Não pensar em alguma coisa não significa necessariamente fingir que ela não existe. Pode-se apenas provisoriamente ignorá-la, voluntariamente adiar esse encontro inevitável, riscá-la do horizonte guardando-a numa caixinha, sabendo que um dia ela será aberta. Foi exatamente o que fiz: guardei numa caixinha aquela conversa que Marcelo tivera comigo, recheada de carinhos e novos prazeres como se ele pudesse amaciar toda a dureza das verdades que me esfregava na cara. Preferi pensar em Rodrigo, pensar em Otávio e nas suas incompreensíveis idas e vindas comigo. Elaborei uma hipótese fantasiosa; fui atrás dela. E tive uma surpresa.
Definitivamente, alguma coisa havia mudado nele com relação a mim. Eu não compreendia bem o processo todo, mas o resultado era evidente: distância. Desde o reinício das aulas, ele parecia estar vivendo uma montanha russa e, ainda que não mais estivesse no centro das minhas atenções como no início, me levava junto nestas tormentas. Primeiro, aquele afastamento que Rodrigo havia atribuído a seu entusiasmo por Raquel. Depois, sua insistência em me fazer de sua “garota” e simular que eu fosse Raquel, seguida por aquela foda inesquecível que, se não teve o clímax de um beijo apaixonado, estava entre as mais amorosas que eu tinha vivido. Imediatamente em seguida, da água pro vinho, um desaparecimento das minhas vistas que só podia ser proposital, em se tratando de dois caras que compartilhavam um apartamento de dois quartos. E, ao fim, o pior: uma sucessão de fodas nas quais ele me transformara em algo como um boneco humano, um corpo que usava para masturbar-se tendo algo a mais do que própria mão.
Mas eu não tinha como negar o prazer e a felicidade que senti com ele me tomando daquela maneira em seus braços, quando me fez de Raquel. Queria, mas não pude evitar a satisfação por, finalmente, vê-lo entregar-se plenamente. Ao mesmo tempo, aquele encontro não havia sido tão pleno para mim, tão plenamente confortável. Por mais gostoso que estivesse sendo, era incômoda a certeza de que aquele carinho todo era destinado à namorada, e não ao Zeca, que para ter tanta atenção dele precisava sumir e dar lugar a outra pessoa. E sem que tivesse efetivamente escolhido essa opção.
Otávio não havia cumprido o combinado; não esperou que eu decidisse se aceitaria ou não sua proposta absurda. Passou por cima e me usou como uma boneca inflável. Como sempre, havia sido honesto; me avisou antes para que eu soubesse que tanto sentimento estaria no meu corpo, mas não seria para mim. Mas se não era para respeitar minha vontade, que não avisasse. Que me fudesse com aquele amor todo e que me deixasse imaginar que era para mim. Mesmo enganado, eu teria aproveitado mais. Maldita honestidade filha da puta.
O Otávio que me acariciou e deu tanta atenção, que percorreu meu corpo tão ternamente, que tateou meu canal com sua sensibilidade mais delicada, que parecia querer dar beijinhos em todos os poros do meu rosto, esse Otávio havia sido aquele pelo qual durante meses eu havia ansiado. Evidentemente, não como homem, como companheiro, namorado, mas simplesmente como um sujeito que fosse sensível a mim enquanto me comesse. Como um simples, mas atencioso, parceiro de fodas.
Ele havia se estabelecido assim desde quando me deu seu cacete a primeira vez para chupar. A honestidade, que agora eu julgava desgraçada, o fizera deixar clara sua posição. E eu o encarava assim, como ele determinara. Mas essa sensatez não me impedia de dar por falta de um contato maior; de coisas simples como ser fudido de frente, de nos olharmos enquanto ele me comia, de receber um toque carinhoso de suas mãos. E eu havia tido tudo isso em dobro naquela estranha trepada em que eu não era eu, mas na qual ele havia sido ele mais do que em qualquer outra ocasião comigo.
E, então, aquela mudança abrupta: na noite de segunda, um amante tão apaixonado que sequer se importou que tanta afeição estivesse sendo testemunhada por Rodrigo; nos dias seguintes, um desaparecimento dos cômodos da casa como se nem morássemos no mesmo apê; e, na sexta-feira, uma foda fria como nunca havia sido antes, que só se intensificou quando socou o cacete com vontade, numa busca egoísta pelo seu gozo de macho.
