Mais uma vez era início da manhã de uma segunda-feira. Eu odiava as segundas porque elas geralmente significavam escola, que por sua vez no meu mundo perfeito era o mesmo que o inferno. Mas antes disso eu tinha ainda que passar por meu purgatório particular que era a minha casa. Como de costume o carro de Lisa, minha melhor amiga desde o primário, parou do lado oposto na calçada em frente a minha casa. Era uma casa grande cercada por um muro alto e uma porta que dava acesso as dependências dos jardins. A porta é bem alta, revestida em madeira, tipo aquelas de casa do interior ou de temporada de férias e ocultava uma boa parte do que havia ali dentro. Não que isso fizesse diferença para os vizinhos quase todos os fins de semana. Saí do carro e me abaixei em frente a janela para me despedir da Lisa, havíamos combinado de nos encontrar na escola mais tarde.
- Tem certeza que não quer ir comigo? Não gosto nada de deixar você a sós com aqueles dois pervertidos a solta e sozinhos pela casa. - Lisa sempre parecia preocupada comigo quando se tratava dos meus meio-irmãos. Não seria diferente agora mesmo ainda sendo início das seis da manhã, quando deviam estar dormindo após a noite de bebidas, sexo e festas.
- Tá tudo bem! Eles devem estar bêbados de ontem. Me preocupo mais com o que vou encontrar de novo quando entrar, mas tranquilo. Encontro você em mais ou menos uma hora no Inferno, vadia.
- Vou estar no trono do Inferno te esperando.
- Que horror! Desse jeito me sinto o próprio demônio. - disse fingindo indignação.
- Mas você é um demônio, meu bem. Só agora caiu a ficha?
- Eu sou um anjo, tá bom? - disse rindo.
- Até mesmo o Diabo já foi um anjo, querido. - E ligou o carro indo embora mandando beijo no ar. - Até daqui a pouco. Qualquer coisa me liga e eu venho correndo, okay?
- Eu vou ficar bem. Até!
E assim que ela partiu dei risada atravessando a rua enquanto procurava as chaves no bolso. Quando enfim havia finalmente achado já estava quase atravessando e sinto o som estridente da buzina me despertando do meu quase infarto para eclodir na morte certa. Um louco desvairado sem dúvida dirigia ao volante, porque ele passou por mim com tanta pressa que o seu Maserati vermelho quase me levou jundo, salvo por meus reflexos que bem na hora dei dois pulos para trás. Mas afinal, de onde saiu aquela criatura?
Eu caí sentado no chão com o choque e ele freou fazendo um som agudo dos pneus assobiarem na pista. Quando ele saiu do carro senti como se meu coração tivesse parado por um segundo. Não sei dizer o que era.
- AÍ, QUAL É A TUA HEIN BONECA ? Não tá vendo que eu to passando não ? -
Mesmo de longe dava para perceber que seu porte era atlético, do tipo que jogava futebol. Tinha coxas grossas saltadas no jeans escuro, uma mala bem avantajada, corpo levemente musculoso, nada do tipo ogro mas bem gostoso, cheio de gominhos no abdômen e um peitoral bem definido na camisa polo. Seu cabelo era liso e loiro, cortado nas laterais na máquina 1 e sua pele era clara, levemente banhada de Sol. A julgar pela aparência devia ter olhos claros também, mas não pude saber porque usava óculos escuros. O que tinha de lindo sua aura tinha de negativa, dava para ver pelo modo como ele falava com as pessoas. Seu sorriso cafajeste zombando da minha cara de espanto só contribuiu para a raiva dentro de mim crescer. Ele coçou o cavanhaque loiro como se estivesse pensando em alguma coisa e disparou em seguida quando me levantei sem tirar o olhar dele mais em silêncio.
- Uma bonequinha como você sozinha na rua a essa hora da manhã não tem medo não é? Vê se olha por onde anda, lindinha ou vai acabar numa cadeira de rodas antes de cair numa rola.
- E você num caixão! - disse sem conseguir me segurar mais e seu sorriso vacilou. - Ou acha que vai durar muito tempo bancando uma de fodão pela cidade dirigindo embriagado? Posso sentir o cheiro de fracassado e cachaceiro daqui. Você realmente não deve ter nenhuma autoestima, não é? - e de fato ele cheirava a bebida, coisa que eu odiava.
Foi como se eu tivesse acertado-o em cheio pois pelas lentes escuras tive a breve impressão de ver um brilho assustador me fulminando. Ele partiu para cima de mim no mesmo minuto e em instantes eu já estava sendo segurado com brutalidade pela gola da camisa e sacudido sem dó.
- Sabe de uma coisa, bixinha? Bem que eu podia te quebrar na porrada mesmo pra aprender a respeitar homem. Com quem você pensa que tá falando, hein? Bora, pede desculpa ou vai apanhar aqui mesmo. - ele falava cuspindo cada frase como se houvesse ácido em seu hálito, o bafo de álcool era tão insuportável que eu quase tussi mais lutando para me soltar cuspi na cara dele, bem no olho esquerdo. O efeito surtiu pela metade pois ele havia me soltou e me lançou no chão, me ergueu pela camisa e puxando meus cabelos com força preparou o punho ameaçadoramente.
- É bom você ter um plano odontológico bom, viadinho.
- E é bom você ter bons advogados. - gritei no meio da rua para atrair o máximo de atenção possível de quem sabe alguns vizinhos que já estivessem acordados. Quanto mais testemunhas melhor num ataque. Continuei com meu show sem alterar a voz em alto e bom tom. - Porque toda a rua possui câmeras escondidas que estão filmando tudo que você está fazendo agora, seu louco. Toque em mim e você vai pra cadeia por lesão corporal.
Aquelas palavras pareceram acorda-lo de seu estado de fúria por um momento pois logo ele me soltou, me lançando de volta ao chão.
- Fica aí então que é seu lugar! Mas que fique avisado, boneca: se eu te ver de novo sozinho te quebro no pau, entendeu? Ainda não acabou. - E saiu pisando duro de volta ao seu carro, ligou a acelerador e com os pneus soltando fumaça partiu na mesma velocidade que quase me atropelou. Me levantei passando o dedo pelo canto da boca que estava sangrando.
Devo ter me machucado na queda.Mas apesar disso segui para casa nem um pouco assustado. Ele estava bêbado, provavelmente drogado e pelo que reparei quando ficamos cara a cara seus olhos estavam vermelhos e inchados de tanto chorar horas antes. Se muito arrisco ele devia estar cheio de sono e raiva por alguma coisa, nem se lembraria de mim em sã consciência se me visse de novo. Por mais que eu adorasse a ideia de uma boa briga onde poderia chutar os orgãos desse filho da puta me senti aliviado por não ter mais uma dor de cabeça e entrei em casa, decidido a ignorar toda a bagunça estilo Last Friday Night dos meus irmãos e seus convidados indesejados e segui para o meu quarto já ansioso por um banho quente. Novamente meus planos são interrompidos pela visão mais cabulosa que já vi no meu quarto nesses dezessete anos de vida.
- ISSO PASSA DE TODOS OS LIMITES! MAS QUE PORRA É ESSA AQUI??
C O N T I N U A...