preparado nos últimos dias de férias. Só não o terminei porque estava temeroso quanto a um determinado ponto, que poderia comprometer justamente a conclusão do que havia escrito. Na segunda-feira, teria de impreterivelmente pegar o professor na saída de outra aula, no fim da manhã, para que me dirimisse a dúvida. Mas, tendo adiantado quase toda a tarefa, não tinha mais com o que me preocupar até o fim do feriadão. Eu seria só de Marcelo.
Ele me passou a listagem na própria noite daquela segunda-feira, e todos os dias eu voltava a ela, escolhendo e desescolhendo filmes, na esperança de uma luz, que nem a gente fica em prova que não sabe nada, enrolando até o último minuto, esperançoso por um milagre. Eram uns vinte filmes; vai ver que trinta. Acabei escolhendo cinco, em vez dos três que ele havia mandado.
– Bom, pelo visto é um drama entre gays – resumiu, após uns 15 minutos de exibição do segundo filme, quando o protagonista já tinha enrabado um cara dentro de um furgão.
Eu tinha escolhido por achar o título curioso, “God's Own Country”; não conseguia traduzir aquilo por algo que fizesse sentido em português. A sinopse, muito curta, não esclarecia muita coisa, mas também não parecia desinteressante.
Quando lhe passei a listagem assinalada com os que havia escolhido, cheia de rasuras que denunciavam minhas hesitações e que tentei disfarçar com corretor, não especifiquei prioridades, até porque não tinha mesmo. Foi por mero acaso que ele pôs logo aquele pra gente ver após o primeiro. Não tinha sido culpa minha. A lista não tinha muita coisa sobre os filmes, só o nome do diretor, o ano de produção, essas coisas, e sinopses que não chegavam nem a duas linhas. Se eu soubesse que era um filme gay, é claro que não teria marcado aquele.
– Eu não sabia... Eu só... – balbuciei, deitado ao seu lado, como se tornara habitual quando víamos filmes.
– Quer que eu tire? – perguntou, com naturalidade.
Acabamos assistindo inteiro. Como sempre, volta e meia ele fazia comentários, às vezes muito breves, outras poucas acompanhados por uma pausa na exibição. Eu não me atrevia a desenvolver a conversa. Estava totalmente embaraçado; havia posto Marcelo diante de um mundo que não era o dele, e sim meu, e que poderia deixá-lo desconfortável.
Às vezes, eu o olhava, muito discretamente, para ver como estava reagindo. Sentia-me culpado, envergonhado. Ele assistia sem nada de diferente, assim como comentava com a mesma desenvoltura de sempre. Havia duas ou três cenas de sexo, trepadas mesmo, embora sem nada explícito. Homem com homem. Numa hora, os atores apareciam conversando nus, os paus moles na tela por um bom tempo, como se tivessem acabado de transar. Eu não sabia onde enfiar a cara. Ele pareceu não estar nem aí.
O protagonista era um rapaz muito agressivo, viado, mas que ninguém sabia. Era enrustidaço, só ativo, feinho de dar dó. Tudo começava quando foi obrigado pelo pai a trabalhar na fazenda com um ajudante recém-chegado. O enrustido implicava com o ajudante, porque queria continuar a trabalhar sozinho. Explorava, humilhava. O ajudante – um moreno atraente, aliás – ficava na dele, meio puto mas aguentando. Mas, aos poucos, foi virando o jogo até que... créu. Acabou apassivando o marrento, comendo e cuidando dele.
No meio da coisa toda, o filme tinha um clima um pouco pesado. Mas, paradoxalmente, era muito bonito, muito delicado. Era meio disfarçado de amor, mas não era só de amor que falava; era de algo a mais que há entre dois homens e que não é tão levado em conta quando a coisa é entre um homem e uma mulher. Então, era um filme muito masculino, muito de homem para homem, justamente porque muito homossexual. Enquanto assistia, ia pensando que só viados mesmo compreenderiam o que efetivamente se passava ali. Ou, como Marcelo dizia, “o subtexto do filme”. Só viados, mas provavelmente bem poucos viados.