A partir dali, a impressão que me passava era a de que ele só fazia sexo comigo porque compartilhava o quarto com Rodrigo. Já que estava ali mesmo, e Rodrigo não dispunha nem de outro local nem de outro horário para me pegar, então ele me comia ou resumia-se a me puxar para uma mamada. Havia me transformado num depósito de porra, num acessório humano para incrementar o que, no fim, não passavam de punhetas. Nos poucos segundos que antecediam o gozo, eu o sentia presente; mas, no antes e depois, bem mais longos, era o pior dos desconhecidos que havia me pegado em algum daqueles mictórios que eu frequentara.
O jogo erótico com Rodrigo também havia se tornado coisa do passado. A gana de suas mãos nos meus quadris cessara. O próprio olhar meio bobo de “parceirão” havia desaparecido. Não era antipático, grosseiro, seco; não chegava a tanto. Mas distante.
Nos momentos em que estávamos juntos sem uma situação sexual, sintomaticamente, ele substituiu a espontaneidade de “parça” por uma artificialidade que, mais do que me irritar, me constrangia. Desde que o conheci, o que mais me chamara a atenção naquele moreno com ares de moleque tinha sido justamente o quanto ele era espontâneo. Transparente, sincero, “parça”. Não fora aquele seu exibicionismo tesudo, que eu só perceberia com a convivência, o que me fez de cara simpatizar com ele, mas esse traço de autenticidade. Ele me inspirava simpatia e confiança.
Mas, agora, as brincadeiras, os risos, as falas ritmadas cheias de gírias, tudo soava falso quando dirigido a mim. Ele parecia querer disfarçar que eu não era mais o mesmo para ele, sem se dar conta de que era um péssimo ator. Evitava que ficássemos a sós. E, quando estávamos com mais alguém, sutilmente ía me deixando fora da conversa. Ficava nítido que aquele comportamento forçadamente “espontâneo” era mesmo apenas comigo.
Com Rodrigo, com Marcelo, ao falar ao celular com alguém, ele era o mesmo molecão simpático de sempre. O bonezinho vermelho meio de lado, a camiseta sempre surrada escondendo a barriguinha linda sem ajuda de musculação, a maciez da bermuda colorida de tactel que mal disfarçava o volume dentro da cueca... Aquele seu figurino despojado de quem não saíra dos 16 anos agora parecia a mim apenas o traje de um canastrão, e não mais do Otávio que, mesmo evitando comigo uma intimidade para ele ameaçadora, sempre fora tão sincero. Não era mais meu “parça”.
Eu suspeitava que Rodrigo não apenas também acusava essa mudança em Otávio, como estava mais do que satisfeito com ela. O touro ía no caminho inverso, me oferecendo um sexo cada vez mais intenso. Entre tapas e esculachos, não economizava carícias, agrados e sorrisos. Parecia ter decretado sua própria vitória sobre Otávio, ainda que por W.O., e se dedicava a uma disputa imaginária com Marcelo. Não que eu visse seus carinhos como falsos, reduzindo-os a armas mesquinhas daquela guerra que ele parecia travar intimamente com Marcelo. Se o fizesse, o mesquinho seria eu. Sabia que eram genuínos.
E calculava o quanto esses carinhos deviam lhe custar caro, já que os fazia na frente de Otávio. Embora o “parça” agora parecesse desatento, aquela putaria toda dependia de uma cumplicidade que se fundava justamente na certeza de que ninguém ali era viado, exceto eu. Na hora da foda, eu não era o Zeca; eu era um cu e uma boca. E eles eram os héteros que, na falta de coisa melhor, usavam esse cu e essa boca, ainda que com cordialidade. Era esse pacto que os tornava cúmplices de uma putaria proibida, mas apenas uma putaria.
