O mal habitava aquela casa, havia maldade nela.
– Senhor ? Está tudo bem? -
Era um dos manobristas do estacionamento. Um moço de uns vinte anos, mais ou menos, vestido com uma polo branca em que se lia, em letras vermelhas, a legenda MCCLANE ’S PARKING.
– Estou bem – ele inclinou-se cuidadosamente, entrando no carro para apanhar a pasta de Birkin antes de fechar a porta. Quando se virou para dar um sorriso ao moço, ele o olhava com curiosidade, como se Addan estivesse a ponto de chorar e ele estivesse rezando para que não o fizesse na sua frente.
– Oh, Senhor, vim buscar esse carro – disse assinalando com a cabeça para o Lexus que estava na frente do Mercedes de Addan.
– Quer que eu o leve nele até a casa?
– Obrigado, mas irei caminhando.
– Está bem... se prefere.
Addan subiu pela entrada para carros com os olhos fixos na casa de pedra cinza. Quando chegou à porta principal e levantou o batedor, notou que seu corpo estava tremendo. Sentia-se enjoado e fraco e era como se estivesse gripado outra vez, seu corpo era assaltado por ondas alternadas de calor e de frio e sua cabeça pulsava.
Fletcher abriu a porta, Ao ver que estava diante do velho mordomo, Addan retrocedeu, cambaleante e sem nenhum motivo aparente, enquanto seu pânico saía de controle.
Entretanto, Addan foi abruptamente resgatado. Seus instintos de advogado, os que a faziam tão eficiente na hora de confrontar os advogados da parte oposta, os que o convertiam em um negociador fatal, os que tinham tomado o controle uma e outra vez quando ele não podia se permitir que suas emoções aflorassem... Esses instintos tomaram o controle do repentino pânico e espanto e o acalmaram instantaneamente.
Nunca demonstre debilidade diante de seus inimigos, jamais. Apenas Deus poderia saber o motivo que levava um velho mordomo o provocar-lhe semelhante reação.
De qualquer forma, estava agradecido porque, ao menos, já não sentia como se fosse desmaiar. Antes, estava confuso; agora, sentia-se seguro. Addan sorriu serenamente e estendeu a mão, ouvindo os sons do velório que estava acontecendo dentro da casa.
– Meus pêsames. Trago o testamento – disse, batendo em sua pasta.
– Obrigado, senhor Stroughton – Fletcher baixou a vista. Os olhos, com as pálpebras cansadas, desciam ainda mais do que o habitual.
– Sentirei saudades.
– Podemos ler o testamento na semana que vem ou depois do velório. O que achar melhor. Ele assentiu.
– Seria melhor fazê-lo esta noite. Obrigado por sua consideração.
– Não há problema – Addan sorriu e agarrou firmemente as alças de sua pasta. Enquanto entrava no vestíbulo, o fato de querer usar o melhor da Hermès como arma contra ele surgiu
como uma completa surpresa.
Addan se uniu à multidão que formava pequenos grupos entre a sala de jantar e a sala de estar. Cumprimentou com um aceno de cabeça alguns colegas, muitos dos quais eram CEOs de empresas de que a família Leeds era acionista e outros que trabalhavam no próprio escritório que Addan representava.
Do resto, dos cem homens e mulheres que havia ali, ele supunha que ao menos metade era representante das várias obras de caridade tão caras à senhorita Leeds. Sem dúvida, eles estavam loucos para antecipar o grande dia do pagamento.
Enquanto chocava-se contra outros ombros, desviava de vários garçons que ofereciam hors d ’oeuvre2 e tentava imaginar por que tinha adotado uma posição defensiva quando não havia nada contra o que lutar. Seus olhos continuavam desviando-se para a escada principal. Havia algo naquela escada que... algo... atrás.
Abrindo caminho entre a multidão, Addan foi até o pé da enorme extensão de degraus que levavam ao piso superior. Quando colocou a mão na balaustrada ornamentada, ouviu uma voz em sua mente, uma voz que se sobrepujou a todo o ruído da conversa paralela, a toda a dor de cabeça e até mesmo à vontade de matar Fletcher.
Atrás das escadas. Vá para trás das escadas. Encontre o elevador.
Sem parar para pensar como diabos sabia o que havia ali atrás, Addan deslizou ao redor do corrimão da escada e seguiu até entrar em um pequeno nicho... onde havia um elevador. Um antigo elevador de bronze e vidro.
Entre e desça até o porão.