– A questão toda, Zeca, é que não se trata de uma divisão assim, heterossexuais de um lado e homossexuais de outro – disse, servindo a cerveja que, como todas as outras, eu é quem tinha levado para o quarto.
Eu estava bebendo mais do que o usual. Também por nervosismo pela situação, mas, antes, durante o outro filme, já estava neste ritmo mesmo sem nervosismo algum. Tinha uma esperança não assumida de que o álcool poderia facilitar as coisas. Estratégia de viado mesmo, na qual eu tentava não pensar. Fantasiava, também sem assumir, que se eu bebesse mais, Marcelo também beberia mais, para me acompanhar. E então talvez me agarrasse. Não bebi a ponto de dar vexame. Na verdade, ele deve ter bebido mais do que eu, como sempre acontecia.
Quando falou aquilo, interpretei que ele se referia à necessidade de dar fim aos preconceitos, de que héteros e gays deveriam conviver sem problemas. Achei bacana. Só que não.
– Essa é uma divisão que só faz sentido para a biologia, pro sexo como reprodução. Homem com homem não reproduz; homem com mulher reproduz – jogou uns amendoins na boca e pareceu usar o tempo da mastigação para articular melhor as ideias. – Mas se estamos falando do sexo como prazer, e quase todas as vezes que alguém faz sexo não é para reproduzir, e sim para ter prazer, então essa divisão é falsa.
– Falsa?
– Ineficaz.
Ele ficou me olhando, e fiz a mesma coisa.
– Pensa comigo. Imagina, e existem caras assim mesmo, um homem que adora travestis bem femininas, gosta de penetrar nelas e tem um tesão enorme porque são mulheres com pênis. Faz inclusive sexo oral com elas; chupa o pau delas. Esse homem é heterossexual ou homossexual?
Antes que eu respondesse, ele emendou:
– Vão dizer que é homossexual. Elas têm pau, mesmo que sejam paus que não funcionam como paus. São travestis, mas são homens. Ele é homem e, então, faz sexo com outros homens. É homossexual, ou talvez bi, porque também pega mulher; mulher sem pau. Ok. Pensa agora num outro homem, um que tem tesão por caras muito machos; que caras muito masculinos penetrem ele. Adora dar. Também é homossexual. Os dois são homossexuais. Mas eu te pergunto: faz sentido associar um ao outro? São semelhantes no pau, mas são semelhantes no tesão? O prazer que eles têm é o mesmo?
Fez uma pausa. Alguém menos mané estaria mais confortável, vendo-o falar no assunto sem se sentir constrangido. Mas eu não; ao contrário. Preferia que ele tivesse passado logo para um terceiro filme, o mais hétero do mundo, e virássemos aquela página.
– Agora, veja só, um marido que se vicia em fazer inversão... Você sabe o que é inversão, não sabe?
– Sei.
– Pois é, a mulher penetrar o homem com um consolo e eles terem prazer assim nas transas. Esse é heterossexual, certo? Ele faz sexo com uma mulher. É homem, tem a vida sexual exclusivamente com mulher; é heterossexual.
Franziu as sobrancelhas, me olhando. Eu tentava disfarçar o desconforto.
– Não entendeu?
– Você acha que os três são homossexuais, independentemente de estarem com homens ou mulheres. É isso?
– Não – respondeu, com aquele tom ponderado, que nunca se alterava.
Sentou-se na cama. O filme ainda não tinha terminado. Já estava quase no fim, a gente sabia pela duração, mas ele o tinha pausado. A imagem estática na tela era o que iluminava o quarto.
