O banheiro sempre ficava lotado de outros garotos no término das aulas. Aleph se sentia incomodado com isso, eram muitos genitais para desviar o olhar. Ele urinou rapidamente, lavou as mãos e saiu.
Fora da entrada do colégio, atravessou a rua e andou até passar por um trailer de lanches e parar próximo a um orelhão azul da Vivo. Sentiu-se tentado a comprar um pastel, mas não o fez. Se Ruan o pegasse comendo, com certeza, viria com uma de suas brincadeiras.
Devido já estar anoitecendo, as luzes dos postes estavam acesas. Alunos se cruzavam pela calçada do longo muro branco e amarelo do colégio; outros atravessavam fora da faixa. Carros, motos e bicicletas passavam de um lado a outro. Aleph quis que Ruan não demorasse a aparecer. Com seus pés em seus confortáveis tênis, ali continuou, sentindo o aroma de pastéis sendo fritos, seus polegares cavados nos bolsos frontais de sua calça. Minutos depois (que mais pareciam horas), sentia-se impaciente, aí sacou seu celular, querendo conferir se ainda estava bloqueado no zap pelo Ruan. Surpreendeu-se ao ver que havia sido desbloqueado, então achou bom e até esboçou um sorriso.
- Guarde esse celular. Quer ser roubado? - disse uma voz grave e familiar.
Foi o Ruan tendo parado atrás dele. O outro virou-se, já guardando novamente o celular.
- Se você demorasse, eu ia embora, Ruan - declarou frente a ele.
- Acabei de chamar um Uber - ele observou a tela de seu próprio aparelho. - Está chegando em cinco minutos.
Ruan não parecia feliz nem triste na presença do bolsominion.
Aleph pensou por alguns longos segundos, por fim interrogou:
- Tem certeza que quer minha companhia? - sua voz saiu um pouco hesitante.
O mais alto, e com o olhar para o céu escurecendo, respondeu:
- Meu pai hoje não vai chegar cedo em casa, vai pra um parabéns de alguém da equipe médica. Tudo bem você ficar lá comigo. Eu vou preparar o que falarei sobre os skinheads. Ah: traga botas e uma jaqueta pra você amanhã. Você ouviu a professora: um fala e entrega um resumo, enquanto o outro deve estar caracterizado - ele sorriu maldoso e completou: - Se quiser raspar a cabeça, não tenho nada contra.
- Muito engraçado, todo mundo riu - rebateu.
- Cadê seu humor? - olhava-o de lado.
- Por que escolheu falar desse grupo e não de outro? Com esse teu cabelo dava pra te transformar em um punk ou emo; Ou skatista, surfista... era só um de nós levar um skate...
- Pra ver se você tira algum ensinamento e deixa de ser eleitor do Coiso nazista e percebe o quão cruel é o racismo, a discriminação.
Aleph girou os olhos.
- Você está obcecado, leva tudo pro lado político. O Haddad até parabenizou o Bolsonaro hoje, você viu?
- Ainda não. Depois vejo. Ei, quando a gente chegar em casa, tomamos banho e faço alguma coisa pra comer, mas você vai me ajudar.
- Quero bife e batata frita - Aleph disse sem pensar.
- Voltou a comer carne? - quer saber arqueando a sobrancelha esquerda.
- Nunca deixei.
- Eu já desconfiava - falou o ruivo soltando o ar lentamente. - Desculpa, eu não ponho as mãos em cadáver de animal. Vai comer algo vegetal comigo.
- Sem chances. Então é melhor eu já levar um pastel de carne - disse ao lado dele.
- Garotos da sua idade também infartam. Abre o olho. O Uber tá vindo, não vou esperar que compre porcaria nenhuma.
- Ok. Eu peço uma pizza então.
Os dois ficaram em silêncio por mais algum tempo. Ruan mudou um pouco a postura e olhou meio inseguro para o ex.
- Escuta... - ele coçou o canto da testa. - Sobre o que você disse naquela hora, me acha mesmo feio por causa das minhas sardas? E eu pensei que fosse gamado no meu pau. Era tudo falsidade?
