O invasor bárbaro – Parte I
Um ano qualquer em plena Alta Idade Média, num dos inúmeros reinos da Frância Ocidental na Europa Continental, foi quando e onde vim ao mundo como um bastardo que parecia ter vingado apenas para trazer problemas. Ninguém se preocupou em registrar exatamente a data, isso não seria de serventia alguma para ninguém. Era mais importante esconder o fato, uma vez que livrar-se do problema seria uma solução complicada. Pois, bem ou mal, metade do sangue que corria em minhas veias era real. Naqueles tempos, indispor-se com um soberano não era a melhor política. Mesmo que seus filhos homens se valessem das mulheres como melhor lhes aprouvesse, seria arriscado bater às portas do castelo e exigir uma retratação, ou fazer cobranças ao rei. Sem as provas contundentes seria impossível pleitear qualquer reparação do prejuízo e, a palavra de um nobre sempre haveria de prevalecer sobre a de um vassalo, mesmo que este fosse um próspero mercador. Ademais, quem olhasse para o rebento, frágil e mirrado, juraria que o problema se resolveria por si só, antes mesmo de ele completar um ou dois anos de vida. Portanto, não valeria à pena criar confusão por algo de tamanha insignificância.
Contudo, erraram os médicos e sábios consultados, erraram as videntes e as bruxas, quando os anos se passavam e o problema corria pelos corredores secundários e mal iluminados do castelo por onde deveria circular apenas a criadagem, dando asas aos folguedos infantis como qualquer outra criança. As áreas nobres do castelo me foram terminantemente proibidas, sob ameaça de punição para os que se descuidassem de me impedir, bem como para mim mesmo, se não obedecesse cegamente ao que me determinaram. A proibição logo exerceu mais fascínio sobre mim do que a própria curiosidade sobre o mundo existente nos recintos que me eram proibidos. Era na calada da noite, embora cheio de pavor, que eu fugia da vigilância dos empregados cansados e partia rumo a exploração do desconhecido. Foi assim, que aos nove anos, eu era tão ou mais versado, no que existia em cada canto do castelo, do que os próprios homens que o ergueram.
Foi por volta dessa fase que me entregaram aos cuidados do velho Clódio, um ex-general que contava com a mais irrestrita confiança do soberano, encarregando-o de disciplinar meu gênio demasiadamente curioso e expansivo. Clódio não era velho, embora eu o visse sob esse prisma muito provavelmente pela minha tenra idade, ainda não chegara aos cinquenta, mas um ferimento em sua perna direita durante uma batalha havia durado muito para cicatrizar e deixou-o mancando, além de ter lhe extraído boa parte da saúde. Por isso, ele me parecia velho em relação aos soldados vigorosos que entravam e saíam da cozinha e de seus alojamentos sempre esbanjando energia. Também é certo que Clódio não era nenhum inválido. Ainda lhe restava muita daquela energia física com a qual ele comandava suas tropas, porém a maior parte de sua energia estava concentrada na mente, pois ele parecia ter todas as respostas às minhas perguntas. Eu o bombardeava com centenas delas por dia e, me serviam de termômetro para saber como andava seu humor. Se ele as respondesse com explanações longas eu sabia que tudo estava bem. Já quando as respostas eram curtas ou vinham com um rosnado, era bom deixar a curiosidade para uma ocasião mais propícia, E, quando, ao invés da resposta, apenas um olhar aniquilador pairava na minha direção, era sinal de que todo o cuidado para não transgredir alguma regra fosse fielmente cumprido. Apesar do seu jeito reservado, eu havia me afeiçoado a ele. Eram poucas as pessoas no castelo a quem eu concedia esse privilégio, não porque estivesse em posição para agir dessa maneira, mas porque tinha medo de confiar nas pessoas. Eu sempre me enganava a respeito delas. Enquanto minha certeza sobre ter sua atenção ou seu afeto era tão real quanto o sol suceder à lua, repentinamente percebia que isso só acontecia por alguma motivação ou interesse pessoal delas e que, tão logo notassem que aquela parte do sangue real que corria nas minhas veias não era capaz de ajudar nem a mim mesmo, me desprezavam como desprezavam os ratos que corriam pelas sombras. A segunda pessoa de quem eu mais gostava era Mabel, a chefe da cozinha. Desde quando percebi que era capaz de interagir com as pessoas, isso muito antes de pronunciar minha primeira palavra, era nas feições dela que eu encontrava a solução para os meus desconfortos. Também não tenho dúvida de que eram os meus olhos negros como o betume contrastando com a pele branca como a neve que despertavam naquela mulher seus mais puros sentimentos. Logo aprendi como explorá-los, rondando pela cozinha, fingindo estar entediado, elogiando o perfume que vinha das panelas ou fazendo um comentário qualquer. Ela prontamente se propunha a me oferecer alguma guloseima, como se eu fosse o mais sofrido dos indigentes. Com o tempo ela foi se dando conta da minha artimanha, mas não parou de me presentear com seus quitutes fora do horário das refeições, apenas fingia ralhar comigo ao ver que eu estava abastecido, tocando-me para fora de seu santuário.
Além de Clódio e Mabel, eu contava com a amizade de Ormus, filho do atual general da guarda do castelo, com quem brincava nas poucas horas livres em que Clódio não se ocupava da minha disciplina e ensinamentos para me transformar num fiel súdito que futuramente seria engajado nas tropas reais. Ormus, aos treze anos, se incumbia de me levar ao caminho oposto em que Clódio me guiava, arquitetando todo tipo de travessuras que sua mente astuta era capaz de elaborar. Eu o idolatrava, não só por me mostrar como burlar a vigilância dos adultos, mas por sua tenacidade e coragem que vinham de seu corpo atlético e de sua força física. Quem também contava com minha confiança e amizade devota era Tobata, igualmente filha de um dos conselheiros do rei, com livre acesso às questões palacianas. Daí a confiança com que Tobata também circulava pelo castelo e arredores sem que ninguém a incomodasse. Ela estava com doze anos, seu jeito destemido, seus cabelos caindo pelos ombros, uma expressão convincente de enfezamento que propositalmente colocava na cara para intimidar as outras crianças, inclusive os outros netos do rei, me faziam venerá-la. Mesmo ela tendo algumas vezes usado da mesma intimidação para comigo e, até me dado algumas surras como se fosse um garoto, quando discordávamos nalguma questão, não me fizeram deixar de sentir um carinho todo especial por sua pessoa. Ela ficava lisonjeada com os pequenos agrados que eu lhe fazia, ou com alguns beijos que plantava em suas bochechas quase sempre afogueadas. Nessas ocasiões ela me recriminava e dizia que eu era muito abusado, mas não escondia o prazer que isso lhe causava.
Apesar de terem personalidades tão distintas, Ormus e Tobata tinham na minha amizade um elo em comum, que talvez jamais existisse sem a minha presença. Formávamos um trio que tanto os serviçais quanto nossos preceptores temiam, pela capacidade que tínhamos de nos meter em encrencas e, por conseguinte, envolvê-los nelas também. Conquanto minha diversão ao lado de Ormus se concentrava em disputas de todo tipo, onde ele infalivelmente levava a melhor, especialmente quando nos imaginávamos guerreiros destemidos a lutar com pedaços de pau ou galhos que encontrávamos caídos nas pradarias e que nos serviam de espadas. Minhas incursões por essas mesmas pradarias durante o verão em companhia de Tobata, se resumiam em longas conversas, passeios onde eu ousava pegar em sua mão enquanto ela fingia estar distraída e não notar meu atrevimento, e incursões pelas galerias do castelo motivadas pela mesma curiosidade em comum.
- Não sei o que de tão interessante você vê naquela garota boba! – disse-me Ormus, num dia em que o deixei esperando sem comparecer a um encontro que havíamos programado.