– O que eu estou dizendo é que o critério da classificação é inadequado. É ineficaz, se estamos falando de sexo como prazer. Só é eficaz para os biólogos. Para o resto da humanidade, é uma taxonomia inócua. Nada tem de científica.
Bom, ele vivia no mundo acadêmico... Falava desse jeito como se estivesse num papo de botequim.
– Definir a sexualidade de uma pessoa pelo sexo da pessoa com quem ela faz sexo é inócuo. Não difere nada. Cria classes, tipos, que não se justificam. É uma classificação sem qualquer base empírica.
O jeito dele colocar as coisas, aquele ar meio formal misturado com um ou outro termo mais chulo, ía me desviando do meu constrangimento. Marcelo me envolvia de uma maneira que eu só me dava conta depois. Aquele era um filho da puta do caralho, o tinhoso disfarçado de gostoso.
– O sujeito que come a travesti está muito mais próximo do cara que come uma mulher do que do sujeito que é comido por outro. Estou certo ou errado? – pausou, mas sem me dar tempo para responder. – Então, dizer que um é homossexual e que o outro é heterossexual é o mesmo que dizer nada, porque não classifica o tipo de prazer que eles têm. Que é o mesmo; só muda na forma: um tem gana de possuir uma mulher que tem pau mas se submete a ele, o outro quer possuir uma mulher que nem pau tem. Ambos comem; o tesão deles é esse. Já o outro que dá a bunda tem um outro tipo de prazer que é completamente diferente do que come os travestis.
Ficou me encarando, esperando que eu concordasse. Eu estava meio zonzo. Não pelo que dizia, mas porque dizia.
– Você percebe o absurdo da classificação?
Concordei, mexendo pouco a cabeça.
– Você pensa diferente – foi o que consegui dizer.
– Não. É que eu penso.
Sorriu, daquele modo muito encantador. Se ele não fosse tão gentil, tão cuidadoso, certamente passaria por pedante, arrogante. Não agia assim apenas comigo. Quando se permitia falar, conversar, estava implícito no seu tom que ele se via como “o cara”. Não só convencia, como ainda angariava simpatia. Claro que em outro nível, mas era respeitado até pelos professores, pelos doutores. Tanto que o disputaram para tê-lo em seus projetos, e ele tinha emprego garantido após se formar.
– Se é para classificar, e classificar cientificamente, que se busque um critério eficaz, que faça algum sentido, que realmente diferencie um e outro no que interessa, que é o prazer. O critério não é pau e buceta, é o prazer.
Estranhei os termos que usou, agora tão explícitos. Marcelo não era nenhum carola, mas usava bem menos palavrões do que quase todos nós. Pôs cerveja no meu copo e olhou a garrafa. Eu sabia que era para eu pegar mais uma, mas ele tocou em meu ombro, me mandando esperar.
– Você quer dizer... Classificar tipo assim, de um lado quem come e do outro quem dá?
– Isso. Mais ou menos isso. Um pouco mais complexo, mas, no fundo, quem come e quem dá. É um pouco mais do que isso, porque quando a gente come o prazer não está só no pau em contato com a buceta. Ou com cu. O prazer é mais amplo, porque a gente come mais do que isso.
Óbvio que fiquei arrepiado quando ele disse “quando a gente come”. Era o macho falando, o macho que agora eu não tinha mais como não identificar em Marcelo, mesmo sabendo que era um mau negócio para mim. Deu tesão; ou só agravou o tesão, melhor dizendo.
E o tesão foi mais forte do que o embaraço que me causava ele estar falando aquelas coisas, principalmente pelos termos que estava usando. Estava habituado pela boca de Otávio, de Rodrigo, mas não pela dele. Eu estava gostando; queria que falasse mais daquele jeito. Ficava embaraçado, mas também excitado, confesso.
