Já se faziam dois meses que Felipe trabalhava para mim. Eu estava absolutamente fascinado com a capacidade daquele garoto de gerir a minha vida de artista. Eu continuava trabalhando na companhia, ele trabalhando para mim todos os dias. Todos estavam satisfeitos com ele. Ele era gentil, uma pessoa extremamente doce, era solícito, bondoso e agradável. Tudo aquilo que eu não conseguia ser. Minha arrogância por ser a estrela máxima da companhia havia me subido à cabeça. Mas enquanto eu estivesse fazendo o meu trabalho com perfeição, eles não me demitiriam.
Minha voz era aclamada pela crítica. Vinham muitos críticos, músicos experientes, professores de canto, para presenciar, nas minhas apresentações o Farinelli dos novos tempos, esse era um dos meus apelidos. Mas eu tinha muitos inimigos. Dentro e fora da companhia.
Quando cheguei para estrear ali, depois de 6 anos de estudo, dos meus 6 aos 12, tomei a posição de dianteira na corrida pelas apresentações mais importantes. Árias muito famosas como A rainha da noite, de Mozart, Cario mio ben de Giordani eram apresentadas por mim que em tão pouco que havia chegado e tomado aquele posto.
Felipe me acompanhava para cima e para baixo. Naquela semana iríamos para São Paulo. A mais importante apresentação do início da temporada. Era o início do ano mais importante que eu teria até então. O Solista principal fazia 3 apresentações. As 3 selecionadas eram Strano, Sempre Libera e em dupla, Les Fleurs Duet, que Marion, um falso soprano, assim como eu, faria comigo.
Cheguei, por infortúnio do destino, duas horas mais cedo no teatro onde aconteceriam os ensaios. Mariel, irmão gêmeo de Marion, que era carinhosamente apelidado de Olive, por causa de seus belos olhos verdes que sempre mostravam doçura, se espreitava pelo corredor que passava pela frente do meu camarim e seguia para o camarim do diretor musical, Genelle. Achei aquilo bastante estranho e Felipe seguia atrás de mim, ambos a passos bem lentos, para justamente não sermos escutados.
Mariel entrou no camarim de Genelle e fechou a porta. Mas porque ele estava ali? Porque se esgueirava pelo corredor, empertigado, como se fosse fazer algo que não devia. Eu e Felipe olhávamos um para o outro, achando aquilo demasiadamente estranho.
Continuamos seguindo passo a passo, pé ante pé e bem silenciosos para a porta do camarim.
Ouviam-se gemidos. Dava para perceber que eram gemidos de Genelle, dado a sua voz grave e profunda. Então escutei a voz de Mariel. Algo estava mais errado ainda.
Mariel pedia a Genelle que o desse o meu lugar. E que para aquilo faria várias de suas vontades sexuais.
Naquele momento eu senti fraco. Enojado. Triste e com muita, muita raiva. Sentia fraco diante de toda aquela situação. Eu era jovem. Era talentoso. Mas não havia tomado muitas pancadas da vida, até aquele momento.
Enojado pelo fato de ter que dividir o mesmo teatro, o mesmo mundo com uma pessoa capaz de ceder às bestialidades de um homem de quase 70 anos, casado, com netos já, que por mais que fosse um senhor, era extremamente bem apanhado, para tentar derrubar um colega que estava ali porque aquilo lhe era de direito.
Abruptamente abri a porta. Quase um coice, com raiva, furioso. Olhei para Mariel que encontrava-se ajoelhado à frente do nosso diretor, com seu membro em suas mãos.
Vi Mariel com aquele membro em riste em suas mãos. Genelle estava apenas usando as calças e ainda assim desabotoadas, caídas aos pés. Mariel estava ajoelhado, sem camiseta, mostrando que possuía um físico invejável, que somados aos seus cabelos louros, típicos de quem nasceu e cresceu em família italiana. Era um homem belíssimo no auge de seus 23 anos e com muito talento para cantar.
Eu ri de desdêm. Abri a boca para falar, mas não o fiz. Ao invés disso, cantei Lucia, num tom muito alto até para sopranos de imensa coloratura. Bati a porta. Sai para o meu camarim.
Felipe me seguia. Ele estava branco de susto com aquela situação. Eu estava em puro ódio. Abri a porta do meu camarim numa mistura de ódio e nojo. Como alguém consegue ser tão baixo. Felipe tentava me acalmar. Dizia para manter a calma. Amanhã Joseph Cleiber iria chegar, o chefe geral da companhia.
Mas eu não conseguia me acalmar. Queria avançar no pescoço daqueles dois. Enforcá-los até perderem a última molécula de ar dentro dos pulmões.
Felipe falava para eu manter a minha calma. Para não fazer nenhuma besteira. Ele também sentia raiva, sentia nojo de uma pessoa como Mariel. Pensei por um momento que eu fosse vomitar.
Corri para o banheiro do camarim pensando que eu colocaria tudo para fora. Mas fora somente um alarme falso.
Eu agora chorava. De raiva e de tristeza.
Sabia que tudo aquilo estava acontecendo não era de agora. Que haviam acontecido outras vezes, com outras pessoas que tentaram tomar meu posto.
Eu falava com Felipe, questionando o porquê aquilo acontecia comigo. Eu só fazia o meu trabalho. Só queria ficar em paz. Nem toda a minha arrogância e amargura com aqueles que não gostavam de mim fazia que eu pudesse ter sossego para trabalhar em paz.
Eu falava alto. Quase aos berros. Era muita raiva. E essa raiva parecia não ter fim dentro do meu peito.
Os olhos de Felipe eram calmos. Ele deixava que eu esbravejasse aos 4 ventos e que amaldiçoasse à torta e à direita. A raiva aos poucos foi dando vazão e então comecei a ser cometido por uma profunda tristeza.
As lágrimas de ódio começaram a se transformar em lágrimas de melancolia e de uma solidão que eu sentia dentro de mim. Uma espécie de aflição. Que começava a me deixar dormente.
Os olhos de Felipe parados ali à minha frente, me olhavam como se fossem puro açúcar. Plácidos e calmos como um lago na primavera.
Desviou seu olhar de mim para a mochila que estava no sofá ao seu lado. Ainda calmo como nunca, uma sensação completamente diferente da minha.
Eu soluçava de tanto chorar enquanto ele colocava uma suave música para tocar. O mio babbino caro. Essa música me acalmava e ele sabia disso.
Segurou em minha mão e me puxou para si. Me fazendo sentir um abraço que possuía uma ternura, um carinho que eu não conseguia explicar.
Eu me acalmava com a cabeça em seu ombro com ele acariciando meu cabelo. Aquilo me fazia quase adormecer.
Ele disse para me acalmar, porque eu era a estrela dele e estrelas brilhavam por si só.