Aleph fitou o asfalto e pensou antes de falar:
- Você me detonou primeiro, eu apenas revidei. Só peço desculpas se me pedir antes.
- Então espere a vida inteira - falou Ruan.
- Acho melhor eu nem ir. Vai ficar implicando e me tratando assim?
Mas Ruan já estava perdido em pensamentos novamente. Olhando as primeiras estrelas surgindo no céu, o mais velho conversou:
- Meu pai vai comprar outra casa. Muito longe desta região. Nos mudaremos no começo de dezembro.
Instantaneamente, Aleph amargou com a notícia. Então opinou:
- Por conta das cobras da área militar?
- Sim - resignado, ele escorou-se no orelhão. - Você sabe, a gente evita a presença de roedores e pássaros, aparamos a grama, as janelas ficam fechadas maior parte do tempo, tem rodapés nas portas, mas... Tem um quartel atrás da nossa casa! Os bichos vem da mata e caem no nosso terreno. É foda - ele deu uma pausa. - Parei de chamar bombeiros ou o que seja. Agora eu pego uma barra de ferro ou o machado e acabo com esses bichos peçonhentos.
- Então você não é totalmente vergano. Eles não matam animais.
- Mato sem ninguém saber, não vão me punir se não verem - Ruan mudou o semblante para irritado. - Você ainda fala errado. Não é "vergano". O certo é que virei vegano. Ai, nem sei por que perco meu tempo te corrigindo.
- Porque você adora ser sabe-tudo.
- Você tá pagando cofrinho - ele observara olhando por trás de Aleph. - Por que não compra uma farda maior?
- Ei, deixa minha bunda. Cuida da tua, que nem é bunda: é a continuação da coxa. Mas até que a academia está te dando massa muscular e mais bunda, Ruan.
- Olhe pro meu corpo e chore, boy. Eu trepo com meu pau e não com outro local. Diferente de alguns.
- Cospe no prato que comeu. Minha bunda é meu patrimônio.
- Já fui convidado pra ser modelo. Meu pai não deixou porque eu tinha que sair do Brasil. Você sabe dessa história.
- Ai que menino mais vaidoso.
Como era de se esperar, o assunto voltou para a política.
- Comemorou ontem a vitória do fascista? Dormiu feliz por isso?
Mas Aleph tinha uma questão antes.
- Ei, vem cá: Me desbloqueou quando do zap?
- Hoje.
- Você nem devia ter me bloqueado. Olha, eu pensei agora, você teme que um ladrão passe e leve meu celular. Dilma e Temer deixaram a segurança pública uma maravilha! - ironizou. - É melhor mesmo todo mundo ter uma arma e deixar os bandidos receosos antes de irem assaltar. Os bandidos proliferaram com tanta gente dando mais e mais direitos e benefícios a eles.
- Se depender do Bozo, você apanha até virar hétero.
- Se depender do PT... game over pro Brasil.
- Seus argumentos são rasos como um pires. Bolsominion não pensa, só aplaude o Coiso.
- Aceita. Ontem foi "Elesim".
- Ele nunca será meu presidente. Quem votou, ou apoiou, comprou uma máquina de voltar no tempo. Entendeu?
- No tempo que não tinha tanto roubo, e tinha mais segurança e ordem? É isso?
A discussão parecia que ia prosseguir para sempre, mas Ruan se calou ao observar o fim da rua.
- É o carro do Uber ali na esquina. Vem, vamos até ele... - e o ruivo começou a andar.
Aleph não se moveu.
- Ele vai parar aqui - disse cruzando os braços.
- Tem que ser bolsominion mesmo. Caralho... - e voltou para onde estava.
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Quarto de Ruan. 19:10 PM.
- Sério mesmo que eu vou ter que ficar aqui ouvindo esse tec-tec do teclado e sendo totalmente ignorado por você?... Ruan?! Eu tô falando, olha pra mim!
Ruan suspirou irritando-se. Eles mal haviam se falado desde que tinham chegado. Cada um com seu orgulho.