– É um prazer que não se reduz só nesse contato; tem a ver com a cabeça, com estar possuindo. Tomar posse, domar. – mudou o tom: – Mas, em resumo, em vez de partir do sexo do parceiro, me parece uma classificação muito mais correta dividir entre ativos, ativas, passivos, passivas, e aqueles e aquelas que intercalam as coisas. Tanto faz quem tem pau ou buceta; não é o que define.
– Ativas?
– Ativas. Por que não? Mulheres que têm papel ativo quando transam com outras mulheres, ou com homens mesmo, na inversão. Com penetração, ou sem, porque como eu disse não é pau na buceta que define o perfil da pessoa. É mais amplo, Zeca. Uma mulher heterossexual típica e um homem homossexual passivo têm exatamente o mesmo tipo de prazer.
Fez uma pausinha. Sorriu, talvez porque eu tenha feito uma expressão assustada.
– Falo sério. São passivos, Zeca. Um tem pau, outra tem buceta, mas o prazer é de ser passivo, passiva. E não falo só porque são penetrados, mas porque ambos têm tesão de entregarem seus corpos para alguém que os use, que seja ativo com eles. O prazer é o mesmo; seja homem ou mulher, é fêmea do mesmo jeito.
Arqueou as sobrancelhas:
– Não fêmea no sentido de mulher, de ser feminina e tal. Isso é outra coisa; é identidade. Digo fêmea no sentido do tipo do prazer; de como funcionam na mecânica mesmo do sexo e no modo como se vêem para ter prazer. Trepar é bem mais do que meter e ser metida, ou metido. Quem come também não está interessado só na buceta ou no cu, mas em ter aquela pessoa toda sob o comando dele, está entendendo? Comer é ter. Não é à toa que falam “possuir” em vez de “fuder”, para parecer menos cru. E, na verdade, estão sendo muito mais crus do que se dissessem “fuder”.
Ele sorriu.
– Está assustado comigo, com o que estou dizendo? É como eu penso.
Deu um tapinha no meu ombro.
– Anda, vai lá. Pega a cerveja. Não esquece de subir a outra pro congelador.
– Não, não fiquei, não. Só é assim, diferente... – comentei, me levantando.
Nunca havia pensado em ouvir Marcelo falar sobre aquelas coisas, nem falar aquelas coisas. O que dizia era tudo muito bizarro para mim. Soava até um pouco machista, mas não preconceituoso. Parecia encarar a homossexualidade tão legítima quanto a heterossexualidade. No fim das contas, constatei quando punha a outra garrafa no congelador, era como se não diferenciasse uma da outra. Macho é macho e fêmea é fêmea, sendo homem ou mulher.
Continuei matutando enquanto tomava o caminho do corredor. Talvez também pelo álcool, mas estava confuso com tudo. Não sabia o que concluir. Ele era bissexual? Estava dizendo aquilo tudo porque me considerava gay e queria me pôr à vontade? Apenas fazia digressões a partir do filme, como em vários outros cujos temas não tinham muito a ver nem com a vida dele nem com a minha?
Retomou, quando voltei:
– E, Zeca, homofobia, no fundo, não é bem um preconceito contra os homossexuais. Quanto mais homofóbica, mais machista a pessoa é.
Não tinha desistido. Ao contrário, deve ter ficado articulando as ideias no tempo em que fui à cozinha. Falava como se estivesse numa aula. O aluno era eu. E me sentia muito bem assim.
– O preconceito é com passivos, sejam homens ou mulheres. Se você parar pra pensar, nem mesmo os homofóbicos levam a sério essa divisão entre homo e héteros; o que importa pra eles é quem come. Se come, está ok. Se dá, é inferior.
Claro que ficava cada vez mais admirado enquanto o ouvia. Não só porque eram ideias muito estranhas, que eu nunca tinha ouvido, mas porque começava a achar que ele propositadamente insistia naquele assunto porque tinha mesmo interesse nele. Estava querendo me comer? Acho que até balancei a cabeça, tentando afastar essa ideia. Fiquei com medo de a cerveja estar me fazendo ver o que não existia.