No entanto, Rodrigo vira, e com detalhes, como Otávio havia me promovido a Zeca, e na verdade Raquel, naquela noite de segunda-feira. E, nos últimos tempos, cada vez mais Otávio presenciava como Rodrigo passava a transar efetivamente com Zeca, e não mais com um viado que estava disponível. A cumplicidade entre eles agora parecia ser outra. Talvez, mesmo que sem perceberem, tivessem transmutado aquela cumplicidade.
Não mais a cumplicidade de uma putaria proibida, mas a cumplicidade dos que cometem um crime. Talvez, sem nada dizer um ao outro, fossem agora cúmplices do crime de estarem fazendo sexo com outro homem porque efetivamente tinham tesão em fazer sexo com este homem e porque ele, sendo homem, os atraía. Rodrigo vira os carinhos de Otávio; Otávio via os carinhos de Rodrigo. Nenhum dos dois era cego.
Essa hipótese me deixou confuso. Não animado, porque se fosse confirmada, poderia trazer problemas com Marcelo. E parecia até ser mesmo a melhor explicação para o afastamento de Otávio imediatamente após ter sido tão amoroso. Mas eu não tinha como ter com ele uma conversa aberta sobre o que se passava. Nem aberta nem fechada. Se nem mesmo antes eu sentia a liberdade de falar sobre nossas transas, quanto mais agora. Se havia aberto a guarda com aquela história de me fazer de Raquel, pela primeira vez falando sobre sexo comigo sem que estivéssemos fazendo sexo, seu comportamento posterior anulou esse avanço.
Então, recorri a Rodrigo, mesmo sob o risco de, sendo excessivamente franco, acabar por perder aquelas fodas tão carinhosas. Claro, elas já não eram mais tão importantes para mim. Marcelo me bastava, e sem titubear eu já teria deixado Rodrigo, e também Otávio, se meu macho assim o quisesse. Mas, provavelmente por algum fetiche muito doido, Marcelo parecia até gostar de me dividir com eles. E como, no fim das contas, ninguém ali era de se jogar fora, eu lamentaria muito se os perdesse. Aquele cheiro que o corpo de Rodrigo emanava ainda me soava mágico; seus culhões grandes e quase lustrosos, de tão inchados no saco pequeno, continuavam a me dar tesão. Ainda me tiravam do sério numa simples passada d’olhos; me faziam ajoelhar diante dele. Se Marcelo mandasse, abandonaria tudo isso sem pestanejar. Mas, se não era necessário, por que desperdiçar?
Bom, ainda havia outra razão. Ou melhor: um excelente estratagema quando se quer desviar dos reais efeitos do enfrentamento de verdades difíceis de lidar.
– Você ainda não está maduro – Marcelo me acusou, com aquela sua voz tranquila.
– Você me acha imaturo? Eu não me acho imaturo.
– Mas você é.
– Você me trata feito criança.
– E você é.
– Não sou, não. Você está enganado comigo.
– É sexualmente imaturo. É disso que estou falando.
Eu ri.
– Porra, Marcelo, imagina se eu fosse maduro... Não ía conseguir nem andar!
Ele sorriu, charmoso.
– Não é disso que to falando. Ser sexualmente experiente não quer dizer ser sexualmente maduro.
Aguardei.
– Teu perfil, Zeca. Já falamos sobre isso. Exige uma maturação. Não é maturidade. É maturação.
Continuei olhando, interrogativo.
– Eu to te criando, bezerrinho.
– Me criando?
– Você sabe que eu to. E é o que você quer.
Pois bem. Se eu ainda estava em processo de “maturação”, se ele estava me criando, então eu tinha todo o direito de não pensar mais seriamente no que me havia dito. Se eu era uma criança, um idiota que dava para qualquer um de pica grande, ele que cuidasse de me fazer crescer; eu, não.
Ele havia me impressionado, realmente me impressionado, com sua interpretação de que Otávio e Rodrigo não se limitavam a simples fodas. Então, se desempenhavam um papel decisivo no processo que, sem que nem eles nem eu soubéssemos, havia se desencadeado na minha cabeça, que esse processo fosse adiante. Foi isso que conclui, num engenhoso raciocínio que matava dois coelhos numa só cajadada: desviava a atenção do real significado do que me dissera, ao mesmo tempo em que não me obrigava a negar o que eu escutara. Continuando minha história com Rodrigo e Otávio, eu me distraía do real significado dela.
