O Diário
Capítulo 24 – O passado
Enquanto olho assustado, Leonardo se desloca em minha direção. Quero com todas as forças fugir, mas o Tony me pede para ter calma. O Tony sai da minha frente e Leonardo entra no quarto e me puxa consigo. Bate a porta atrás de si e a tranca. Fico parado enquanto ele caminha em minha direção, não sei o que fazer. Agora ele senta na cama e me puxa pela mão e me coloca do seu lado. Eu sou como um grande vazio.
As lágrimas descem sem que eu dê conta ou tente pará-las, nada mais importa. Leonardo soluça, decerto também chora. Não consigo olhar para ele, não consigo. Lá fora o mundo desaparece como se desse licença a nós dois: já não dá pra ouvir os sons, nem ver a luz. De repente todo o universo se resume ao quarto e a nós sentados na cama. Não consigo olhar para Leonardo.
Em toda minha vida nunca me senti tão exposto, como se a carne em meu corpo estivesse aberta, como se meu sangue jorrasse para fora de mim. Não consigo olhar para o Leonardo.
Soltou um gemido, como se aquele fosse o último pedido de socorro. Leonardo pega minha mão, mas não fala nada. Não consigo olhar para Leonardo.
Não sei dizer se se passaram dez segundos ou meia hora. Ou se lá fora o mundo sucumbiu e só resta nós dois aqui. Não consigo olhar para o Leonardo.
Todas as coisas que nos trouxeram a essa cama, todas as dores e os prazeres. Nada mais vale a pena. Tudo o que vem a minha cabeça encontra o vazio e escorre pelas minhas narinas e boca e derramam-se pelo meu corpo e eu não as sinto. Não consigo olhar para o Leonardo.
– Fê... – ele diz.
Já não importa. Já atravessamos a linha.
– Fê, por favor. – Ele diz e cai no choro, seus gemidos são altos. Nunca o vi chorar tão copiosamente. Cada gemido corta o ar e me acerta como uma punhalada. Mas mesmo assim suporto, pois não consigo olhar para o Leonardo.
– Fê, me perdoa – Ele diz em meios aos gemidos e sinto ele cair sobre suas coxas. Sinto sua mão apertar a minha mais forte, mesmo que eu tente não conseguirei soltá-la: não tenho força, sou um grande vazio.
Ele coloca a cabeça entre as pernas e chora ainda mais alto, como uma pessoa que constata a morte. Mas apesar de me virar e olhá-lo, eu não consigo enxergar o Leonardo.
As coisas continuam a rugir dentro de mim, como feras arranhando as paredes. Me falta ar, me falta um qualquer coisa de vida, que me possibilitasse quebrar a paralisia e correr dali. Ao mesmo tempo sinto que meu corpo desistiu diante do abate. Olho para o Leonardo e não consigo ver a mim mesmo.
Enquanto ele chora um filme começa a desenrolar na minha cabeça. Me lembro da cor azul do céu daquela tarde em que o vi de verdade pela primeira vez. Me lembro do roxo das flores de quaresma que presenciaram nosso amor desabrochar. Me lembro da primeira vez que nos tocamos e da primeira vez que confessamos nosso amor. De que aquilo tudo vale agora? O grande vazio devora essas memórias e me devolve -as como uma massa amorfa. Olho para o Leonardo e enxergo dor.
Finalmente dói. Finalmente sinto uma coisa corroer por dentro o que quer que tenha restado ali. E essa coisa sobe e me rouba o pouco de ar que me resta, me dá um nó na garganta e acerta em cheio minha cabeça. Olho para o Leonardo e enxergo o que?
Ficamos assim, parados e em lágrimas. Não tenho voz.
– Fê, fala alguma coisa. Por favor! – Leonardo implora e ergue sua cabeça num salto. Olho para o Leonardo e enxergo seus olhos verdes.
De repente sinto toda aquela montanha silenciosamente acumulada desabar sobre mim como se aquele olhar fosse o golpe de misericórdia da vida. Abro a boca e solto um suspiro, como se todo o pouco de mim que estivesse aqui dentro fosse finalmente tomado. Do vazio em minha cabeça as coisas começam a surgir, uma a uma. E agora já se aceleram como se estivessem em erupção. Olho para o Leonardo e enxergo o Leonardo.
