~ continuação ~
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Acordei algum tempo depois e sorri, antes mesmo de abrir os olhos, relembrando dos momentos que passáramos a pouco. Tinha sido tudo perfeito. Levantei o tronco devagar, esperando encontrar um Higor adormecido, mas ele não estava. Seus olhos estavam abertos e um pouco desfocados, enquanto ele olhava para a parede em frente a cama. Beijei seu peito, tentando chamar sua atenção para mim e consegui. Ele sorriu e acariciou meu rosto.
K: Eu dormi por muito tempo?
H: Não muito... umas duas horas.
K: Não está com sono?
H: Não...
K: No que estava pensando?
H: Na faculdade.
K: Problemas na faculdade?
H: Não... eu estava lembrando de um colega da turma.
K: Hum... assim fico com ciúmes. Vai me dizer que é alguém interessado em ti?
Higor baixou os olhos e virou a cabeça para o lado. Senti meu coração dar um pulo, segurei seu rosto e o virei pra mim.
K: Você... teve alguma coisa com essa pessoa, Higor?
H: Não! Kim... claro que não.
K: Então porque é que você está pensando nele!?
Perguntei irritado e me sentei na cama. Higor me acompanhou, se sentando a minha frente.
H: Eu estava pensando no que ele me disse quando chegou em mim...
K: E?
H: Ele disse que eu merecia ter alguém que gostasse de mim sempre ao meu lado, e não ficar esperando por um namorado que eu nem sei o que anda fazendo enquanto estamos separados.
K: Então é isso? Você desconfia de mim? Você quer ficar com alguém que possa estar sempre do seu lado? Responde, Higor! É isso?
H: Não! Kim, pára! Deixa eu falar!
K:...
H: Eu estava pensando em você... que eu... eu acho a mesma coisa de você. Você merece alguém sempre contigo. E, na verdade, você já até tem essa pessoa, mas por minha causa o relacionamento de vocês não pode evoluir mais.
K: Higor... que bobagem! Eu e Rapha... a gente é primo. Nosso carinho não passa de carinho de irmão.
H: Não é verdade, Kim... Você gosta dele.
K: Isso foi quando eu era criança, Higor. Eu não gosto dele dessa forma.
H: Kim, olha pra mim.
Higor segurou meu rosto com ambas as mãos e prendeu seus olhos no meu.
H: Diz pra mim que você nunca sentiu nada por ele, desde que chegou, do que carinho de irmão.
Olhei-o com segurança.
K: Eu nunca...
Foi então que lembrei de pequenos fatos que ocorreram durante aqueles meses de convivência, como quando ele me abraçou a noite, deitados em sua cama, depois do pesadelo, ou como ficamos próximos depois da briga que ele teve com Patricia. Lembrei de não ter conseguido conter meus olhos e reparar em seu corpo e como o meu coração pulava no peito toda vez que ele beijava meu rosto.
K: Nunca senti nada além disso...
Disse, já sem nenhuma segurança, evitando seus olhos, mirando o colchão. Higor soltou meu rosto e me puxou para um abraço.
H: Eu te amo. Queria poder te levar comigo agora e nunca mais deixar você chegar perto dele, mas não seria justo com você. Você esperou por ele tantos anos, e agora que finalmente tem a oportunidade de descobrir o que realmente se passa entre vocês, está preso a mim.
K: Eu não estou preso. Higor, eu também te amo. Estou com você porque quero.
H: Eu sei disso... Mas também sei que você tem várias duvidas quanto aos seus sentimentos pelo Raphael sempre povoando essa sua cabecinha. Eu penso nisso todos os dias, Kim. Eu não tenho condições de ficar sempre perto de você no momento e é disso que você precisa. Eu não tenho o direito de te prender. Eu cheguei a conclusão de que o melhor a se fazer é você poder experimentar tudo e só então decidir o que é melhor pra você.
K: Higor...