Com Rodrigo, falar sobre nossas fodas não era aquele tabu construído por Otávio. Desde o início, provavelmente por sua experiência anterior com gays, ele não tinha esse tipo de reservas. Então, foi com ele, e não com o próprio Otávio, que conversei para tentar entender o que estava se passando.
– Bro, é que você não sabe... Ele tá apaixonado. Apaixonado mesmo. Não é sacanagem.
– Eu sei. Você me disse isso da outra vez. Mas o que tem isso a ver comigo? Não tem nada a ver.
– Pra ele deve ter.
– Ele não falou nada contigo?
– Não.
– Achei que vocês fossem mais amigos.
– A gente é. Mas ele tá na dele. Tentei um papo reto; ele fugiu. Eu não confio nessa mina.
– Raquel?
Fez que sim.
– Ela não me convence. Tem cara de puta, fala como puta, ri como puta, se veste como puta. Não é puta?
– Ela é assim?
– Ele acha que não.
– E os outros, o que acham? Você sabe alguma história dela?
– Ele conheceu numa night. Saio pouco com eles dois. Quando saímos, é com a turma dela, não a nossa. Otávio não quer palhaço se engraçando; não traz ela pra ficar conosco.
Fez um silêncio breve.
– A gente nunca ficou muito junto nas night. Cueca com cueca afasta a mulherada. Quando a coisa esquenta, cada um ía pra sua caça. Mas agora ficou ruim.
– Ruim como?
– Ele fica só com ela. Não tá errado; é a mina dele. Fica lá com a turma dela.
Mudou o tom:
– Mas, escuta aqui. Que porra é essa de tanto interesse na vida do Otávio?
Olhei para ele, surpreso.
– Tu tá com ciúme dele com a mina?
Eu ri.
Dali por diante a conversa mudou de direção. Tive de lhe convencer de que não estava querendo namorar Otávio; que não estava apaixonado por ele. De novo, parecia demonstrar ciúmes. Não foi agressivo como da outra vez, no bar da faculdade, mas aquelas suas reações estavam começando a me deixar preocupado.
– Elias, quero te falar uma coisa.
Eu o havia puxado pelo braço ao fim de uma aula, no dia seguinte à frustrada conversa com Rodrigo. Indiquei para que fôssemos ao patiozinho que ficava no meio do prédio, onde não havia ninguém.
– Pelo visto, é problema com teus héteros... – disse, já sentando no banco de cimento.
– É.
Contei-lhe sobre Otávio, a quem dera outro nome e ele apelidara de “o moreno caralhudo”. Eu havia inventado tantas mentiras e deformado tantos dados, para preservar a identidade de Marcelo, Otávio e Rodrigo, que tinha certeza que já caíra em contradição em minhas conversas com Elias. Mas ele não acusava nenhuma.
Era o meu “amigo gay” e essas mentirinhas faziam parte de sua própria vida: ele havia se assumido na universidade, assim como eu, mas apenas lá. Para todo o resto do mundo, mantinha a imagem de hétero, e havia chegado ao ponto de propor a uma amiga nossa que ela se passasse por sua namorada, numa festa familiar. Ela prontamente recusou, e ele teve que mais uma vez se apresentar perante os parentes como o jovem de vinte e poucos anos que nunca tinha sido visto com uma garota.
Mas, apesar de nunca ter aparecido com mulher, possivelmente não levantava mesmo suspeitas, porque não era um sujeito afetado. Era comum, tal como eu. Então, tão acostumado em se enrolar em mentirinhas, devia compreender que eu também necessitasse delas de vez em quando. Era meio sem sentido, já que até minha família sabia de mim. Mas creio que por isso nunca me apontou alguma contradição naquelas volutas todas que povoavam minhas histórias.
Ele literalmente caiu na gargalhada quando terminei de contar toda a história sobre Raquel.
– E você acreditou nisso, Zeca?
Falava entre risadas.
– O caralhudo chega pra você, diz que vai te fazer barba, cabelo e bigode, mas tudo isso imaginando que você é a namorada dele... E você cai nessa?
Riu mais ainda. Eu já estava ficando sem graça.