Tento falar, mas não consigo vencer a resistência do meu corpo. Não sei o que sairia da minha boca, de todo modo. Não sei o que responder. Não sei nem se tenho respostas. As coisas se acumulam aqui dentro e teimam em se amontoar como se quisessem sair todas de uma vez. Temo que se conseguir abrir a boca afundarei o mundo todo e não direi nada.
Leonardo levanta sua outra mão e toca meu rosto. Sinto aquele toque como se fosse acertado por um tiro de canhão.
– Não me toque, por favor. – Deixo escapar, finalmente. Ele retira a mão enquanto mantém a outra junto com a minha.
– Fê, por favor... – Ele diz e só ouço dor.
Caio deitado de barriga para cima, como se me lançasse ao mar. Não há o que perdoar, porque não há nada mais que importe. Tento dizer isso, mas novamente as palavras não saem.
Ele também se deita e sinto a cama tremer enquanto ele soluça em choro. Ficamos assim por mais uma pequena eternidade. Sinto algo no meu âmago se despertar e vir de encontro a mim. De repente me sinto invadido por uma energia desenfreada, cuja força me permitiria partir essa cidade no meio. Talvez agora consiga falar, me esforço para dizer qualquer coisa que seja.
– Eu li sua carta ontem, pela primeira vez. – Sinto que ele prende sua respiração por uns segundos, confuso. – Só ontem descobri como abrir o cadeado.
– Então você finalmente me entende? – respondeu depois de um tempo.
– De que adianta entender alguma coisa agora? – Sinto as palavras cortarem saída de dentro de mim. – De que adianta se nada restou? – Concluo.
Leonardo fica em silêncio. Dentro de mim uma chama passa a se acender e sinto ela queimar cada um daqueles sentimentos e inflamá-los.
– De que adianta, hein, Leonardo? – Sinto minhas palavras endurecerem e agora essa chama assumiu o controle de mim – Agora nada mais importa.
Percebo que ele prende a respiração novamente e tenta engolir o choro em vão. Olho para o teto em busca de uma porta que me permitisse fugir daquilo tudo, de mim mesmo e do monstro que me consumia.
– Você é a pessoa que mais amei. – quebro novamente o silêncio – e ainda assim ninguém me fez sofrer tanto.
Sinto-o desmoronar ao meu lado, enquanto ele explode em uma nova onda de choro.
– Fê, me perdoa, por favor... – Ele diz ainda mais desesperado. E nesse momento eu fugiria daqui se tivesse forças. Explodo em choro também e sinto aquela chama submergir nas trevas.
– De que adiantaria, Leonardo? Tudo está perdido.
– Deixa eu me explicar, por favor.
Não tenho o que dizer. Fico em silêncio .
– Eu estou errado, eu sei disso. Mas tudo aconteceu muito rápido e eu não sabia o que fazer. Eu ia voltar pra casa para desfazer tudo, para me livrar desse mal entendido de uma vez por todas.
Permaneço em silêncio. Essas palavras passam por mim sem me tocar.
– Fê, por favor! – Ele se levanta e olha nos meus olhos. De novo sinto o peso do universo em meus peitos, como se o próprio Atlas tivesse trocado de lugar comigo.
– Esse noivado foi um grande erro, só o fiz porque essa mina ia ser colocada para fora de casa. Tentei de falar mil vezes, mas foi ficando cada vez mais difícil. Porque quanto mais eu te conseguia de volta, mais medo eu tinha de perder você de novo. – Finalmente passei a ouví-lo.
– Eu ia voltar para nossa cidade e por um fim nisso tudo, mas você me convidou para ficar e aquilo só me fez recuar. Eu passei o último mês pisando em ovos porque não suportaria te perder de novo.
– E ainda assim, aqui estamos. – Falo, porque apesar de não aceitar, quero machucá-lo como ele fez comigo.
– Me ouve, por favor! – Ele me pede desesperado em meio a soluços.