H: Kim, quero que você entenda que eu não estou te abandonando. Vamos continuar nos falando e eu vou vir te ver sempre que puder. Mas quero que nesse meio tempo você esteja livre pra tomar certas decisões. Se eu não fizer isso, não vai ser justo com você, e não vai ser justo comigo também. Eu preciso que você tenha certeza de que é comigo que quer ficar. Você me entende?
Eu realmente não queria entender, mas a partir do momento em que ele disse que aquilo não era justo com ele, comecei a pensar de outra forma. Ele estava atormentado pelo pensamento de que eu poderia estar deixando de lado algo especial com Rapha por causa dele, estava sofrendo com aquilo.
K: Eu entendo. Então você está... terminando comigo?
H: Estou.
Abaixei o rosto, sem saber mais o que dizer.
H: Nós vamos ter contato sempre, Kim. Você pode me contar o que quiser, sempre. E se daqui há um tempo você vir que é comigo que quer ficar, eu vou vir te buscar. Eu não vou desistir de você, a não ser que você decida não ficar comigo.
Assenti e, sem saber mais o que fazer, me deitei na cama, de costas para ele. Algum tempo depois senti o colchão afundar um pouco e Higor estava deitado atrás de mim, me abraçando.
H: Eu te amo.
K: Eu também te amo.
Mal dormi a noite toda, apenas peguei no sono quando já estava amanhecendo. Abri os olhos algum tempo depois e Higor não estava mais na cama. Sentei rapidamente, sentindo minha cabeça girar e doer e minha vista escurecer. Abaixei a cabeça, segurando com as mãos e pouco tempo depois os passos de Higor vindo em até mim me chamaram a atenção.
H: Kim, tudo bem? O que houve?
K: Nada... eu só levantei rápido demais...
H: Já está se sentindo melhor? Levanta a cabeça.
Levantei a cabeça, me deparando com seus olhos preocupados.
K: Já estou melhor, obrigado.
Ele apenas suspirou e se levantou de onde estivera agachado indo em direção a sua mochila. Começou a dobrar algumas roupas e a guardá-las ali.
K: Você já vai embora?
H: Acho que seria estranho se eu ficasse não é?
Não consegui pensar em nada para responder. Levantei e fui até ele, trazendo-o pela mão para se sentar comigo na cama.
K: Ao mesmo tempo que eu entendo, Higor... eu não consigo aceitar... Como pode? Você não tem ciúmes?
H: Kim! Que tipo de pergunta é essa? É claro que eu tenho ciúmes. Eu morro de ciúmes! E não são ciúmes exatamente do Raphael, mas sim dessa situação. Saber que você está todos os dias ao lado do seu amor de infância, que ele é o primeiro rosto que você vê quando acorda e o ultimo antes de dormir, que é com ele que compartilha seus dias, isso me mata de ciúmes. Eu penso nisso todos os dias!
Abaixei a cabeça. Eu queria respostas, mas não sabia o que dizer ante a elas.
H: Talvez eu não sentisse tanto ciúme se soubesse que o que você sentia por ele acabou, mas não é assim. Então é melhor que seja desse jeito. Kim... eu sei que você concorda comigo. E se não concorda, tem duvidas, e isso já é o suficiente. Quero que a gente fique junto sem duvidas, sem assunto mal resolvidos no meio.
K: Tudo bem...
Senti sua mão subindo por meu braço até tocar minhas costas e me puxar para um abraço. Me agarrei com força a sua camisa e fiquei ali, quieto, não sei dizer por quanto tempo, até que ele me afastou gentilmente.
H: Quer tomar um banho antes de irmos?
Neguei com a cabeça.
H: Vamos tomar café, então...
K: Não estou com fome.
H: Tudo bem... O que você quer fazer agora?
Dei de ombros.
H: Vamos fazer assim, eu vou te levar pra casa. Acho que nós dois precisamos de um tempo pra gente, né? Depois eu vou te ligar, quando eu chegar em casa, tudo bem assim?
K: Aham.
H: Então vamos.