– Zeca, a tua ingenuidade é... cara, não dá pra acreditar.
– Mas é verdade, Elias.
– Porra nenhuma, Zeca. Vai ver que essa namorada nem existe. Foi desculpa dele pra te curtir melhor. Você reclamava tanto que ele não era carinhoso, o hétero quis ser.
– Existe. Não é mentira. Ela existe.
– Você já viu?
– Já – menti.
Fiquei com medo de citar o testemunho de Rodrigo, “o ogro que mete porrada”, e acabar me enrolando. Nem me lembrava direito dos detalhes que tinha inventado nos papos anteriores. Os nomes eram trocados, eles eram vizinhos mas não se conheciam... Tantos caminhos e descaminhos para que ele jamais pudesse deduzir quem era um e quem era outro, mesmo que também jamais eu pretendesse apresentá-los, que não queria trazer também Rodrigo para a conversa. Não quis arriscar.
– Cara, ninguém faz isso. Fala sério; isso não existe... Um cara chegar pra mim e me dizer que vai me comer e que é pra eu imitar a namorada...
– Não foi isso. Ele não disse pra eu imitar.
– Quase isso. Mas não é essa a questão.
Olhou para mim como se eu fosse um garotinho que nem soubesse o que é um pau.
– Esse moreno caralhudo não pode ser tão imbecil. É impossível achar que vai te comer, você com essa tremenda cara de homem, e vai se convencer que tá metendo na namorada. É nonsense.
Voltou a rir.
– Surreal.
Eu fiquei encarando, muito sério.
– Mas e aí? Como foi a trepada? Você tem essa paixonite por ele... Foi bom sentir como se fosse teu namoradinho?
– Eu...
– Conta. Ele ficou te chamando de Raquel pra fingir que não sente tesão por você?
– Não foi nada disso.
– Tá. Mas como foi a foda?
Fui contando, e ele foi arregalando os olhos. Quando falava das minhas transas com os dois, gostava de narrar em detalhes, mas sem citar que muitas delas eram a três. À essa época, só mencionava mesmo Otávio e Rodrigo, mantendo Marcelo como um segredo absoluto. Eu caprichava na memória, descrevia quase milimetricamente os movimentos dos corpos, tentava fazê-lo sentir as sensações que eu havia sentido durante cada posse que sofria dos dois. Compartilhar com Elias me fazia bem; era como se eu pudesse tomar ar. Ele curtia. Volta e meia eu notava que estava de pau duro e, sem vergonha nenhuma, ele dizia que era impossível não ficar. “Só se eu fosse broxa”, falou uma vez, com desdém, sem saber nada de mim.
Ele era a única pessoa com quem eu dividia o que estava vivendo no apê, ainda que cheio de disfarces. Não falava com mais ninguém. Era por isso, e não apenas como uma putaria verbal de adolescentes, que eu me abria com ele, não economizava os detalhes; sentia necessidade de contar tudo, exceto o que poderia pôr risco a identidade dos dois. Quando narrei os beijinhos no meu rosto, seus olhos esbugalharam.
– Que foi? – perguntei, diante do seu silêncio abestalhado.
– Zeca, você é burro?
Fez uma pausa.
– Você tá me dizendo que esse cara cobriu teu rosto de beijos, e olha o rosto que você tem, que ele cobriu de beijos, que ficou te olhando o tempo todo enquanto te dava uma porrada de beijinhos, e que achava que tava comendo a namorada?
– Foi. Você não conhece ele. Se...
– Zeca, você tá querendo enganar quem?
– Como assim?
– Você tá cego de paixão e, sei lá por que, não tá querendo enxergar que esse cara também tá apaixonado por você.
Elias achava que eu estava apaixonado por Otávio. Eu havia lhe contado de meu fascínio por Marcelo, mas sem mencionar que ele era uma terceira pessoa. Então, deduziu por si mesmo que eu falava do “moreno caralhudo”, e deixei que pensasse assim para não me enrolar ainda mais.
– Claro que não, Elias! Ele é hétero!
– Hétero porra nenhuma, Zeca. Puta que pariu, você é um idiota! Ah, se um morenão me desse esse mole todo...