- Ela não é boba, é mais inteligente do que você! – devolvi, porque estava cansado daquela implicância que ele tinha em relação a ela.
- Ela te parece inteligente por que você é o sujeito mais burro que eu conheço! – revidou ele, ofendido.
- Burro é você! – exclamei, cerrando os punhos e desafiando-o para a briga. Ele me ignorou completamente, o que tinha o poder de me deixar ainda mais zangado, pois naquele desprezo vinha implícita a minha incapacidade de vencê-lo numa briga.
Sua principal diversão consistia em me desafiar, sempre alegando que eu era um covarde, quando ficava a conjecturar quais as consequências daquilo que ele me propunha virem a recair sobre mim. A raiva nessas horas já havia me mostrado dezenas de vezes ser má conselheira e, ter me colocado em algumas boas enrascadas que acabavam culminando em castigos que o Clódio me impunha. Mesmo assim, bastava ele me chamar de covarde para eu querer provar o contrário, e agir conforme ele queria. Numa dessas ocasiões, sem o querer, ele fez com que minha vida dentro do castelo sofresse uma guinada inesperada.
Estávamos eu, Tobata, outras crianças e Ormus trepados numa macieira no pátio defronte à cozinha, checando quais frutas já estavam no ponto de serem colhidas, quando ele me lançou o desafio.
- Se você não fosse tão covarde, eu ia te propor uma disputa. – começou ele, fazendo com que os demais logo se interessassem pelo que estava por vir.
- Não sou covarde! Vou afundar o seu nariz se você repetir isso! – a presença dos outros tornava ainda mais humilhante a minha posição, por isso a bravata de ameaça-lo com aquilo que estava acima das minhas condições servia tão somente para provar aos outros que sua opinião estava errada.
- Então prove, seu covarde! – retrucou, sabendo que estava me tirando do sério. – Vamos ver quem é o primeiro a trazer até aqui, debaixo desta macieira, até o final da tarde, algum objeto que esteja na sala onde o rei despacha com os conselheiros.
- Isso é loucura! Se forem apanhados vão levar uma surra que jamais esquecerão! – exclamou um dos garotos, expressando o que ia no pensamento de todos.
- Não aceite essa provocação, Hórus! A única coisa que o Ormus quer com isso é colocá-lo em maus lençóis, uma vez que ele próprio não teria coragem para tanto. – afirmou Tobata.
- Isso não é assunto para uma garota! Você nem deveria estar aqui participando da nossa conversa. – retrucou Ormus, pouco antes de a mão fechada da Tobata acertá-lo em cheio no meio da cara, deixando a molecada perplexa.
- Não é você quem vai me dizer onde é meu lugar! – devolveu ela, sob minha veneranda admiração, por ter feito exatamente o que eu gostaria de ter feito.
- Só não te mostro onde é seu lugar porque me disseram que não se bate numa mulher. – respondeu o Ormus, humilhado.
- E então moleque, vai aceitar o desafio ou vai se juntar a essa garota e provar que não passa de um covarde? – desafiou, afastando-se do alcance da Tobata por medida de precaução.
- Aceito! Se você aparecer com as mãos vazias no final da tarde, o covarde vai ser você, todos estão de prova! – lancei na cara dele, pois nessa questão eu sabia que a ousadia dele não chegava aos pés da minha.
Fiquei o restante do dia elaborando planos de como entrar naquela sala, surripiar um objeto qualquer e sair dali sem ser apanhado por ninguém, uma vez que o rei passava boa parte do dia reunido e despachando com os conselheiros. Contrariando todas as recomendações, esquivei-me pelos corredores proibidos a fim de descobrir uma brecha na vigilância que me permitisse alcançar meu objetivo. O dia parecia estar especialmente tumultuado, pois o entra e sai naquela sala parecia não ter fim. Como não vi o Ormus em nenhuma das ocasiões em que percorri aqueles corredores, deduzi que ele também não conseguiria tirar algo dali. O sol já começara a se pôr no horizonte, quando finalmente a oportunidade surgiu. Os dois últimos conselheiros que estavam em companhia do rei deixaram a sala juntamente com ele. Era chegada a hora de eu provar que nunca foi covarde. Empurrei a pesada porta apenas o suficiente para meu corpo se esgueirar pela abertura. Numa ponta da mesa em torno da qual o conselho se reunia, reluzia uma pequena adaga incrustada com pedras vermelhas que servia para quebrar os lacres das correspondências que chegavam ao castelo. Era a minha chance. Corri até a mesa, minha mão se fechou em torno do metal frio e eu o enfiei sob minhas vestes. Tão rápido quanto um raio, eu saí para o corredor tentando empreender a fuga até o pátio, e mostrar a todos a façanha que provava a minha coragem. Mal havia percorrido alguns metros quando ouvi passos vindo na minha direção, não eram passos de apenas uma pessoa, mas de, no mínimo, três ou quatro, o que a conversa entre eles parecia comprovar. Eu estava perdido, até meus olhos de darem conta de que mais uns passos adiante, do outro lado do corredor, uma porta parecia ser a minha salvação. Não havia tempo para me lembrar que eram os aposentos onde a rainha ficava boa parte das tardes em companhia de outras damas do castelo, pois os passos estavam prestes a dar de cara comigo. Da mesma maneira sorrateira, empurrei a porta e me esgueirei pela fresta estreita, fechando-a imediatamente após a minha passagem, a tempo de ainda ver que os passos com que daria de cara eram do pai do Ormus e outros homens. Eu estava tão nervoso, com o coração prestes a sair pela boca, que inspirei o mais profundo que pude, ainda agarrado a maçaneta para não desmaiar de tanta agitação.
- O que faz aqui? – a voz que me inquiria pelas costas era a da própria rainha. Por alguns segundos pensei que fosse desmaiar de susto, ou pior, molhar as calças de tão nervoso. – Quem é você? – emendou ela, antes que conseguisse me restabelecer. Mas, não demorou para ela me reconhecer, o fruto da impetuosidade desmedida de seu filho mais velho.
Ela sabia da minha existência, mas aquela nódoa na imagem do futuro rei não deveria ser motivo de preocupação, contanto que permanecesse longe das vistas da corte e de boatos maliciosos. Eu a havia visto não mais do meia dúzia de vezes e, mesmo assim, à distância, durante todos esses anos.
- Aproxime-se! – só fiquei imaginando como fazer isso, se minhas pernas se recusavam a se mover. Ela ficou me encarando como se procurasse pelos traços do filho naquele rosto apavorado que tinha diante de si. – Ande! Venha até aqui. – repetiu ela. Eu quis fugir pela porta, mas seria fatalmente pego pelo general. Avaliei por uns instantes qual seria o menor risco e, cheguei à conclusão que obedecê-la talvez fosse o mais sensato. Quase tropecei nos meus próprios pés até chegar a uma distância segura da poltrona onde ela estava sentada.
- Hórus, não é? Esse é o seu nome, não é mesmo? – perguntou ela.
- Sim, majestade. – eu mal conseguia ouvir minha própria voz.
- Você está crescendo. O que faz aqui? – questionou. Era preciso inventar algo urgentemente para justificar minha presença onde não deveria estar e salvar a minha pele.
- Fui levar algumas velas para a sala do conselho. – menti, torcendo para ela acreditar. Ela não acreditou, mas não deixou transparecer.
- Sente-se nesta poltrona! – ordenou. Isso estava indo longe demais, se o Clódio soubesse que eu havia me sentado ao lado da rainha, me esfolava vivo.
- Acho melhor não, majestade. – balbuciei trêmulo.
- Quem acha ou não alguma coisa por aqui sou eu. Sente-se! – outra vez entre a cruz e a espada. Em breve será uma delas que vai atravessá-lo como forma de punir sua desobediência e seu atrevimento, pensei comigo. Mas fiz o que ela mandou. – Gosta de biscoitos de gengibre? – perguntou, abrandando a voz. Só então me dei conta deles e, de um bule por cujo bico saia um vapor dançando pelo ar. Eram meus favoritos, eu costumava ficar de plantão próximo à cozinha toda vez que sentia o cheiro deles assando no forno, só para aparecer como quem não quer nada e surrupiar alguns ainda do tabuleiro quente. Mas ela não ia querer saber disso.