Levantei e coloquei a roupa devagar. Meus corpo estava dolorido pela noite mal dormida, minha cabeça doía e eu sentia como se um caminhão tivesse passado por cima de mim. Higor também se arrumou e fomos para o carro. Para mim, pareceu que num piscar de olhos eu estava em casa. Não conseguia me lembrar no que pensara durante todo o caminho, provavelmente em nada, e também não devia ter me movido muito. Higor estacionou e se virou para mim, tocando meu rosto.
H: Você está bem?
Neguei com a cabeça.
K: E você?
H: Também não. Essa situação é horrível... mas eu acho, não, eu tenho certeza que assim é melhor. Pelo menos por enquanto.
Dessa vez eu concordei. Tentei abrir a porta do carro, mas Higor me segurou e me trouxe para perto, me dando um beijo que eu mal consegui sentir, já que meus pensamentos estavam povoados pela ideia de que aquele poderia ser o ultimo. Acordei quando ele já se separava de mim e correspondi ao beijo tentando passar a ele o quanto eu o amava, mesmo com toda aquela situação. Então nos afastamos.
K: Você quer subir? Não comeu nada... Não é bom pegar a estrada assim.
H: Não. Eu... não quero ver seu primo no momento, se é que me entende. Vou comer alguma coisa no caminho, não se preocupe. Te ligo quando chegar.
K: Certo... Boa viagem, então.
H: Obrigado.
Trocamos um ultimo selinho e saí do carro o mais rápido que consegui. Entrei em casa e me sentei no sofá. Eu não fazia a menor ideia do que fazer agora, estava completamente perdido. Rapha chegou na sala, provavelmente para se certificar de que fora eu quem entrara e logo seu semblante calmo se alarmou.
R: Kim, você está chorando? O que houve?
Passei a mão no rosto sentindo-o molhado. Quando foi que eu começara a chorar?
R: Foi o Higor?
Assenti.
R: Ele te trouxe em casa?
Assenti novamente.
R: Eu vou lá embaixo ver se ele ainda está lá. Quero saber o que foi que ele fez.
Rapha se levantou, mas antes que se afastasse, segurei seu braço.
K: Não... ele não fez nada. Ele... terminou comigo. Nós terminamos.
Ele voltou a se sentar e definitivamente estava sem palavras.
R: Terminaram? Nossa! Quer dizer... Você está bem?
Neguei com a cabeça. Ele me olhou com o cenho franzido por um tempo.
R: Você já comeu alguma coisa?
Neguei de novo.
R: Quer que eu prepare alguma coisa?
Mais uma vez, apenas balancei a cabeça. Rapha ficou quieto, me olhando, provavelmente pensando no que mais falar.
K: Eu só quero ficar um pouco sozinho. Vou para o quarto, tá?
R: Tudo bem.
Levantei de fui em direção ao quarto.
R: Kim. Se você precisar de qualquer coisa, me chama. Vou estar aqui.
K: Certo... obrigado.
Entrei no quarto e encostei a porta, fechei as cortinas, deixando tudo na maior escuridão possível e deitei na cama. Minha vontade era de dormir por tempo indeterminado para não ter que pensar em nada, mas dormir foi tudo o que eu não consegui fazer.
Descrever a forma como me sentia é uma tarefa difícil. Era um tipo de tristeza misturada com conformismo e um pouco de confusão. Passei tanto tempo tentando decifrar o que eu estava sentindo que não tive realmente tempo para pensar na situação em si. Não sei quantas horas se passaram até que senti o colchão ceder atrás de mim e a mão de Rapha correr por meus cabelos, de leve. O carinho era reconfortante e muito bem vindo para mim, por isso fiquei quieto, apenas sentindo.
R: Kim... está acordado?
Me faltou vontade de falar, portanto apenas suspirei e me virei na cama, ficando de frente para ele. O carinho estampado em seus olhos era quase palpável e me senti um pouco mais relaxado por ele estar ali comigo. Olhei para uma de suas mãos, apoiada no colchão, reparando na pele morena, tão diferente da minha, nas unhas curtas e bem cuidadas. Segurei-a e recebi em troca um aperto firme e um sorriso.
R: Vamos almoçar?