Aquilo não era coisa de hétero. Bom, mas também o que falava não era coisa de gay; gays não pensam assim. Talvez estivesse mesmo é sendo apenas científico. Seu tom, apesar de um ou outro palavrão, apesar de falar “buceta”, era esse: científico. Eu, cheio de fogo por ele, é que estava procurando indícios de que poderia rolar alguma coisa.
Eu não sabia mais nada, conclui. Ofereci pôr mais cerveja no copo dele, para ter desculpa para completar o meu. Ele prosseguia a argumentação:
– Pode ser homem ou mulher; no fundo, pra eles, é a mesma coisa, porque como ambos não são ativos, são fudidos, então são inferiores. O gay é inferior porque se deixa foder. A mulher é inferior porque nasceu pra ser fudida. E a lésbica é inferior porque não quer ser fudida mas deveria ser. – esvaziou metade do copo e continuou: – No fundo, nem estão errados nesse ponto.
– Não?
– Não.
– Não estão errados?
Estava abestalhado, e imaginei que de vez. Mas fiquei mais ainda depois:
– Não, não estão errados. Pode não ser bonito concordar com isso, mas eles não estão errados nesse ponto. Na hora mesmo, no pega pra capar mesmo, quem come é que está no comando. Se o casal é de homem e mulher, a gente vê como algo inerente, intrínseco, então tem como escamotear. Vira amor, proteção, segurança, carinho... Se o poder do macho se tornar explícito, é interpretado como agressão. Ou visto como um sadomasoquismo não combinado. Ou, então, é aceito justamente porque é uma fantasia sadomasoquista; mas porque é uma fantasia.
Tentei não parecer tão idiota diante do que ele falava com tanta naturalidade. Quis participar:
– Sei. Aceito porque deixa de ser encarado como real. É isso?
– Isso. Mas se o casal é de dois homens, a cópula torna esse poder, o comando de um sobre o outro, explícito. Incontornável. Não é inerente; não tem como ser visto como inerente. Era para ambos exercerem o comando, porque são os machos da espécie. Mas só um exerce. É uma conquista de poder de um sobre o outro, justamente porque são dois homens. Um abre mão desse poder porque o outro se impõe sobre ele.
Ele sorriu, diante da minha perplexidade. Eu não havia conseguido convencer como “científico”.
– Nós somos humanos, Zeca; não somos gatos. Aliás, se for pra fazer associação, a gente não está nem pra gato nem pra cachorro, mas como os lobos. Quando um gato cruza com uma gata, quem manda é ela. Você já viu alguma vez? E ele nem dá conta do cio dela; ela procura outros, e com todos os outros ela é quem determina tudo.
– Nunca vi gatos transando.
– A gente não é gato; as coisas conosco não funcionam assim, pelo menos não na sociedade em que a gente está. Quem dá se inferioriza diante de quem come, pelo menos pelo tempo que dura a foda, seja uma mulher ou um homem, e é isso que o faz ser e gostar de ser passivo; porque se inferioriza porque se sente bem assim. Quem come domina quem dá; quem dá se submete ao poder do que come. Se quem dá é uma mulher, esse domínio nem chama a atenção, ou é fácil de ser disfarçado, porque nossa sociedade é patriarcal e, por isso, considera natural essa submissão. Mas se quem dá é um homem, a coisa toda muda. A inferioridade do que é passivo fica clara.
Ele falava essas atrocidades com toda naturalidade. Como sempre fazia: sem que grandes ênfases ou modulações da voz fossem necessárias para me convencer do que dizia, porque o que dizia seria óbvio.
– É da natureza do sexo, pelo menos entre humanos. E estamos falando de humanos, não de gatos, de gafanhotos, de zebras, nem mesmo de lobos.
Inclinou a cabeça, como se estivesse pensando nas palavras que usaria para que eu compreendesse seu raciocínio.