- Sim. – respondi lacônico.
- Então pegue alguns. – devolveu ela. Minha mão tremia tanto que, por pouco, o biscoito não me escapa e cai no chão. Fiquei sem saber se podia comê-lo na presença dela, ou se deveria mantê-lo nas mãos, e só comer depois de conseguir fugir daquele sufoco.
Quando me levantei para pegar o biscoito fiquei tão próximo dela que sua mão me alcançou. Os dedos finos e delicados exploraram meu rosto, obviamente à procura de semelhanças com o filho.
- Você é um belo rapaz! – exclamou ela, havia até um sorriso por trás dos olhos vivos que me fitavam. – O que faz para passar o dia? – perguntou. Furto coisas para provar que sou corajoso, era algo que efetivamente não podia responder.
- Sigo os ensinamentos do Clódio. – respondi, por pura falta de opção.
- Não sei o que aquele homem pode ensinar a uma criança. Pelo que vejo ele não está se saindo bem nessa missão, ou será que você não está aprendendo nada. – de repente, ela estava outra vez tão distante como sempre esteve.
- Deve ser culpa minha, pois ele é um bom tutor. – respondi, contando com o fato de que, ao tê-lo elogiado junto a ela, meu castigo fosse ser mais brando. Ela esboçou o primeiro sorriso.
- Ao menos a ser grato você aprendeu. – afirmou ela. – Mas, vejo que há muito a te ensinar, e não será o Clódio a conseguir isso. – aquelas palavras já estavam plantando novamente o terror no meu peito. – Você virá todas as tardes a esta sala para receber ensinamentos. Vamos ver se conseguimos que se torne um homem menos selvagem. – aquilo não podia ser verdade. Não podia estar acontecendo comigo. Como é que eu ia explicar ao Clódio que a rainha também ia se incumbir da minha educação. Essa noite mesmo, quando fosse contar o que tinha feito durante o dia, antes de me deitar no mesmo quarto que dividia com ele, seria um homem morto. Eu até já podia sentir suas mãos vigorosas ao redor do meu pescoço, me esganando até a morte. Pois, essa era a única maneira de explicar a repentina falta de ar que estava sentindo.
Quando ela me dispensou, tomei o cuidado para não ser visto saindo de sua sala, pois a notícia chegaria aos ouvidos do Clódio antes mesmo de eu alcançar a cozinha. Eu cheguei lá pálido como um defunto.
- O que houve com você? Por que está com essa cara desbotada? Andou se metendo em confusão? – questionou a Mabel, assim que me viu chegando quase a correr. O mais interessante, era que bastava um adulto por olhos em mim para deduzir, não sei de onde, que eu havia aprontado alguma. Não lhe dei resposta, apressando-me a chegar ao pé da macieira.
Os garotos já estavam todos lá, formando um círculo, inclusive o Ormus, exceto a Tobata. Pelas caras deles pude ver que só haviam se reunido ali para constatar o meu fracasso, e tripudiar sobre ele. Saquei a adaga da cintura e deixei cair aos pés deles. Olhos se arregalaram e fitaram incrédulos ora o objeto, ora a cara abestalhada do Ormus.
- O que você trouxe? – perguntei a ele, deixando-o ainda mais constrangido diante dos garotos.
- Você me atrapalhou indo até lá e colocando os guardas em alerta. – respondeu ele, tentando se livrar da humilhação.
- Você nunca esteve lá. Não percorreu um único corredor para chegar até a sala, pois eu o teria visto. – revelei, para que soubessem que ele estava mentindo. – Agora me diga quem é o covarde aqui? – desafiei. Os garotos me ovacionaram, enquanto ele digeria o vexame.
Ofendido, ele ficou sem falar comigo por alguns dias. Os mesmos que levei para me livrar das marcas que o cinturão do Clódio deixou nas minhas nádegas, depois de ficar sabendo que eu tinha ido parar na sala e na presença da rainha sem o consentimento dele.
Durante os dias em que estivemos brigados, eu passei todo o meu tempo livre passeando com a Tobata. Contei a ela tudo o que tinha acontecido, e que agora estaria mais atarefado com o compromisso diário com a rainha. Ela não disse se tinha achado aquilo bom ou ruim, apenas sacudiu os ombros, como se o assunto não lhe dissesse respeito.
- Vamos ter menos tempo para ficar juntos. – afirmei, esperando que isso arrancasse alguma posição dela.
- E daí? Todos nós temos compromissos. Por que está reclamando dos seus? – devolveu ela, apesar de eu ter notado que ela ficara injuriada tanto com a situação, quanto com o Ormus, que havia me metido nessa.
- Pensei que gostasse da minha companhia e, das nossas conversas. – retruquei.
- Se não tenho nada melhor a fazer até que servem.
- Por que está tão mau humorada? Aconteceu alguma coisa com você? Está doente? – questionei, por que ela não costumava ser tão ranzinza.
- Não aconteceu nada garoto! – exclamou zangada.
Pouco depois, quando estávamos sentados sobre a ponte que cruzava o curso d’água que circundava o castelo, jogando pedrinhas na água para ver quem acertava nas folhas de bétulas trazidas pelo fluxo, notei que havia sangue escorrendo onde ela estava sentada.
- Você está sangrando! Está machucada! – exclamei apavorado.
Ela olhou para o chão onde a terra ia absorvendo o sangue que saia de algum lugar misterioso entre suas pernas.
- Deixa de ser tonto, garoto! Era só o que me faltava, ter a minha primeira vez na frente desse fedelho! – exclamou ela, ríspida, não só comigo, mas com a situação.
- Que primeira vez? Do que você está falando? E, que culpa tenho eu? – eu estava mais perdido do que nunca.
- Minha mãe já havia me prevenido, mas não disse que poderia ser rápido. – disse ela, não sei para quem, pois certamente não foi para mim.
- Prevenido do que? Você está me deixando confuso. Não fala coisa com coisa! – retruquei.
- Você é mesmo um criançola tonto e burro! Acabo de virar mulher, infelizmente bem na sua frente. Desgraças nunca vem sem companhia! – desabafou ela, embora eu ainda não estivesse entendendo nada daquilo.
Caí na besteira de contar ao Clódio, durante o jantar, todo aquele mistério. Ele não só me deu uma carraspana, como me acertou uma bordoada que deixou meu ouvido zumbindo e, me expulsou da mesa, antes mesmo de eu ter conseguido comer a costeleta de porco assada que tinha deixado para o final, só para me deliciar com ela. Saí batendo o pé, rumo ao meu quarto, revoltado com o mundo, sem saber porque tudo no final das contas acabava sobrando nas minhas costas.
Eu ainda soluçava com a cara enfiada no travesseiro quando o Clódio entrou no quarto. Levou um tempo até ele se sentar na beirada da minha cama e colocar sua mão sobre a minha cabeça. Era assim que ele se desculpava quando tinha sido severo demais comigo, ou quando tinha me imputado uma culpa que eu não tinha.
- Vai ficar a noite toda chorando aí? Se não me deixar dormir, vou deixa-lo no corredor. – sua voz tinha aquele tom reconciliador.
- Nunca sei por que estou apanhando! – exclamei, choramingando.
- Noventa por cento das vezes sabe, sim senhor! Os outros dez por cento é para que se lembre de não fazer besteiras.
- Que besteira eu fiz? Se só contei o que aconteceu com a Tobata. E eu nem sei o que foi que aconteceu. – retruquei magoado.