K: Estou sem fome.
R: Você tomou café?
K: Não.
R: Então precisa comer alguma coisa.
K: Não quero, Rapha...
Ele me olhou por um tempo, parecendo preocupado, mas acabou suspirando e desistindo de tentar me convencer a comer... naquele momento.
R: Tudo bem, não vou insistir mais. Mas não pense que vou deixar que você fique o dia todo sem comer! Mais tarde trago alguma coisa.
K: Você não precisa se preocupar comigo, Rapha. Nem ficar cuidando de mim...
Rapha, que já estava com as mãos apoiadas nos joelhos para se levantar, voltou-se para mim, passando a mão por baixo de minha franja e pressionando-a contra minha testa. Não pude deixar de rir um pouco de sua cara de falsa concentração.
K: Que foi?
R: Estou conferindo o quão grave é o seu estado.
Com a mesma cara de confusão que estava, permaneci.
R: É que pra você estar realmente achando que eu posso deixar de me preocupar contigo e não querer mais cuidar de você, deve estar realmente muito mal. Perdeu a noção da realidade? Acho que vou trazer aquela comida agora mesmo, você já está delirando!
Acabei rindo mais ainda, ficando sem graça ao mesmo tempo. Como ele podia ser tão sincero de uma maneira tão simples e leve, capaz de me fazer sorrir num momento como aquele? Dei um soco leve em seu braço e ele fez uma careta de deboche, dizendo que eu era muito forte. Empurrei-o para fora de minha cama, mas antes de sair do quarto, Rapha se debruçou sobre mim, depositando um beijo demorado em minha testa. Segurei em sua camisa enquanto sentia o contato macio contra minha pele e só me dei conta de que apertava o tecido com força maior do que a necessária quando ele tentou se afastar e não conseguiu. Soltei-o, envergonhado, e dessa vez ele não fez nenhuma piada, apenas sorriu e saiu de meu quarto.
Passei mais algumas horas perdido em meus pensamentos até que, dessa vez, escutei o barulho da porta se abrindo e me virei para ver Rapha entrando no quarto com um grande tabuleiro onde ele colocara alguns pratos e copos. Nós não tínhamos bandejas, sorri divertido ao ver a solução que ele encontrara.
R: Sente-se. Agora você não tem escolha, vai ter que comer.
K: Tudo bem...
Sentei com um pouco de má vontade e esperei que ele apoiasse o tabuleiro no colchão e se sentasse de frente para mim. Meus olhos se arregalaram quando vi a quantidade de comida que ele colocara ali. Havia pelo menos cinco fatias de pão-de-forma torradas, no mínimos quatro ovos mexidos, quatro fatias de melão que eu cortara fazia pouco tempo e deixara na geladeira e uma pequena jarra de suco.
K: Rapha! Que exagero!
R: O quê? Você achou que era só pra você? Claro que não, eu vou comer aqui contigo. Quero me certificar de que você coma alguma coisa.
Suspirei, pegando uma das torradas e colocando ovo sobre ela. Rapha sorriu, parecendo satisfeito e, antes de começar a comer, serviu suco para nós dois.
R: Desculpe não trazer nada melhor para você comer... Sabe que eu não sou muito bom na cozinha.
K: Está ótimo, Rapha. Obrigado.
R: Com essa cara que você está fazendo, parece que é a pior refeição da sua vida.
K: Não! Claro que não... Eu só estou um pouco enjoado.
R: O enjôo deve passar depois que você comer um pouco.
Concordei com a cabeça e me concentrei em comer, ouvindo Rapha comentar sobre qualquer coisa na qual eu não prestava realmente atenção. Antes mesmo de terminar a primeira torrada, coloquei-a de volta no prato, dizendo que não queria mais. Rapha já tinha comido três, não seria nenhum esforço comer mais uma. Ele insistiu comigo que eu deveria ao menos terminar aquela, mas acabou se contentando que eu comesse uma fatia de melão e bebesse todo o suco no copo. Obviamente, ele se encarregou de comer as outras fatias da fruta e de beber o que restara do suco.
