(PARTE 5/7: O QUARTO E ÚLTIMO CAUBÓI)
UM FARFALHAR foi ouvido por todos. Era ainda noite plena. Jean despertou e passou a mão pela coronha da espingarda. Joaquim, estancando o susto nos olhos, apertou o braço dormente de André. Os homens pegaram nas armas. O mato se mexeu. Algo ou alguém se aproximava. A tensão no ar. Quanto mais se aproximava, mais Joabe erguia a pontaria. Eis que uma voz soou:
— Ô! Não atirem. Sou eu.
Todos se tranquilizaram. Era só aquele peão, o Gustavo. O que fora até a estância avisar Jorge da vaca parida. Havia decidido não só leva-los ao local aonde encontrara o animal e sua cria, mas também acompanha-los naquela noite de acampamento. Qualquer coisa poderia acontecer, e ter uma espingarda a mais no grupo era sempre bom.
Sua lógica foi acatada, mas já fazia uma boa hora que Gustavo tinha se enfiado pelo mato. Nem davam mais pela sua falta quando ele, então, reapareceu. Tinha uma inhambu, ave noturna, morta, pendurada no ombro e a peixeira reluzente na cintura. Disse que tinha ido caçar, que as coisas lá com o seu patrão não estavam fáceis... E desse assunto, passou a outros piores. Assuntos de fome e de dificuldades comuns na vida daqueles trabalhadores.
Agachando ali perto dos demais, perto do fogo, o tal Gustavo começou a contar a sua história. Jorge, que tinha a visão meio turva de sono, se empertigou depressa para ouvi-lo. Precisava mesmo ficar acordado, de toda forma. Jean e André fizeram o mesmo e logo estavam entrando na conversa do outro. Joaquim dormia, e Joabe, curioso como era, não perdia uma só palavra do que falavam, embora mantivesse os olhos fechados num sono fingido.
O peão falou de um tempo que não era bonito. Que tinha passado por muito perrengue e saído ileso só de alguns. Pegou a inhambu do ombro como se pegasse um troféu, e falou mal do seu patrão, do tratamento que o patrão lhe dava, que dava aos outros lá na sua fazenda. Não que fosse homem ruim de todo — contava, resignado —, mas trabalhar para ele era o mesmo que labutar por nada.
Gustavo contou que o velho tomou ódio a ele por ter se atracado lá com a sua enteada, uma morena assim largada pelos cantos, mas bem-feita de corpo, dengosa. O velho não gostou do romance, não. Disse logo que ia capar o peão se não largasse da sua protegida. E não teve jeito, o peão teve mesmo que separar da moça. Córdobas a mandou para a capital, dizia que não confiava no gênio dela. Que mulher era tudo sem-vergonha oferecida, que logo embarrigava do peão. Então a vida de Gustavo passou a ser assim vazia, sem um dengo pra chamar de seu, sem um passatempo. Não bastasse, o patrão também começou a marca-lo. Gustavo recebia qualquer merreca se merecesse, se o trabalho fosse bem feito. Senão, que se virasse por conta. Esse era o gênio de Getúlio Córdobas, e, enquanto trabalhasse para ele, restava dançar conforme a sua música.
— Não pensava que o velho fosse assim, não — comentou o Jorge, acendendo um cigarro no beiço seco. — É bicho ruim mesmo...
— Eu também não, seu Laerte — o peão disse. — No começo ele me tratou bem, sabe, me acolheu mesmo. Só começou a apertar as coisas depois disso. Mas já tinham me falado que ia ser assim, eu que dei bobeira.
E por um tempo o silêncio baixou na estepe, cobrindo a noite de um embaraço de pena. Ninguém sabia o que dizer, nem Jorge, nem Jean, ninguém. Gustavo segurou novamente a ave morta, um olhar triste. “Esse é o primeiro prato de carne que vejo essa semana.”
De história sofrida o mundo estava cheio, e a de Gustavo não era pior nem melhor que as tantas outras. Mas Jorge pensou bem antes de dizer besteira. Não queria contendas com o vizinho Córdobas, muito menos por causa de um peão fuleiro que nem bem conhecia. Falou, embora com alguma cautela:
— Lá na minha estância a gente bem que precisa de um cabra a mais, sabe? Pra ajudar nas coisas. Mas tem que ser bom. Mexer com gado, com cavalo, saber lidar com as crias... — Jorge fez uma pausa, olhava o peão nos olhos como se o interrogasse seriamente. — Se eu oferecer o emprego, tu dá conta?
Gustavo até perdeu a cor.
Via nos olhares dos demais peões um certo brilho de complacência. Gustavo sabia, sabia, que era uma boa oportunidade. Ser caubói era tudo o que sabia ser. Então ele se levantou e agradeceu muito, muito sem jeito, mas muito feliz. Era a única coisa a fazer.
— Tá certo — disse Jorge, modesto. — Então o trabalho é teu, meu bom! Agora é acertar tudo lá com teu patrão, que não quero encrencas com a gente dele!
E aí foi que surgiu esse outro contratado dos Alcântara Laerte.
Gustavo Alves Eliseu, nome de certidão. Vaqueiro e atirador por experiência e curiosidade. Os olhos castanhos do pai. A pele morena da mãe. O corpo altivo, esguio e musculoso das tantas provações dos anos gastos no trabalho duro. Devia ter seus vinte e tantos anos, homem novo, mas já aparentava mais de trinta. E pelo volume da roupa na entreperna — Joaquim, então desperto, analisava —, tinha também um belo par de saco! Foi assim que ele simpatizou logo de cara com todos ali.