– Você tá enganado, Elias. É que você não conhece. Ele é maneiro. Maneiro mesmo. Mas é hétero.
– Só se for bi.
– Bom, essa classificação não funciona. É uma classificação sem qualquer base empírica.
– Como é que é?
Olhei rapidamente para baixo, me sentindo ridículo. Eu havia acabado de imitar Marcelo.
– Nada. O lance é que ele tá apaixonado pela mina e... – fiz uma pausa. – Você acha que ele não fingiu que eu era ela?
– Óbvio que não.
– Mas...
– Porque ele precisou de uma desculpa pra te comer direito, só isso. Foi por isso. Não quer dar uma de gay; tem medo de virar gay.
– Claro que...
– Tem um puta tesão por você e, com Raquel ou sem Raquel, queria um jeito de poder te beijar sem se sentir gay.
– Ele não me beijou.
– Foi como se fosse.
– Não, não foi.
– Zeca, você se esqueceu que já me contou que ele te faz cunete?
– Não faz mais. Nessa história toda, parou de fazer.
– Mas fez de monte.
– Mais de uma vez.
– Muitas.
– Várias.
– Que seja. Porra, caralho, onde você já viu hétero fazer cunete?
Fiz um sinal com a mão para que ele falasse mais baixo. Havia se excedido.
– Acorda, Alice!
Era uma irresponsabilidade, mas não fiquei para a aula seguinte. Em vez disso, segui para a faculdade de Otávio. As chances de encontrá-lo lá eram mínimas, embora fosse um campus pequeno. Mas aquela conversa de Elias havia me deixado nervoso.
Eu não queria nada com Otávio. O homem da minha vida era Marcelo. Mas Otávio era importante para mim. E, mais do que isso, eu precisava desfazer aquela dúvida. Aqueles meses todos que ele me comeu me mantendo de costas, que não tocava em mim, que me enchia tanto de prazer como de carência... Que porra eu tinha vivido com aquele cara todo aquele tempo?
Não o encontrei. Esperei pelo horário do intervalo, circulando o máximo que pude em busca dele, sem sucesso. Evidentemente, não poderia entrar de sala em sala, interrompendo as aulas. Desisti dali, mas não de encontrá-lo. Se tivesse menos impetuoso, teria seguido para o apê e esperado o momento apropriado para conversar com ele, ou talvez deixasse tudo como estava. Mas eu não estava menos impetuoso. Esperei na porta do prédio.
Ele chegou com Rodrigo. Falei que queria ter um papo sério com ele. Ele riu, simulou levar na brincadeira para fugir, mas recuou diante da minha seriedade. Rodrigo, de cara feia, seguiu para o apê. Fomos para a pracinha próxima. Sentamos no mesmo banco onde ele havia feito aquela proposta ridícula.
– Qualquié?
– Eu que pergunto – respondi.
A conversa não demorou a caminhar para um desastre. Falei que estava chateado por causa da distância dele, ele negou que estivesse distante e logo a coisa toda descambou. Agia como se eu insinuasse que ele era gay. Ou melhor, como se estivesse o acusando de ser gay.
– Bro, tu sabe que eu te curto pra caralho. Tu é parceiro; sabe que eu te vejo assim. Mas não confunde as coisas.
Falou, falou, falou, uma vez ou outra levantou a voz.
– Calhou de eu te comer. Mas não sou gay; gosto de buceta. Eu levo gay numa suave, Zeca. Você sabe disso. Pra mim, é bagulho tranquilo, sem neura. Mas eu não sou; fazer o quê?
Assegurei, e acho que o convenci, que minha conversa nada tinha com qualquer ideia de ter uma relação amorosa com ele. Usei a mesma estratégia que com Elias, inventando histórias e mudando dados, para contar que estava apaixonado por um cara, e que esse cara não era ele.
– Um cara da minha cidade. Ele vai vir pra cá quando eu me formar. Vamos morar juntos. Ele já tem até emprego garantido aqui.
Ele fez uma expressão satisfeita, como se feliz por eu ter encontrado alguém. Otávio era muito “parça”; eu não tinha por que duvidar disso.
– Mas namoro assim à distância...