K: Come mais devagar, Raphael. Vai ter uma indigestão desse jeito.
R: Eu estou com fome, ué! Só de ver você se alimentando tão mal, sinto fome por nós dois.
K: Não entendo pra onde vai isso tudo. Você já deveria estar com uma barriga de grávida de seis meses! Qual é o seu truque pra esconder o bebê?
Brinquei tentando puxar a barra de sua camisa para cima. Rapha deu um tapa em minha mão, me olhando indignado. Ri da cara que fazia e decidi continuar com a brincadeira. Empurrei-o e fiz com que ele caísse deitado na cama, fazendo de tudo para levantar sua camisa enquanto ele me atrapalhava com uma das mãos e com a outra tapava a boca enquanto tentava mastigar, rir e engolir ao mesmo tempo.
K: Vai, Rapha! Deixa eu ver o meu priminho, de quantos meses ele está?
Consegui finalmente erguer-lhe a camisa e me deparei com a pele lisa e morena. Sua barriga não era definida, mas definitivamente não parecia portar uma bebê. Eu esperava que ela tivesse pelo menos uma pequena elevação, depois de presenciar por alguns meses a forma como Rapha comia, mas não. Virei o rosto, encostando o ouvido em sua barriga, que estava quente, e sentindo que era firma, mas macia. Rapha permaneceu quieto.
K: Vixe, Rapha... Acho que o bebê morreu antes de desenvolver.
R: Para de falar besteira, Kim! Levanta daí!
Ele parecia um pouco impaciente e me empurrou de leve pelos ombros.
Voltei a sentar direito e olhei-o sem entender nada. Não sabia se era impressão minha, mas a pele de seu rosto parecia um pouco avermelhada. Era difícil de dizer pela cor natural de sua pele. E, de repente, uma luz se acendeu em minha cabeça, quando reparei na forma que ele buscara pelo tabuleiro e o colocara no colo, e apenas depois disso começou a recolher os pratos e colocá-lo dentro deste. Minha primeira vontade foi a de entrar debaixo do lençol e me esconder, depois pensei em pedir desculpas pela brincadeira, mas achei que seria ruim se eu confirmasse que havia notado, acabei ficando quieto. Rapha recolheu tudo e só então voltou a me olhar. Ele parecia querer me dizer alguma coisa, mas não teve tempo porque meu celular começou a tocar. Levantei para pegar meu celular na estante e, quando me virei, Rapha já tinha saído do quarto. Olhei para o visor: Higor. Toda a agitação pela brincadeira com meu primo desapareceu imediatamente.
K: Oi, Higor.
H: Oi... Já estou em casa.
K: Que bom...
H: Como você está?
K: Como você acha, Higor? Vamos mesmo falar sobre isso? Acho que qualquer pessoa que acaba de terminar um namoro não se sente muito feliz.
H: Mas nós nunca fomos “qualquer pessoa”. Não quero que você fique com raiva e se afaste de mim.
Respirei algumas vezes, pensando na situação. Eu não protestara contra o fim do namoro. Que direito eu tinha agora de ficar com raiva de Higor por estar atrás de uma certeza que nenhum de nós tinha? Ou será que era só eu quem não tinha?
K: Desculpa, Higor... Eu não estou com raiva. Só um pouco triste com toda essa situação. Queria que houvesse uma forma melhor de resolvê-la.
H: Kim, a solução pra essa situação depende de você.
K: Eu sei. Desculpa.
H: Está pedindo desculpas pelo quê?
K: Por não ter certeza de nada. Eu sei que é culpa minha.
H: Não é culpa sua, meu amor. Você ser a pessoa que pode resolver essa situação e ser o culpado pela situação são duas coisas muito diferentes. Entendeu?
K: Não...
Ele riu baixinho e deu um suspiro.
H: Você vai se importar se eu te ligar de vez em quando para conversarmos?
K: Claro que não!
H: Que bom. Preciso ir, agora. Boa noite, Kim.
K: Boa noite, Higor.