- Sente-se e me ouça! – obedeci de imediato, pois a última coisa que eu queria era sentir sua mão pesada mais uma vez naquela noite. – A Tobata já não é mais uma criança, como você. – começou ele. Eu queria reiterar que não era uma criança, mas dadas as condições, era bom não abusar. – Pois bem! Meninas deixam de ser criança e se transformam em mulher e, no dia em que isso acontece, ao contrário dos meninos onde não existe um dia certo para isso, elas têm um sangramento, indicando que dali em diante são mulheres. – Tudo me soava tão estranho, essa história parecia complicada demais. Toda vez quando ele não queria me contar alguma coisa, enveredava por esse tipo de história sem pé nem cabeça. – Entendeu? – concluiu.
- Entendi! – eu não havia entendido nada mas, mais uma vez, era melhor concordar do que ter que ajustar contas.
No dia seguinte, enquanto tomava meu café em companhia da Mabel na cozinha já movimentada para os preparativos do almoço, pensei em lhe perguntar como é que uma menina se transforma em mulher, uma vez que ela devia saber muito bem como isso acontecia. Porém, talvez fosse mais inteligente esperar mais um pouco e ver se eu não descobriria isso por conta própria, sem correr o risco de levar outros tapas.
A curiosidade insatisfeita, no entanto, me moveu a perguntar ao Ormus, se ele sabia como uma menina se transformava em mulher.
- Que pergunta besta! Ora, ela já nasce mulher assim como um menino já nasce homem, basta esperar os anos passarem. – respondeu ele, como se eu fosse o mais tolo dos seres.
Foi aí que descobri que estava diante de um mistério que nem ele sabia, até aquele momento, existir. Eu estava em vantagem em relação a ele, e isso me deixou todo faceiro. Eu podia não ter chegado ao final daquele mistério, mas ele nem chegara a suspeitar de sua existência.
- Que cara abobada é essa? – perguntou, quando meu sorriso de triunfo já iluminava meu rosto.
- Abobado é você, que nem entende de um assunto tão simples assim! – devolvi, sarcástico.
- Se você quer saber como meninas e meninos se transformam em adultos, eu vou te mostrar. – afirmou, baixando as calças e me mostrando sua rola cabeçuda brotando de um tufo de pelos escuros que cresciam entre suas pernas também peludas. Meus olhos se arregalaram para aquele conjunto ao mesmo tempo vexatório e incrivelmente lindo. – Aposto que você não tem nada no meio dessas pernas a não ser uma coisinha por onde consegue mijar. – depreciou-me
- Nojento! Eu odeio você! – berrei, começando a chorar e a sair de perto dele. Era difícil entender porque ele conseguia me magoar tanto. Levei dias vendo aquela imagem se formar diante dos meus olhos, a primeira pica de um homem que eu via assim ao natural, sem barreiras, sem disfarces. Fiquei imaginando se todos os homens tinham algo tão belo entre as pernas, enquanto só eu tinha um pintinho pelado e sem graça. Desde aquele dia, tornou-se uma fixação observar os volumes dos homens dentro das calças, criando imagens a partir do tamanho do volume que eu via.
As tardes passadas ao lado da rainha e, de algumas preceptoras que também educavam os outros netos, os verdadeiros, não se mostraram tão ruins quanto eu havia imaginado. Não eram apenas os biscoitos cheirosos e uma variedade de infusões que estavam a minha disposição que tornavam aquelas tardes agradáveis. Quando consegui formar, sozinho, as palavras que queria juntando aquela porção de letras que haviam me mostrado, descobri que estava diante de um mundo que não tinha tamanho. Eram raras as pessoas, naqueles dias, que sabiam fazer o que eu estava aprendendo, alguns monges e abades, alguns nobres e, alguns preceptores eram os únicos letrados capazes de saber o que continham os manuscritos que se encontravam num grande salão do castelo iluminado por vidraças coloridas que mudavam o tom dos objetos e da mobília conforme o sol caminhava. Nem mesmo o Clódio sabia muito bem como juntar as letras corretamente. No dia em que mostrei a ele como se fazia, ele passou a mão nos meus cabelos e disse que eu ainda podia ser um grande homem.
Crescer não era um privilégio exclusivo do Ormus e da Tobata. Na manhã em que acordei e na qual completava dezoito anos, por que o Clódio se encarregou de ficar contando os anos quando ninguém dava importância para isso, eu fui recebido na cozinha com um bolo, o meu favorito, preparado sob a supervisão da Mabel.
- Parabéns! Você já é um homem feito agora. – afirmou ela ao me abraçar, embora eu não sentisse nenhuma diferença em relação ao dia anterior. Também foi ela quem se encarregou de espalhar a novidade entre as pessoas com quem eu me relacionava por trás daquelas muralhas.
O Ormus tinha ouvido o elogio da Mabel e, desde então, ensaiava algo para me provocar. Deixou para fazê-lo quando estávamos apenas os dois, na galeria das armas, recolhendo e guardando as espadas, depois de limpa-las, ao fim do treinamento dos soldados. Ele se aproximou e se pôs em guarda me chamando para o duelo. Éramos proibidos de brincar com as espadas que constituíam parte do armamento do castelo. Mas, eu e ele ainda disputávamos qualquer coisa, bastando para isso que um desafiasse o outro.
- Deixe de brincadeira! Se teu pai nos pegar brincando com essas armas, vamos passar dias fazendo serviços escravos. – argumentei.
- Não é você que virou homem? Onde está a sua coragem? – questionou, sempre tocando no meu calcanhar de Aquiles.
- Não pense que vou cair na sua armadilha! Se quiser, lute com as paredes. Combinei um passeio com a Tobata, ao menos a conversa dela é mais inteligente que a sua. – revidei, deixando-o sem oponente.
- Isso, vá passear feito uma mulherzinha, colher flores no campo. Você gosta tanto da companhia das mulheres porque se parece com uma delas. Fala baixinho e com timidez, dá passinhos feito uma gazela e fica olhando para todos os soldados como se quisesse que eles o devorassem. – afirmou.
- Vou te mostrar quem é mulherzinha, seu asno!
Parti para cima dele com os punhos cerrados desferindo um soco atrás do outro. Quando o primeiro mais violento o acertou, ele ficou possesso e começou a revidar. Em pouco tempo, rolávamos pelo chão de pedras da sala das armas feito dois cães de rinha. Crescer não significou para mim o mesmo que para ele. Meu físico não chegava aos pés do dele, nem na aparência, nem no vigor da musculatura, mas isso não me impediu de querer provar de uma vez por todas, que ele não era superior a mim. Quando mais eu batia e percebia que meus socos praticamente não tinham efeito algum sobre aquele corpo, mais furioso eu ficava. Ele quase que só se esquivava dos meus punhos, mas quando me acertava, eu sentia duramente o golpe. Nossas roupas iam se transformando em trapos que teimavam em ficar pendurados aos nossos corpos, ora desnudando aqui, ora acolá. Também nisso eu estava em desvantagem, pois minha camisa já não cobria mais nada e, minha calça o suficiente para não atentar ao pudor. Em dado momento, ele deitado sobre mim, ele sentiu a pele das minhas coxas preenchendo suas mãos, quente e lisinha feito um pêssego. Não sei porque o olhar dele me intimidou naquele instante em que nos encaramos, suados e afogueados pela luta. Ambas as mãos arrancaram minha calça e avançaram sobre minhas nádegas. Ele se preparava para anunciar a sua vitória quando ergui minha mão e quis leva-la ao seu rosto provocador, ele a interceptou no meio do caminho e acertou meu nariz, que começou a sangrar. Tudo o que meus punhos não tinham conseguido, meu olhar apavorado e o sangue cobrindo meu rosto alcançaram de imediato. Ele parou, sem saber o que fazer, arrependido daquele soco, sentindo a culpa lhe invadindo a alma.
- Besta! Cavalo! Você é o sujeito mais estúpido que eu conheço! – esbravejei, tentando conter a hemorragia com a camisa esfarrapada.