- Eu tô preparando o que falarei amanhã diante da turma. Então ligue a TV ou tome um banho primeiro. Daqui a pouco termino aqui.
Aleph fez um bico entediado.
- Estou com fome.
- E eu com sede. Vai lá na cozinha, pegue um copo com água pra mim. Estou adiantando aqui porque tenho dormido tarde e acordado tarde, não posso deixar pra marcar o que vou falar em cima da hora de ir pra aula.
O novinho se empertigou e olhou para os lados receoso.
- E se tiver uma cobra aqui dentro?
- Só se for a minha cobra - Ruan apertou o pênis por cima da braguilha do jeans e sorriu de canto. - Não diz besteira. Vai lá, minion.
- Você vai comigo?
- Não.
Levantando-se, Aleph não sabia se ia ou ficava.
- Por que me trouxe aqui? Eu já sei que é pra eu levar botas e uma jaqueta - resmungou novamente sentado.
- E raspe a cabeça também.
- Vai se foder, Ruan.
- Você sabe muito bem quem é que fode quem aqui.
"Eu não vou sair daqui. Morra de sede, Ruan."
Aleph pegou o controle a seu lado e ligou a TV.
- Ainda existe essa Aracy fazendo a propaganda da iogurteira Top Therm? Ela paga mico nacional e nem sabe. Só falta ir pra porta de presídio gritar "Lula livre" - alfinetou começando a zapear até pôr num canal de desenhos.
Minutos depois (ou foram dias para Aleph?), Ruan desligou o computador e se espreguiçou. Havia acabado.
- Terminei aqui. Então bebemos água e você vai... Vai embora na hora que quiser. Meu pai costuma demorar quando sai com outros médicos - ele olhou pensativo para o outro. - A gente toma banho e fica assistindo TV - propôs Ruan sem a camisa do uniforme.
As bochechas de Aleph avermelharam.
- Tomar banho juntos, igual como fazíamos?
- Claro que não. Tem três banheiros aqui em casa.
O novinho parecia considerar a sugestão.
- Por que eu vou ficar aqui, se você não suporta "bolsominions"?
Foi a vez das bochechas de Ruan ficarem coradas.
- Eu só não quero ficar sozinho agora. E você já tá aqui.
Aleph franziu as sobrancelhas.
- Era melhor a gente ter ido lá pra casa. Você só quer que eu coma comida de ver... digo, de VEganos. Dá pra pedir uma pizza?
- Pode ser. Trouxe dinheiro? Não vou pagar com o meu.
- Sim, eu trouxe.
- Vamos lá embaixo. Vai, levanta essa bunda gorda da minha poltrona - mandou se levantando da mesinha do computador.
- Se vai continuar com essa frieza e mau humor, eu prefiro ir embora, Ruan.
- Vem logo, devoto do Coiso.
Enquanto se retiravam do quarto, Aleph, para provocar, começou a cantar uma nova versão da música Let It Be, dos Beatles.
- Assim que o Mito se recuperar e sair estaremos todos juntos aqui. O povo cantando em uníssono: Ele sim. O capitão Bolsonaro, o Mito, virá com tudo para corrigir, voltar a ter o Brasil nos trilhos e os pingos nos is... O Brasil acordou de vez e agora o bicho vai pegar pra cima de quem quis retroceder o progresso do país. Ele sim! Ele sim... Ele sim... Melhor Jair se acostumando: Ele sim!... O capitão Bolsonaro vem aí... - cantava dando passos lentos até a porta. - Ele sim, ele...
Ruan interrompeu retirando as mãos dos ouvidos:
- Meu Deus, como é que fazem isso! Uma música do Paul MacCartney! Ele sonhou com a mãe que morreu de câncer, quando ele tinha 14 anos. Disso surgiu a inspiração pra essa bela música. Que desperdício usarem ela pra homenagear o Hitler brasileiro... - lamentou quase esbarrando no outro.
Isso só serviu para atiçar o bolsominion.
- Ele sim... Ele sim... - prosseguia Aleph adentrando o corredor com Ruan.
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