Era estranho me despedir dele sem dizer “eu te amo”, afinal, só porque nós termináramos o namoro não significava que não nos amássemos mais. Realmente era uma situação complicada até para mim, que participava ativamente dela. Eu não amava Higor nem um pouco menos por morando com Rapha agora, mas tinha consciência de que nossa relação ficava cada dia mais íntima e de que eu não era imune a ele, nem um pouco. Deitei e cobri o rosto com meu travesseiro, voltando a lembrar da situação que ocorrera a pouco por causa da minha brincadeira. Ele não parecia tão imune a mim também.
K: Ahhhh!
Eu estava quase certo, naquele momento, de que minha cabeça daria um nó que eu nunca mais conseguiria desfazer.
Algumas semanas se passaram. Higor me ligava pelo menos uma vez por semana, e nós conversávamos sobre o que estávamos fazendo e outras coisas sem importância. Higor sempre tinha alguma novidade para contar, mas eu nunca tinha nada a dizer, pois desde o dia que ele fora embora não fazia muito coisa além de ficar em casa estudando, cozinhando e limpando ou sair para ir ao mercado e à padaria. Rapha sempre me chamava pra sair nos fins de semana, mas eu recusava, sempre inventando uma desculpa e ele fingia que acreditava. E assim foi indo até que, num domingo quente, daqueles sem um nuvem no céu, Rapha sentou do meu lado enquanto eu assistia TV.
R: Tudo bem, ontem você não quis sair comigo, mas hoje você não tem escolha. Não tem ninguém pra me fazer companhia e eu não quero ficar em casa nesse dia lindo. O que você quer fazer?
K: Queria assistir o resto desse filme...
R: E vai me deixar aqui plantado, com vontade de sair? Ou vai me deixar sair sozinho, sem ninguém pra conversar?
K: Ah, Rapha, deixa de chantagem, vai? Isso é jogo sujo.
R: Não me importam os meios, contanto que eu consiga o que quero. E eu sempre consigo o que quero.
Disse a ultima parte dando um sorrisinho torto, que fez com que um frio tomasse conta da minha barriga, como se eu estivesse em queda livre. Soube naquele momento, baseado na sua expressão de triunfo ao ver minha reação, que eu não conseguiria mais negar nada a ele, pois ele descobrira, ou seria melhor dizer, criara para mim um novo ponto fraco, aquele sorriso, que não hesitaria em usar sempre que quisesse me convencer a algo.
K: Tudo bem.
R: Ótimo! Então, o que você quer fazer?
K: Não sei, Rapha... Por que você não decide isso?
R: Porque quero fazer alguma coisa que você goste de fazer. O que você costumava fazer pra se divertir quando ainda não morava aqui?
K: Bom... eu não saía muito... não antes de conhecer Higor.
Ele ficou um pouco mais sério, mas insistiu.
R: E o que é que vocês costumavam fazer juntos?
A primeira coisa que me veio à cabeça não era exatamente algo que eu devia dizer a ele, muito menos sugerir que fizéssemos juntos, pensei. Desviei os olhos dos dele e acredito que corei, pois sua reação foi instantânea e ele pareceu realmente irritado.
R: Ah, Kim, que droga! Eu estou falando sério!
K: Desculpe, foi involuntário.
Ele já tinha se levantado do sofá e ia em direção a cozinha quando tive uma ideia.
K: Sorvete!
R: O quê?
Ele me olhou, parecendo confuso e ainda um pouco irritado, mas ao menos eu estava conseguindo mudar de assunto.
K: Bom, nós costumávamos tomar sorvete todos os fins de semana. Nós tomávamos na praça e ficávamos conversando e comentando sobre as pessoas que passavam por ali.
R: Quer que eu vá comprar uns picolés?
Perguntou, o humor voltando à sua voz.
K: Nããããooo...
Ele riu e voltou para perto de mim. Segurando meu pulso e me puxando para levantar.
R: Já sei onde te levar. Anda, vai se trocar, e se quiser, coloca uma sunga também.
K: Sunga!? Eu não uso sunga!