– A gente se fala todo dia. Internet serve pra quê?
– Sério, brother? Você também tá paradão em alguém?
Fiz que sim com a cabeça. Ele foi amainando. Acabou ficando mais à vontade para falar das transas, coisa que eu sabia que não gostava. Elogiou, disse que meu cu era gostoso, admitiu e quase pediu desculpas por estar tão distante. Falou em Raquel, que sua cabeça estava nela, e perguntou se eu me magoava por ele estar falando assim. O tom foi se tornando amável, como dos “parças” que éramos mesmo. Nessa hora, entrei com a questão dos beijinhos no meu rosto, dos carinhos durante aquela transa na qual ele me fez de Raquel. Dei a entender, com muitas meias-palavras, que via naquele comportamento amoroso dele o motivo para seu afastamento.
Argumentou que havia me avisado. Retruquei que não tinha concordado e que ele tomou a frente. Ele disse que não fazia diferença. Calou-se.
Olhou para o chão. Ficou num breve silêncio. Depois, virou para mim, num olhar que me lembrou o de Marcelo:
– Zeca, tu é burro?
Assumi o automático, respondi que não e ele desconversou quando eu quis saber a razão da pergunta. Foi fazendo a conversa retomar o rumo de cordialidade, tentou me engambelar e eu fingi que tinha sido engambelado. O importante é que eu havia quebrado o gelo; que tinha lhe dado um palanque para me deixar claro que os beijinhos não significavam mais do que eram: beijinhos em Raquel, por meio do meu rosto. Assim, estava tudo resolvido. Subimos juntos para o apê.
Rodrigo me avisou que passasse no quarto deles na hora habitual. Informei a Marcelo pelo celular e cumpri o que mandaram. Tinha certeza de que, tranquilo por ter desfeito qualquer mal entendido sobre sua preferência por peitos e bucetas, Otávio retornaria ao normal.
O inacreditável aconteceu: quando eu entrava, ele, muito sorridente, disse que estava suado demais e que sairia para tomar uma ducha gelada.
– Mas não vou demorar. Ficam os dois aí na putaria que eu entro depois. Mas, Zeca, se o mané aí gozar, não tem que ficar me esperando não. Vai lá pro Marcelo, de boa.
Obviamente, não retornou. Rodrigo me deu uma boa foda, realmente boa. Mas não pude aproveitar, aflito pela reversão de expectativas. Otávio me dava tesão e se me fudesse seria ótimo, mas não era a falta da foda que me afligia. Era o que estava por trás daquilo tudo. Segui para Marcelo, que, com seus encantos, conseguiu me desviar a atenção.
Na manhã seguinte, Otávio faltou à primeira aula, e sem qualquer razão aparente. Parecia bem, ou talvez apenas estivesse encenando melhor seu papel para mim. Eu não sabia o que poderia mais fazer. Outra conversa daquelas seria inoportuno. Pensei em expor a Marcelo o que ocorria, quando regressasse do campus. Ele poderia me ajudar. Tomei o café com os dois e eles saíram juntos do apê.
Não se passaram nem dez minutos e a campainha tocou. Abri a porta, e era Otávio. Meio avoado, devia ter retornado para pegar algo que esquecera.
– Não, não consigo esquecer, parceiro – disse, enquanto eu tornava a fechar o trinco da porta, depois que lhe perguntei se tinha esquecido alguma coisa.
Quando me virei, ele estava colado a mim. Nossos rostos muito próximos, como só ocorrera uma vez: naquela segunda-feira que eu também não tinha esquecido. Aproximou mais meu corpo de si, esforçando-se para disfarçar que o braço com o qual envolvia a minha cintura estava trêmulo. Mas a outra mão, que percorria graciosamente dos meus olhos ao queixo, denunciavam o nervosismo.
Quando chegou ao queixo, parou ali e fez uma leve pressão para que se aproximasse dele. Seus lábios também vieram. E, então, encostaram nos meus. Doces, suaves, como se já tivessem feito aquilo muitas vezes antes.
...
[continua]
[PS: Publico a próxima parte após o feriado, na segunda-feira à noite. Creio que só conseguirei completar a história com um total próximo a 30 partes]