A voz era incontestável e Addan estendeu a mão para abrir a porta entalhada com filigranas. Antes de entrar, olhou para cima. Na parte superior havia uma lâmpada.
Se usasse o elevador, aquela coisa certamente enviaria um sinal. Os seus instintos lhe diziam que ele devia ocultar o máximo possível seus rastros.
Se Fletcher descobrisse para onde Addan ia, ele não poderia... Bem, caramba, Addan não sabia o que devia fazer, a única certeza que tinha era a de que devia chegar ao porão sem que ele soubesse.
Olhando por cima do ombro, Addan viu uma pequena porta atrás da escada curva e dirigiu- se para lá. Havia um ferrolho de metal, que ele abriu antes de mover a maçaneta.
Deu certo...
Do outro lado, havia um lance de escadas irregulares iluminadas por precárias e amareladas lâmpadas antigas. Olhou para trás. Ninguém estava prestando atenção nele e, o que era mais importante, Fletcher não estava à vista.
Fechou a porta e começou a descer. Seus ssapatos batiam contra o chão e ecoavam à sua volta. Maldição, como eles faziam barulho. Parou, tirou os sapatos e colocou-os dentro de sua pasta. Agora, sem fazer ruído, podia mover-se inclusive mais rapidamente. Seus instintos estavam em alerta total. Deus, a escada parecia não ter fim, as paredes e o chão de pedra lembravam uma pirâmide egípcia e, antes de chegar ao primeiro patamar, já sentia como se tivesse percorrido meio caminho até a China.
E ainda faltava muito para andar.
Enquanto descia, a temperatura o acompanhava, o que era algo positivo. Quanto mais frio ficava, mais Addan se concentrava, de modo que sua dor de cabeça desapareceu e seu corpo converteu-se em pura energia comprimida. Sentia como se estivesse em uma missão de resgate, embora não soubesse quem ou o que estava prestes a tirar do porão.
As escadas terminavam em um corredor feito da mesma pedra que o resto da casa. As luzes incrustadas no teto brilhavam tenuemente, fazendo pequenos rasgos na escuridão.
Devia ir para a esquerda ou para a direita? Para a esquerda, havia apenas mais corredor.
Para a direita... havia apenas mais um corredor.
Para a direita. Caminhou uns 45 metros – ou talvez 65 – e, como seus pés revestidos pelas meias finas não emitiam som, o único ruído que escutava era o golpear de sua pasta contra as costelas e o roçar das roupas na pele delicada. Estava a ponto de perder a esperança e dar meia-volta quando encontrou... uma porta enorme. A coisa era como algo que poderia esperar encontrar nas masmorras de um castelo: completamente cravejada com suportes de ferro e com uma barra deslizante tão grossa quanto sua coxa servindo de fechadura.
No momento em que viu aquilo, começou a chorar copiosamente.
Soluçando, aproximou-se dos pesados e grossos painéis de carvalho. Mais ou menos à altura de seus olhos, havia uma espécie de visor. Ficou nas pontas dos pés e olhou...
– Não deveria estar aqui embaixo.
Deu meia-volta. Fletcher estava em pé, bem atrás dele, e tinha um dos braços discretamente escondido atrás das costas. Addan enxugou os olhos.
– Estou perdido.
– Sim, certamente está. - ele deslizou uma mão para dentro da pasta e a outra para o bolso do blazer.
– Por que veio aqui embaixo? – perguntou o mordomo, aproximando-se.
– Estava me sentindo mal. Então, encontrei a porta atrás das escadas. Estava procurando me afastar da multidão, de modo que simplesmente comecei a perambular, até que cheguei aqui.
– Em vez de sair para os jardins?
– Havia gente lá, muita gente. - O mordomo não estava acreditando naquelas palavras, mas Addan tampouco se importava. Ele precisava que se aproximasse só um pouco mais.
– Por que não entrou em uma das salas de estar?
Quando ele chegou mais perto, Addan tirou um dos sapatos de sua pasta e o jogou, fazendo com que ricocheteasse várias vezes. Fletcher girou sobre si para olhar o que estava provocando aquele ruído e, nesse ínterim, Addan tirou o spray de pimenta que tinha no chaveiro e o levantou na altura dos olhos do velho. Quando ele virou-se e pegou a seringa que tinha na palma da mão, Addan o atingiu no meio do rosto. Soltando um berro, o velho deixou cair a seringa que usaria em Addan e tentou proteger os olhos,
cambaleando para trás até bater contra a parede oposta.
Continua....