– É uma hierarquia, Zeca. Você está me entendendo?
Sorriu, todo bonitinho:
– Para de fazer essa cara de quem viu o lobisomem, Zeca.
Eu ri também, sem saber que cara fazia.
– Pode ser foda dizer isso, mas é isso mesmo. Há uma hierarquia. Ela existe, mesmo quando é disfarçada. O problema não está nessa hierarquia, mas achar que ela se expande pra todo o resto; achar que quem tem uma natureza sexualmente passiva vale menos do que nós que somos ativos pela própria natureza.
Caralho...
– Eu como, eu mando, eu enfio, mas nem por isso a pessoa que eu como é menos humana do que eu; nem por isso eu vou desprezá-la por ela ser inferior a mim. Pelo contrário, eu tenho que cuidar dela, para que ela continue sendo como ela é e seja feliz assim.
Duplo caralho.
Fiquei parado. Cheguei a abrir a boca após um tempinho, mas desisti. Ele percebeu e sorriu. Semicerrou os olhos, me olhando, acho que estudando minhas reações; talvez avaliando que teria ido longe demais.
– É como no filme.
Eu nem me lembrava mais do filme.
– O que o ajudante vai dizendo no filme é: o fato de eu ser superior ao outro que eu apassivei não torna o outro apassivado um indigno. Nem um infeliz. Ele só tem que aceitar o modo como ele é; que ele é fraco, que é dependente do meu modo de ser.
Eu estava entre o pasmo e o excitado, e não parava de beber a cerveja. Agora, era mesmo para ter o que fazer e disfarçar o que estava sentindo por dentro.
– Como se dissesse assim: ele estar abaixo de mim não o torna menos importante, porque ele é importante pra mim justamente por causa disso, porque está abaixo de mim. Eu preciso dele e de caras como ele pra que eu possa ser eu, pra que eu possa exercer minha natureza; minha natureza de comedor, de ativo. Eu preciso de quem eu domino, de quem eu sou dono, e por isso cuido de quem eu sou dono.
Parou, enquanto enchia o copo dele e, vendo que o meu estava quase vazio, me serviu também. O silêncio ficou pesado. Talvez pesado só para mim, porque ele parecia muito tranquilo. Eu tinha que interromper aquele silêncio, porque poderia me desmascarar.
– Marcelo, é estranho ouvir você falar assim.
– Mas é assim. O outro, o passivo, é apenas do jeito dele. E é importante que ele seja assim e aceite que é assim para que as coisas funcionem entre nós dois: passivo, fraco, incapaz de ser como eu, e por isso eu sou eu e ele é só ele. É desse modo que o ajudante pensa. Você não percebeu?
Sorriu.
– É assim, Zeca. E pro que é o mais fraco, tudo fica mais fácil quando aceita que é assim. Que não tem nada de extraordinário nisso; que sua inferioridade nem é uma anormalidade nem o torna um ser humano inferior. Agora vamos ver o finalzinho. Estou achando que, apesar de tudo, eles vão terminar juntos mesmo. Eles combinam, desde o início, e sabem disso.
Não vimos um terceiro filme aquela noite, porque ele disse que eu já havia bebido demais. Eu não estava bêbado, só um pouco tonto, mas mesmo assim Marcelo quis me levar até o quarto, praticamente me pondo na cama. No caminho, comentei que às vezes ele falava de um jeito que parecia até mais velho, como se não tivesse a nossa idade.
– Mas eu sou mais velho – disse, risonho. – Não sei se faz muita diferença, mas eu tenho 25.
– Então, porque disse que tinha 22, que nem nós?
– Eu nunca disse isso. Você tira conclusões e tem certezas sobre mim a partir do que eu nunca disse.
E bagunçou meu cabelo, até carinhosamente, enquanto eu me deitava sob sua guarda. Então, apagou a luz e voltou para seu quarto.
...
[continua]