- Eu não queria te machucar! – exclamou, impotente e sem saber como agir.
- Então por que me bateu?
- Eu só me defendi! – se pudesse, teria acrescentado que teria deixado eu o acertar só para não ver meu rosto naquele estado.
- Nunca mais quero ver a sua cara! Está entendendo, nunca mais! – Eu já não sabia se minha fúria tinha origem naquele soco ou, se naquelas mãos que ainda seguravam minha bunda como se eu fosse sua propriedade. Ele também demorou a perceber que ainda tinha as mãos onde não devia e, mais ainda, que rolar pelo chão enroscado ao meu corpo quase nu tinha lhe provocado uma ereção.
Passaram-se semanas sem nos encontrarmos. Pedi ao Clódio que me arranjasse tarefas onde não teria a oportunidade de encontrar-me com o Ormus. Ele já estava habituado aos nossos desentendimentos e atendeu meu pedido sem fazer questionamentos. As tardes estavam reservadas para as lições da rainha, portanto, ali estaria resguardado de um encontro indesejado. Na verdade, circulei o mínimo possível pelo castelo e arredores, tudo para me poupar de uma situação embaraçosa. Até as refeições eu deixava para fazer quando tinha a certeza de que ninguém entraria na cozinha. Foi lá que acabei por encontrar a Tobata. Foi ela quem efetivamente se plantara lá à minha espera.
- Você e o Ormus tiveram outra daquelas suas discussões infantis? – perguntou, mesmo constatando que eu não estava a fim de conversar.
- Não quero tocar nesse assunto! Seria um grande favor se você não mencionasse o nome daquele sujeito na minha presença. – respondi.
- Vocês são duas crianças! Sempre entrando em disputas que acabam em brigas. Isso podia fazer algum sentido a alguns anos atrás, mas já se tornou cansativo agora que são adultos. – retrucou ela.
- Nunca mais quero ver a cara daquele sujeito! Fique calada se não tiver outro assunto. – revidei.
- Você já disse isso centenas de vezes, depois fazem as pazes até que ele te desafie para a próxima disputa. Você cai feito um patinho no jogo dele, aceita o desafio que acaba em discussão. É um ciclo vicioso. Se vocês dois não fossem homens eu diria que estão apaixonados, pois casais costumam agir dessa maneira. Afirmou.
- Chega! Não vou ficar ouvindo as suas asneiras! – exclamei furioso. Onde já se viu, eu, mesmo que fosse mulher e o Ormus o único homem sobre a face da terra, jamais me apaixonaria por aquele cretino, prepotente e estúpido. Larguei meu prato sobre a mesa sem ter concluído a refeição e deixei-a falando sozinha.
Minha reclusão voluntária, o mau humor e longos períodos em silêncio também começaram a incomodar o Clódio.
- O que anda acontecendo com você? Não desaparece mais por longas horas sem que saibam do seu paradeiro, está com essa língua parada dentro da boca e parece que tomou vinagre pela expressão dessa cara. – observou.
- Não é nada!
- Conheço-o como a palma da minha mão, há semanas está quieto pelos cantos, não me venha dizer que não há nada porque eu sei que há. – era difícil enganá-lo, na verdade, quase impossível.
- Não quero falar sobre isso. – já que sabe que há alguma coisa, então ao menos me poupe de fazer relatos, pensei.
- Conversei com o Ormus e, adivinhe, ele está com essa mesma cara. Não é preciso ser nenhum gênio para saber que andaram se estranhando novamente. Quando é que vão deixar essas molecagens de lado? – às vezes essa capacidade que ele tinha de se meter na minha vida me tirava do sério. Bastava eu lhe negar uma informação para ele sair vasculhando até encontrar o motivo do meu comportamento.
- Aquele sujeito é um cretino com quem nunca mais quero ter o desprazer de cruzar! – exclamei. O Clódio riu, sem se preocupar em disfarçar a comicidade da situação.
- Vocês dois são um caso de amor mal resolvido! – afirmou zombeteiro.
- Me deixe em paz! Não estou para ouvir suas piadas. – ele riu mais uma vez.
Eu fiquei desconcentrado durante toda tarde. As preceptoras chamaram minha atenção por diversas vezes. Até a rainha me deu uma bronca, quando percebeu que eu não tinha prestado atenção em suas palavras. Eu só tentava imaginar porque as pessoas achavam que o Ormus e eu podíamos ter uma relação tão íntima e forte que aventavam possibilidades ridículas e usavam termos como – apaixonados e caso de amor – para se referir a ela. Eu o odiava, sempre o odiei.
A costa norte do Império Franco havia sido fortificada pelo imperador Carlos Magno depois que vikings empreenderam diversas invasões em cidades das ilhas britânicas. Mesmo assim, cerca de uma década após dominarem diversas cidades, as incursões começaram a avançar sobre o território da Frância Ocidental. Os vikings vindos da Escandinávia começaram a se apossar do território em lutas sangrentas, visando obter de maneira fácil, grandes somas de riqueza. As aldeias e cidades pouco protegidas aliadas aos mosteiros e abadias onde se concentrava boa parte da riqueza foram alvos fáceis de conquistar. Os saques violentos deixaram o Império Franco apavorado. A nobreza passou a subornar os invasores, dando-lhes ouro com a promessa de partirem, mas logo outras levas bem armadas, voltavam exigindo mais pagamentos, o chamado Danegeld. Cansados e espoliados pelos vikings, os nobres começaram a esboçar uma resistência, unindo seus exércitos na tentativa de barrar os invasores. Não foi diferente no castelo, onde os homens passaram a receber mais intensivamente treinamento militar para barrar os ataques.
Os barcos vikings pareciam não ter fim, assim como os soldados que aportavam na costa e atacavam tudo que encontravam pela frente. Chegaram ao castelo numa noite sem lua, onde nuvens baixas prenunciavam um temporal de verão. A defesa varou a noite tentando evitar a invasão do castelo. Porém, por volta do meio-dia do dia seguinte, uma horda furou as defesas e adentrou ao castelo. Estranhamente, aquela foi a única vez que fiquei resguardado com os demais membros da família do rei na sala do trono, enquanto soldados lutavam nos corredores tentando defender seu soberano. As pesadas portas de carvalho cederam e, um homem musculoso, alto, com uma cabeleira longa e loira surgiu guiando sua tropa. Seus olhos azuis estavam tão injetados que parecia que ele não via nada além de inimigos a serem perfurados por sua espada, uma peça de lâmina larga, ensanguentada, onde reluziam pedras incrustadas. Os filhos e netos do rei que já tinham idade para se defender, empunharam as espadas e tentaram contê-lo. Eu estava entre eles, e procurava me lembrar de todas as aulas que o Clódio havia me ensinado para manobrar uma espada. Numericamente em desvantagem, nosso destino parecia estar selado. Apesar disso, alguns soldados invasores jaziam no chão, um deles devido a minha reação. Naquele momento, eu, também estranhamente, não me vi como um membro dissociado daquela família que nunca me reconheceu. Parti para novo ataque sem medir as consequências, apenas movido pela adrenalina que circulava em minhas veias. O líder ficou na mira da minha espada, depois de ter executado um dos netos legítimos do rei. Logo nos primeiros golpes, que fizeram a força daquele homem percorrer minha espada e chegar ao meu braço com uma intensidade descomunal, percebi que seria sua próxima vítima. A espada que ele empunhava, forjada num metal resistente, o que se percebia pelo tilintar ao bater na minha, era ricamente ornada com detalhes em dourado e rúnicos, que cintilavam conforme a peça se movia em suas mãos, indicando que seu dono era alguém rico e poderoso, um jarl provavelmente. Os jarls tornaram-se conhecidos e temidos já nas primeiras invasões, ao matarem os monges e saquearem um mosteiro no leste da Inglaterra, feito que começou a correr pela Europa continental espalhando o terror. Por uns instantes, pareceu-me que estava lutando com o Ormus, e a raiva tomou conta de mim. Era como se eu estivesse tendo a chance de uma desforra, e parti para o ataque. Recuando do ataque cada vez mais feroz daquele homem, acabei tropeçando e perdendo o equilíbrio. Em segundos ele estava sobre mim, arfando tanto quanto eu, cara a cara comigo e erguendo a espada para crava-la em meu peito. De repente, nossos olhares se cruzaram, o meu apavorado com a iminência da morte, o dele com a certeza da vitória. Cerrei os olhos, os segundos passavam e o golpe não vinha. Abri-os quando fui puxado com força e obrigado a ficar em pé. Ele não ia me matar. Um grito feroz saiu de sua garganta, fazendo a palavra – GUNGNIR - ecoar horripilante e sonoramente, deixando claro tanto para seus soldados como para mim, que a vitória era deles. A luta terminara, a sala do trono devastada experimentou um repentino silêncio. Só se ouviam as respirações extenuadas de quem lutara ou para defender sua vida, ou para consumar a conquista.