Quando raiou a luz do dia seguinte, o peão novato já pisava o capinzal com Jorge e o capataz do lado. Iam andando ali para os lados do rio muito entretidos. Conversavam sobre o serviço novo, naturalmente. Onde Gustavo ficaria, quanto receberia, o que faria, quem o ajudaria. Quando mal deram conta, estavam saindo na beira da água e o papo se estendendo mais.
Do meio dos frufrus das folhagens saiu Joabe. Havia deixado André e Joaquim dormindo lá perto da fogueira para se juntar ao patrão e os outros. Esperto que era, não gostava de perder os assuntos. Tanto que já foi entrando na conversa, brincalhão, tirando a roupa, entrando na água. Não demorou e, num golpe só, Jean também já estava sem a camisa. Depois, sem as calças. Joabe, nisso, lá no meio do rio, dava braçadas.
As roupas, peça a peça, foram ficando ali mesmo pela margem, estiradas nas pedras, nos galhos dos arbustos. Botinas, cuecas, calças, camisas. Seus donos iam assim papeando, se despindo e entrando na água, estendendo a manhã com aquela conversa animada. Era só um banho e tchau: partiriam para a fazenda. Chegariam por ali antes das dez, em tempo de pegar o almoço fumaçando pela chaminé da cozinha. E Jorge ia entretido dizendo que Gustavo devia de conhecer a sua esposa, mulher generosa, e a sua afilhada, mocinha de bom coração. Que todos lá iam trata-lo bem, que todos lá, patrões e peões, se serviam juntos à mesa.
Depois, todos já estavam na água. Os peões, sobretudo, homens desinibidos, crias rudes da solidão das roças, naquela sua completa nudez. Mas entre os homens era assim mesmo. Não havia embaraço. Não havia inibição. Jorge viu de novo Jean emergir da água, o pênis molhado balançando para os seus olhos. Grande e torto. Era o mesmo pênis grande e torto que satisfazia Janete nas suas ausências de marido? A dúvida pingava ácida no seu orgulho de homem. Mas ninguém ali parecia perceber esse seu incômodo, essa sua intimidação. Nem Jean, nem Gustavo, nem mesmo Joabe, que agora retornava do seu nado. Todos nus, grandes demais, balançando, balançando, apenas conversavam.
Os últimos a se juntarem ao grupo cá no rio foram Joaquim e André.
O jovem estudante, claro, foi chegando assim meio medroso, olhando a todos com aquela expressão de espanto e novidade. Quase não quis tirar a roupa na frente deles. Foi se arrepiando todo, de vergonha e de curiosidade, querendo até se esconder sob André. “Deixa de bobice”, o peão falava. “É tudo homem. Ninguém vai ficar olhando ‘ocê.” Mas Joaquim ia segurando a respiração nervosa no peito, o coração pulando rápido, uma vontade de ficar e outra de correr dali.
Não demoraram mais que o tempo de se despirem, e também se juntaram aos outros. Jorge, lá do seu canto, espiava a entreperna de André. Era o quarto dote entrando na água.
Passados dois minutos, Joaquim ainda lançava numa e noutra virilha aquele seu olhar de gula e espanto. Esbaldava-se, claro, mas sempre ressabiado. Sempre se empertigando, fazendo passar por indiferença aquela sua curiosidade natural de rapaz.
Era fato que não se sentia seguro o bastante para aquela exposição. Nunca antes tinha ficado assim junto de tantos homens, e homens de verdade. Rapazotes magricelas, sempre tinha os lá da universidade. Com eles, teve de se acostumar à força. Tinham sempre uma troça, uma zombaria, um apelido para botar. Joaquim era o Broinha. Era o Dá-de-mamar. No começo se importou muito com tudo isso. Era um rapaz tímido do interior e aquilo o feria. Mas com o tempo, tomou apreço. Pelo Marcondes, pelo Elísio. Pelo Joca da Educação Física. Eles com certeza tinham qualquer coisa de interessante. Joaquim, uma vez, esteve espiando os dois primeiros pelo fecho da porta enquanto se banhavam. Depois, passou a olhá-los discretamente no vestiário, se enxugando. Nunca antes tinha visto nenhum outro rapaz pelado. E além do mais, gostava dessa adrenalina, gostava de fazer isso às ocultas como se fosse invisível, como se ninguém nunca fosse pega-lo no flagra. Um dia, porém, foi pego pelo treinador de rúgbi de universidade olhando baixo para um dos seus jogadores. Foi nesse dia que botaram nele um apelido que se alastrou entre a rapaziada. Joaquim virou o Chupetinha.
Agora, ali estava ele todo receoso no meio dos caubóis do seu pai.
Até Jorge notava essa mudez sonsa do filho, aquele seu olhar correndo baixo e discreto para uma e outra pélvis, os pentelhos e pênis molhados brilhando e balançando, a conversa fresca e animada, o sol subindo pelas paredes do céu. Jorge corava de desgosto. Onde já se viu? Que baita sem-vergonhice! Um filho homem fazendo um papel desses... Não era justo. Não merecia aquilo. Mas Joaquim ignorava o ferrão do olhar do pai: os caubóis é que o detinham, que o roubavam, que o vingavam. E Joaquim ficou pensando que na vida não tinha nada melhor que um caubói assim molhado para se olhar...
O banho seguiu animado e terminou como começou. Agora não tinham outras preocupações senão a saúde da cria e o retorno à fazenda.
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Reta final, agora, para Jorge e Joaquim. Me segue lá no WATTPAD: @BlascoJesus. As novidades, eu posto, geralmente, primeiro lá.