R: Dá um tempo, garoto. Você entendeu o que eu quis dizer.
Ele sacudiu meus cabelos, deixando-os totalmente desordenados e me fazendo rir, e fomos, cada um para seu quarto, nos arrumar para sair.
Rapha me levou a uma gelateria perto da praia, uma sorveteria italiana que tinha todos os sabores de sorvete imagináveis, organizados em fundas bandejas de metal e enfeitados com as frutas com que eram feitas, ou com chocolate. Parei na frente da vitrine e fiquei babando enquanto tentava escolher qual sorvete tomaria, o de chocolate, o de morango, enfeitado com enormes morangos cortados em tirinhas e abertos em forma de leque, o de graviola, que eu não conhecia, branquinho, era quase impossível decidir. Só desviei minha atenção das cores chamativas dos sorvetes quando ouvi a risada de Rapha.
R: Parece que você gostou mesmo!
K: Eles são tão bonitos.
R: E tão gostosos quanto. O dono é meu amigo. Bem legal, né?
K: Muito! Nem sei qual escolher.
R: Você pode escolher dois sabores num potinho. Vamos fazer assim, você pode escolher os meus também, assim pode provar quatro de uma vez só.
Acho que meu sorriso não podia ter ficado maior. Escolhi, então, meu pote com sorvete de menta com chocolate e sorvete de Ferrero Rocher e o de Rapha com sorvetes de coco e morango. Depois de recebermos nossos sorvetes, enquanto Rapha pagava, ainda fiquei namorando o sorvete de graviola, imaginando qual seria o gosto. Quando ele voltou para perto de mim e notou para o que eu olhava, chamou a atendente e perguntou se ela poderia me dar uma provinha do sorvete. A moça, muito simpática, pegou uma pazinha de madeira e encheu-a o máximo possível do sorvete, que comprovei ser delicioso. Deixei um pouco na pazinha, que Rapha ficou feliz em tomar.
Fomos para a praia e sentamos na areia, o mais próximo da água possível sem que nos molhássemos. Tomamos os sorvetes sempre colocando um a colher no do outro. Os quatro sabores eram realmente deliciosos e eu acabei tomando bem mais que Rapha, mas, sabendo como ele come, acredito que ele tenha me deixado tomar mais do que ele de propósito. Conversamos sobre várias coisas durante muito tempo.
R: Kim... você namorou alguém antes de Higor?
K: Não.
R: Então ele foi seu único namorado e... ahm... seu único homem?
Fiquei sem graça e não entendi bem porque ele estava tocando naquele assunto, mas respondi, voltando o assunto para ele.
K: Sim. E você? Namorou muitas antes da Patricia?
Ele fez uma careta de desagrado.
R: Sabe que a Patricia nunca foi minha namorada, e nós nem estamos mais saindo. Mas eu tive sim algumas namoradas antes de sair com ela. Três, para ser mais exato.
K: Acredito que as que passaram pela sua vida sem serem namoradas são incontáveis...
Ele me deu um empurrão, rindo.
R: É essa a ideia que você faz de mim, é?
K: Não, mas é uma coisa que se presume facilmente.
R: Por quê?
K: Ah, qual é, Rapha? Você sempre foi bonito e sempre fez sucesso com as garotas.
R: Você me acha mesmo bonito?
K: … Você estava falando das suas namoradas.
Ele riu, parecendo realmente divertido com minha mudança deliberada de assunto.
R: Ao contrário do que você pensa, eu não saio por aí catando mulher, não. Na verdade, desde que me mudei para cá fiquei solteiro por pouco tempo.
K: Mas você está aqui faz seis anos, já.
R: É... Mas eu passei muito tempo com minha primeira namorada, a Thaís. Foram três anos. Ela foi muito especial pra mim, minha primeira mulher de verdade...
K: Como assim? Quando foi que vocês começaram a namorar?
R: Foi pouco depois que me mudei, nos gostamos logo de cara.
K: Mas você já tinha dezoito anos! Eu achei que a Clarissa...