Eu não conseguia tirar os olhos daquele homem imenso, cuja figura parecia se agigantar na pesada túnica que misturava tecido, couro e pele, ornada com detalhes metálicos. Seus olhos azuis como o céu ganhavam ferocidade debaixo do elmo pontiagudo de ferro, separados por uma extensão metálica que cobria o nariz. A longa barba formava uma trança no queixo, e eu me lembrei do arrepio que senti ao senti-la roçar meu rosto quando ficamos cara a cara. Ele se virou para o rei e, falando nosso idioma, anunciou seu triunfo, impondo restrições e determinando que todo o reino estava sob suas ordens dali em diante.
Nos meses seguintes, aportaram na costa diversos dracars e knorrs com seu velame e pintura característicos, trazendo não apenas mais soldados como também uma população na qual havia mulheres e crianças, que foram se estabelecendo pelas aldeias do reino. O clima belicoso do início, foi dando lugar a uma interação entre os povos, embora qualquer resistência fosse implacavelmente destruída.
No castelo também imperava uma nova ordem. O rei, a rainha e toda a família continuavam a habitá-lo, bem como os principais conselheiros, mas já não determinavam mais nada. Os soldados do reino foram substituídos pelos do invasor e aqueles que se opuseram a servi-lo, ou formaram executados ou convencidos a mudar de lado. Eu demorei a perceber que aquela repentina aceitação do Clódio nada mais era do que a chance de avaliar seu inimigo e, de aguardar o momento oportuno para vingar aquele ultraje imposto ao rei que tão fielmente devotava. Boa parte dos soldados rendidos tinha o mesmo pensamento, entre eles Ormus, que tinha se tornado um guerreiro destemido.
Os conselheiros do rei também tramavam pelas costas do conquistador, qual aves de rapina prontas a atacar. O principal conselheiro do rei era uma pessoa muito sagaz e pouco confiável. Clódio o desprezava pela avareza e falta de caráter, não só por ter sido afastado de suas funções após o acidente que o vitimou, como por uma desavença cuja origem poucos conheciam. Apesar da minha tenra idade, havia uma cena no meu passado que ficara registrada na minha mente, o dia em que fui separado da minha mãe e entregue aos cuidados do Clódio. A cena ocorreu na sala do conselho, entrei nela pela primeira vez conduzido pela mão trêmula da minha mãe, além do rei, a quem até então eu tinha visto uma única vez de longe, havia três conselheiros, entre ele o mais influente deles, um abade e meu pai. Foi o conselheiro quem tomou a palavra, explicando a minha mãe algo que não fazia nenhum sentido para mim, mas que a deixou ainda mais abalada do que já estava. O rei tinha um olhar complacente voltado para mim, onde se escondia um pouco de candura, enquanto o do conselheiro chegava a mim como uma flecha mortífera. Desde aquele dia eu sentia um arrepio quando cruzava com ele. Duas lágrimas brotaram dos olhos da minha mãe quando ela tirou minha mão da dela e a colocou na do Clódio, um homem que apenas sorriu para mim com benevolência. Eu nunca mais a vi, nem soube de seu paradeiro, e isso fez crescer em meu peito um ódio mortal por aquele homem que, mesmo na minha completa incompreensão dos fatos, sabia ser o responsável pela minha desgraça.
Sem o seu antigo status, e tendo sua vida poupada, esse conselheiro continuava a conspirar, enchendo a cabeça do rei e de seus filhos com sugestões para reaver o trono, ao mesmo tempo em que se mostrava solícito com o conquistador bárbaro, esperando muito provavelmente seu reconhecimento pela suposta fidelidade, talvez até o trono aliado quando este fosse partir. Desse jogo duplo eu fui mais uma vez uma peça importante em seu tabuleiro de artimanhas. O fato de ter minha vida poupada tão inexplicavelmente no dia do ataque, os olhares que o que conquistador Tedros lançava sobre mim logo lhe inspiraram planos para chegar aos seus desejos.
- Vocês já devem ter notado como Tedros mostra um interesse peculiar no bastardo. Não tenho dúvida de que esse interesse seja um ponto fraco a ser explorado para nos vingarmos dele. – ouvi-o comentar com outros dois conselheiros quando pensavam estar sozinhos.
- Que tipo de interesse pode ele ter com o bastardo? Ele não tem nenhuma influência, todos sabemos que recebe um tratamento semelhante ao dos criados mais insignificantes. – ponderou um deles.
- Hórus tem se mostrado um rapaz delicado, de modos refinados, desde que a rainha resolveu instrui-lo impondo seu estilo majestoso ao comportamento do bastardo. – afirmou o conselheiro. – Algo me diz que aquele bárbaro teve seus instintos sexuais aflorados pelo bastardo. Vocês hão de concordar que a mistura com o sangue daquela plebeia gerou um rapaz muito atraente, superando em beleza e formosura qualquer outro neto do rei. O que precisamos fazer e convencer o rei a nos apoiar e jogar esse mancebo nos braços do Tedros. A partir daí teremos esse bárbaro em nossas mãos. – completou.
Eu fiquei com aquelas palavras reverberando na minha cabeça por dias. Teria sido mesmo por isso que eu continuava vivo? Eu nunca tinha encontrado uma explicação para aquele homem não ter enfiado sua espada em mim no dia em lutamos, mas me recusava a acreditar que tivesse algum interesse em mim, especialmente um interesse libidinoso. Não foi surpresa alguma para mim quando fui levado a presença do rei. O plano engendrado estava sendo posto em prática, disso eu estava certo.
- Sua lealdade a sua família ficou evidente quando destemidamente se pôs em luta com os invasores. – começou o rei, medindo cautelosamente suas palavras que, na verdade, não deveriam ser as dele, mas as do conselheiro, pois repentinamente eu passara a fazer parte da família, quando até então não passava de um reles enjeitado que vivia entre a criadagem. – O que eu gostaria de saber, é se você é capaz de se mostrar fiel ao seu soberano e ao seu reino? – questionou. Seu soberano e seu reino me soaram tão forçados, mas mesmo assim, a irrestrita servidão e lealdade do Clódio parecia ter se incorporado em mim, depois de tantos anos doutrinado por ele.
- Certamente majestade! – esse acordão irrefletido deveu-se a um sentimento de pertencimento, o primeiro que experimentei na vida. Tal qual o Clódio estava disposto a dar sua própria vida em nome de seu rei, eu havia sido contaminado pelo mesmo mal.
- Eu não esperava outra atitude de sua parte. Toda a independência e futuro do nosso povo depende de certa maneira do sucesso que você há conseguir na empreitada que vamos lhe propor. – ao assumir a palavra, o conselheiro tirou qualquer incerteza que ainda pudesse haver de que aquele plano era obra sua.