– Eu sou um idiota, eu sei. Mas eu nunca menti sobre meus sentimentos. – Dói reconhecer, mas eu sei que é verdade. – Eu nunca faria nada para te magoar.
– Então por que você me deixou sozinho aquele dia e não estava lá para me contar a verdade? Por que que você me deixou ouvir aquilo tudo sozinho? – Grito.
Ele me olha e novamente percebo dor em seu olhar. De novo ele explode em choro.
– Você tem razão, eu sou péssimo. Eu não te mereço. Não depois daquilo que você me contou.
Olho espantado e pergunto: – O que foi que te contei?
– Eu não consigo, desculpa!
– ME DIZ, LEONARDO. O QUE FOI QUE EU TE DISSE PRA VOCÊ FUGIR UM DIA INTEIRO DE MIM?
Ele me olha assustado e solta minha mão. Ele me olha e consigo ver em seus olhos o tamanho do desconforto.
– Eu... Eu sinto muito, Fê. Eu não deveria ter deixado o Yan ter feito aquilo com você! Eu nunca vou me perdoar! – Ele me diz enquanto me puxa e me abraça. Sinto suas lágrimas escorrerem quentes em meu ombro. Não sei o que responder, apenas retribuo ao abraço enquanto me recordo da noite em que cheguei bêbado em casa. Fiz de tudo para transar com o Leonardo assim que chegarmos, mas ele se recusou porque eu não estava em condições e aquilo seria um estupro. Me enfureci e respondi que já haviam feito isso comigo, que era bem diferente. Daí em seguida ele me fez desabafar sobre o Yan e tudo que havia acontecido.
– Eu nunca vou me perdoar – ele me diz – Eu te amo tanto e mesmo assim não te protegi! – Nesse momento eu percebo que o que o fizera se ausentar aquele dia foi a sua incapacidade de lidar com isso tudo.
– Eu não vou comentar sobre isso agora, mas eu já superei isso tudo e não é sua culpa. – Falo tentando acalmá-lo. Por algum motivo sinto vergonha de tocar nesse assunto com ele.
– Me desculpa, me desculpa, me desculpa... – Ele repete enquanto se aparta ainda mais em mim. Eu não sei o que responder. Os meus sentimentos chocam-se e nenhum deles se sobressai para me nortear.
Continuamos assim abraçados chorando por mais um tempo até eu finalmente me organizar. Preciso colocar um ponto final nisso tudo.
– Léo, eu te amo. Sempre te amei, na verdade. – falo tentando fingir ser o mais forte possível – E na verdade não há o que e perdoar, não há porque também. Nós dois nos machucamos demais quando estamos juntos. – respiro fundo e concluo – Melhor acabarmos com isso tudo. Melhor assim, não quero sofrer mais. Não quero que você sofra também. – Essas palavras doem como se eu estivesse me chicoteando.
– Não fala assim, Fê. Eu não consigo.
– A gente consegue sim. Fizemos isso tão bem esses últimos anos! – Digo e tudo grita o contrario dentro de mim. – Quando estamos longe a dor é muito menor.
Ficamos em silêncio, acho que ele concordou. Assim será melhor para nós dois. Um tempo depois decido me levantar e acabar logo com aquilo . Vou até a porta e a abro. Peço para que ele saia e ele me olha nos olhos, resignado. De novo sinto como se tivesse sido acertado com um tiro de canhão. Ele abaixa a cabeça e sai sem tentar me tocar.
Sinto um frio subir minha espinha e meu coração se acelerar. Bato a porta e me atiro na cama, choro mas já não há lágrimas. Choro seco e sinto meu peito e garganta doerem com os soluços. Sinto um desespero ao perceber que de novo voltarei a existir naquela vida miserável. Que de novo me atirarei naquelas águas paradas de onde passei tanto tempo tentando fugir. Os sentimentos confusos e conflitantes deixam de fazer barulho, sinto uma mão surgir lá do fundo e me estapear. Estou perdendo o Leonardo! Dessa vez sinto que será pra sempre!
Salto da cama e abro a porta desesperadamente. Corro pelo pátio como se minha vida dependesse daquilo. Passo pela casa e pela fonte. Caio e meu coração para.
Continua...