R: A Cla foi só minha primeira namoradinha, nunca passamos das brincadeiras. E antes de vir pra cá eu tinha mais com que me preocupar do que com namoradas.
Disse olhando nos meus olhos.
R: Até que eu conheci a Tatá. Nossa, ela era linda...
Não consegui conter a pontinha de ciúme que me acometeu, ele falava dela com um tom de voz saudoso, fascinado até.
K: E você terminou com ela porque, se era tão perfeita?
Ele riu.
R: Não era perfeita, nós só nos dávamos bem. E nós terminamos porque em certo momento nossos objetivos já não eram mais os mesmos. Ela queria terminar os estudos fora do país e me chamou para ir com ela, mas eu não podia ir.
K: Por que não?
R: Eu ainda tinha muita coisa mal resolvida por aqui, Kim... Ainda tinha uma pessoa especial esperando por mim. Não podia simplesmente ir para outro país, sabendo que talvez eu nem voltasse.
K: Obrigado, Rapha. Agora que todas as dúvidas estão resolvidas entre nós, eu não consigo pensar no que seria da minha vida se você não estivesse aqui, com um lugar guardado pra mim.
R: Pensei que você achasse ruim ter vindo pra cá. Afinal, foi isso que causou o fim do seu namoro, não?
K: Tudo tem dois lados... Mas eu não me arrependo de estar morando com você.
Sorri para ele, que retribuiu o sorriso de uma forma especial, que eu não saberia descrever. Era um sorriso quente, acolhedor, cheio de significado. E então ele colocou a mão nos meus cabelos, mas não como costumava fazer, bagunçando-os, e sim subindo seus dedos por minha nuca, fazendo com que eles deslizassem entre os fios e causando um arrepio gostoso em minha coluna. Ficamos mais um tempo olhando o mar e conversando, até que o sol começou a baixar e resolvemos voltar para casa. Enquanto caminhávamos de volta, lado a lado, pensei que fora um grande desperdício deixar de sair com Rapha todas as vezes que ele me chamou, até aquele dia. Estar com ele era tão reconfortante, como estar naquele lugar em que você se sente seguro, e que chama de lar. “É”, pensei, “talvez Rapha seja o meu lar”.
Certo dia, depois de ter ficado a noite anterior praticamente inteira acordado vendo filmes e conversando com Rapha, acordei bem mais tarde do que o normal. Olhei para a mesinha, sabendo que a hora já era avançada e que Rapha certamente já saíra para o trabalho. No entanto, a primeira coisa em que meus olhos pousaram não foi no relógio, mas sim em um tubo verde escuro sobre o criado mudo. Sentei na cama e peguei o tubo, que estava sobre um papelzinho escrito com a letra de Rapha:
“Não quis te acordar para tomarmos café juntos pois você parecia cansado. Esqueci de te entregar esse sabonete que comprei ontem. Achei que o cheiro combinaria contigo. Bom dia!”
A ideia de que Rapha escolhera aquele sabonete pensando no meu cheiro era ao mesmo tempo embaraçosa e tentadora. Ela me trazia a mente muitas dúvidas e também muitas ideias que eu não deveria estar tendo. Voltei a deitar a cabeça no travesseiro, olhando para o tubo de sabonete líquido e pensando. Eu não estava mais namorando e nem Rapha estava, não haveria mal algum se acontecesse algo entre nós. Se bem que, pensar que alguma coisa pudesse acontecer entre nós era quase surreal. Rapha realmente se mostrava cada dia mais carinhoso, mas nada indicava que sentisse algo por mim além do carinho de primo. Nada... a não ser aquele pequeno incidente que acontecera há um tempo atrás. Nós nunca mais tocáramos no assunto, mas eram raros os dias em que aquela lembrança não viesse me atormentar e embaralhar meus pensamentos, causando cada vez mais confusão.
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~ olá, pessu!!! obrigado pelos comentários, já os li, fiquei triste com um em particular :(, mas ok... entrei só pra postar mesmo, to indo dormir, morto de cansaço <3 ~