O resultado prático daquela reunião de conspiradores foi que eu passei a ter um novo status dentro do castelo. Tiraram-me do aposento que eu dividia desde tenra idade com o Clódio para me instalar num exclusivo meu ao fim de uma escadaria estreita e escura na torre oeste do castelo. Costureiras me arrancaram os trajes de algodão grosso e confeccionaram túnicas semelhantes às dos demais membros da família real, só que em tecidos finos, quase transparentes, macios como a seda que calculadamente escondiam e expunham partes do meu corpo jovem e esbelto. A sentimento de estar praticamente nu, sentindo qualquer aragem entrar pelas túnicas e chegar às minhas partes pudendas me deixava numa constante sensação de insegurança, que uma miríade de olhares indecifráveis só conseguia acentuar. Desde o famigerado conselheiro, o velho e depravado abade, os soldados que montavam guarda diante das principais portas do castelo, os meus antigos companheiros da sala das armas e, até o Ormus pareciam me cobiçar como se eu fosse o mais tenro javali assado. Com o Tedros não foi diferente, e os conselheiros vibraram quando notaram que seu plano tinha funcionado.
- Você se parece um deles agora. – disse a Tobata, quando me viu pela primeira vez nos novos trajes.
- Não venha debochar de mim, que não estou para brincadeiras. Já me basta o vexame de ter que passar por isso. – retruquei furioso.
- Não estou debochando, seu tonto! Você não deveria ser tão ingrato, afinal te deram o lugar que é de seu direito. – ela falava sério, embora desconhecesse a verdadeira razão daquilo tudo.
- Espere para ver o que vai acontecer comigo, depois fale em ingratidão. – revidei.
- O que você quer dizer com isso?
- Estão me usando como isca, como um cordeiro amarrado a uma árvore no bosque para que os lobos o encontrem. – expliquei.
- Tem certeza? Isso seria de uma crueldade sem tamanho. – indignou-se.
- Espere e verá! – ela se comoveu, o que era raro em sua personalidade, sempre tão dura quanto a do pai. Eu não quis mencionar que seu pai estava ao par de todo o plano, embora fosse um dos poucos que havia se oposto ao principal conselheiro do rei.
De uma hora para outra eu me vi ocioso. Tanto as minhas tarefas com o Clódio, que foram delegadas a outro rapaz, quanto os ensinamentos da rainha, que alegou não haver mais clima para aquelas aulas depois da reviravolta que o castelo sofreu com a ocupação daqueles bárbaros, não me ocupavam mais. Nas primeiras semanas fiz longos passeios com a Tobata pelas colinas e pradarias ao redor do castelo sob um sol fraco de outono, que sempre nos obrigava a regressar ao meio das tardes, ora por uma chuva que nos apanhava pelo caminho, ora por ventos frios que sopravam do norte. Nossas conversas giravam em torno da presença daqueles estrangeiros entre nós. Dizíamos o quão indignados estávamos com aquela situação e, nos preocupávamos com o que fariam conosco no futuro, pois chegavam histórias das ilhas britânicas que muitos dos que não foram executados, passaram a compor uma leva de escravos. As poucas semanas de convívio com eles não me deram essa impressão, já a Tobata receava pela vida do pai, uma vez que era um dos conselheiros reais.
- Se fossem atentar contra o rei e a família ou contra os conselheiros já o teriam feito. Não precisa ficar nessa agonia. – disse eu, procurando tranquiliza-la.
- Podem apenas estar esperando o momento certo para fazer isso, talvez temendo uma reação do povo se soubessem que seu soberano tinha sido executado. – argumentou ela.
- O Hórus diz isso porque ficou enfeitiçado por aquele bárbaro que lhe poupou a vida! – exclamou o Ormus, surgindo repentinamente nem se soube de onde, para espanto meu e da Tobata.
- Você só diz besteiras! Eu lutei com ele, ao contrário de você, que ninguém viu durante a invasão. – revidei.
- Pois eu estava na linha de frente, ajudando nossos soldados a barrar a invasão, e não escondido na sala do trono debaixo das saias da rainha. – retrucou ele.
Parti para cima dele como se fosse um novo inimigo a ser combatido. Aquela droga de túnica que me obrigaram a usar cerceava meus movimentos e o Ormus logo me derrubou no chão e me dominou.
- Parem com isso! Seus idiotas! Estou farta dessas desavenças de vocês. Se quiserem continuar a agir como crianças, eu vou embora. Adeus imbecis! – berrou a Tobata, regressando ao castelo.
- Saia de cima de mim, cretino! Viu o que você fez? – gritei, procurando encontrar em brecha entre sua defesa para esmurra-lo.
- Foi você quem começou, a culpa é sua e não minha! – devolveu ele, esquivando-se dos meus punhos e forçando meus braços contra a relva.
Ele me ameaçou dizendo que se eu insistisse em agredi-lo me manteria naquela posição submissa até obter meu juramento de parar com a briga. Eu odiava quando ele me subjugava e exigia minha rendição verbalizada, era como se eu admitisse sua superioridade tanto em força quanto em astúcia e eu me recusava terminantemente a admitir isso. Ele me sacudia insistindo no pedido de rendição. O cadarço que amarrava minha túnica havia se rompido e uma fenda na roupa que chegava quase ao meu umbigo se abriu expondo meu peito arfando de fúria. Ele olhava com cobiça para o peitinho que estava exposto, me deixando numa situação vexatória. Suas coxas prendiam as minhas, também praticamente nuas, pois a túnica estava embolada ao redor da minha cintura. Ele começou a se inclinar sobre mim, o rosto se aproximava perigosamente do meu e, em seu olhar libidinoso eu conseguia prever o que estava para acontecer. Gritei. A boca do Ormus colou-se à minha, gananciosa e predadora. Eu me agitava debaixo dele, nossos corpos friccionavam um no outro. O Ormus era quente e vigoroso e, subitamente eu não sabia se aquilo que estava sentindo era raiva ou um tesão desenfreado. Sem desgrudar a boca da minha para que eu não gritasse, ele começou a mover a pelve como se estivesse me fodendo. Num segundo em que cerrei os olhos, o peso dele saiu de cima do meu corpo. Ao reabri-los, vi o Tedros acertando um soco no meio do rosto do Ormus, ele perder o equilíbrio e cair a uma certa distância. Num único puxão pelo braço, o Tedros me levantou do chão e me fez colidir contra seu peito imenso. O mesmo arrepio que senti no dia em que lutamos se repetiu, percorreu minha espinha e me deixou travado.
- Você está bem? – perguntou o Tedros, afastando com a mão as mechas de cabelo que tampavam meus olhos.
- Sim! – balbuciei confuso e estarrecido. – Não, por favor, não o machuque! – implorei, quando vi que ele partia novamente para cima do Ormus.
- Por que está a defende-lo? Ele acaba de bater em você! – questionou ele, indignado.
- Não precisa pedir por mim! Sei muito bem como me defender desse vândalo execrável! – exclamou o Ormus, levantando-se para manter a dignidade.
- Deixe-o, por favor! Ele só está nervoso por que não conseguiu o que queria. – disse ao Tedros. Nesse momento percebi a ambiguidade das minhas palavras e, que devem ter deixado dúvidas nele. O – NÃO CONSEGUIU O QUE QUERIA – se referia a não ter conseguido ouvir meu pedido de rendição, ou se referia ao fato de ele não ter conseguido consumar o coito? Não sei o que ele entendeu, mas pela fisionomia perplexa, vi que a segunda opção estava em sua mente. Mas, não era hora nem lugar para eu ficar me explicando.
- Cruzei com a garota, ela me disse que vocês dois estavam brigando. – explicou o Tedros, quando começamos a caminhar em direção ao castelo. – O que há entre vocês dois? A garota me disse que fazem isso desde crianças. – era constrangedor ouvir aquilo daquele homem, me fazia sentir um moleque outra vez.
- Não há nada! O Ormus é que sempre encontra uma maneira de implicar comigo. – devolvi.
- Ele ficou excitado com a briga, ou ao menos com o fato de você estar quase despido debaixo dele. – observou. Eu também tinha visto a ereção do Ormus ainda consistente quando se levantou desafiando o Tedros, mas não queria admitir que foi por conta daquele beijo e do modo como seus olhos brilhavam de desejo.
- Ele é um tonto! – devolvi encabulado
- Não o culpo por te desejar. Um simples mergulho em seus olhos é suficiente para querer explorar todo o resto. – a desenvoltura e a naturalidade como ele disse isso me estarreceu.
- Já me basta ter o Ormus infernizando a minha vida, não queira fazer páreo com ele, dois são demais para a minha paciência! – exclamei. Ele riu. Um sorriso espontâneo, lindo por sinal, que deixou seus enormes dentes brancos expostos. Eu achei que um homem guerreiro como aquele não sorria, ingenuidade minha, afinal ele devia ter características tão humanas quanto qualquer outro, embora esse aspecto humano não fosse de muita valia numa guerra ou numa invasão.
- O que foi? Por que está me encarando dessa maneira? – questionou, quando eu próprio me vi olhando fixamente para ele.
- Nada! Só estava pensando. – respondi ligeiro.
- No quê?
- No seu jeito! – eu não podia ser mais sincero.
- Você deve me odiar, não é mesmo? Invadi seu reino, o castelo do seu rei e as aldeias com meus homens, matamos uma porção dos seus. Você me vê como seu inimigo. – afirmou.
- Não, não é isso! Foi o seu sorriso. Ele me fez refletir sobre seu aspecto humano. Não conheço invasores, só ouvi falar deles, histórias escabrosas, por isso achei que não podiam ser humanos, que não eram capazes dos mesmos sentimentos que nós. – ele aparentemente gostou da minha sinceridade ingênua.
- E agora você constatou que não sou o monstro que criou em sua cabeça a partir dessas histórias. – retrucou.
- De certa forma! Ainda não estou muito convencido disso.
- O que posso fazer para mudar sua opinião sobre mim?
- Por que quer que eu mude de opinião a seu respeito?
- Porque é importante para mim!
- Não vejo no quê!
- Talvez eu te mostre porque quero que deixe de me ver como um inimigo. – eu não quis continuar perguntando, pois aquele olhar dele não saía da minha cabeça, e eu podia jurar que havia nele a mesma cobiça que eu acabara de ver nos olhos do Ormus. A única diferença, era que o Ormus não conseguia mexer tanto comigo quanto aquele macho guerreiro que, para mim, era um completo mistério.
A chuva que começara naquela tarde se estendeu noite adentro, trazendo consigo o frio outonal. Recolhi-me cedo, não porque estivesse cansado ou com sono, mas por pura falta de ter com que me ocupar. O monótono sussurro da água escorrendo pelos telhados logo me fez cair no sono. Não sei se já estava dormindo há tempos ou se haviam passado apenas uma centena de minutos após eu me deitar quando, repentinamente, senti uma mão potente se fechando ao redor da minha boca me impedindo de gritar. Comecei a me debater tentando livrar-me do agressor. O quarto estava tão escuro que era impossível identifica-lo, mesmo assim, após um tempo, dei-me conta de que se tratava do Ormus. Fiquei com tanta raiva que tentei morder sua mão, enquanto ele me mandava ficar quieto.
- Só vou te soltar se você ficar de boca calada. – explicitou, com o rosto tão perto do meu que pude sentir seu hálito. Acenei que concordava, ele levou alguns minutos para confiar na minha disposição, e foi cautelosamente afrouxando os dedos.
- O que faz aqui? Saia do meu quarto agora mesmo! Você nem deveria estar circulando por esta ala do castelo. Saia! – esbravejei, tão logo consegui articular as palavras e me recuperar do susto.
- Que ideia foi aquela de me humilhar na frente daquele sujeito esta tarde? – questionou. – Não pense que vou aceitar calmamente que ele faça o que bem quiser por aqui. Não sei se você se lembra, mas ele é um inimigo a ser combatido, e é isso que pretendo fazer. – emendou.
- Não diga bobagens! Ele poderia tê-lo derrotado ou te atravessado com sua espada num piscar de olhos. Eu apenas intercedi por sua vida, seu tolo desmiolado.
- Você acha mesmo que esse sujeito me intimida? Posso acabar com ele no momento que quiser. – revidou, convencido.
- Nem vou dar crédito a essa bravata!
- Você acha que não sou homem o suficiente, não é isso? Mas eu vou te provar que está errado. – sentenciou.
- Você não passa de um moleque diante daquele homem!
- E você está totalmente enfeitiçado! Refere-se a ele como homem, só porque está seduzido pela soberba daquele sujeito. Não me espantaria se o deixasse apoderar-se da sua virgindade. – retrucou.
- Não quero ouvir mais nada dessa sua boca infame! Saia já daqui, ou vou colocar todo o castelo em polvorosa. – ameacei.
- Mas não vai mesmo! – exclamou, atirando-se sobre mim e tentando selar novamente minha boca, enquanto erguia minha camisola e passava a mão nas minhas coxas, subindo até as nádegas.
- Pare! – o que era para ser um grito, saiu apenas como um murmúrio sufocado.
A mão que apertava minha boca também mantinha minha cabeça prensada contra o leito, enquanto a outra percorria meu corpo, tresloucadamente, como se estivesse tentando agarrar minha intimidade.
- Está sentindo como estou duro? Ainda acha que não passo de um moleque? Então sinta como sou homem, como meu instinto me deixa duro para você. – rosnava ele, esfregando sua ereção nas minhas coxas.
- Não vou deixar aquele sujeito pegar você! – afirmou.
- Do que você está falando? No seu pensamento não passo de incapaz de me defender.
- Essa é a questão! Você até pode ser capaz de se defender, mas não quer. Vai deixar que ele te pegue, quem sabe até facilitando tudo para ele. – de onde ele tirava todas essas conclusões eu não fazia ideia.
- Então vou facilitar tudo para você também. É isso que você quer?
Ele ficou estarrecido, senti seu rosto quase colado ao meu. Ele me soltou, e imediatamente colou sua boca na minha. Procurei me esquivar, mas ele acompanhava cada movimento meu sem desgrudar os lábios dos meus. Para me persuadir a desistir ele mordia meu lábio com força até me ouvir gemer. Parei de me debater e resistir. Ele continuou a avançar, agora palpando despudoramente minhas nádegas, acariciando-as, explorando sua textura, consistência e maciez, apoderando-se delas, desejando-as ardentemente. Como já não me cerceava com tanta força, fui me virando até ficar de bruços. A bunda nua franqueada à lascívia predadora dele. Pude sentir seu membro deslizando dentro do meu rego, me umedecendo com a excitação dele.
- É assim que você quer, então apodere-se de mim, faça o que quiser. – ofereci, passivo e conformado. Ele se animou, bufava no meu cangote feito um touro instigado pelo cio. Meu corpo jazia languidamente estático debaixo do dele, tão passivamente disponível que ele se indignou.
- O que está fazendo? Por que não reage? Por que não luta como sempre fez? – questionou.
- Você não insinuou que eu sou fácil? É exatamente isso que estou fazendo. Facilitando tudo para você. – devolvi.
- Não é assim que eu quero! Quero que você reaja, que comece a disputar sua rendição comigo. – afirmou decepcionado com minha atitude.
- Não vou disputar nada com você! – retruquei, contando que isso o desestimularia.
Ainda levou uns minutos para ele se convencer de que poderia me possuir sem nenhuma objeção. Porém, aquilo subitamente acabou com o tesão dele. Como sempre fizemos desde crianças, a vitória dele sobre mim só fazia sentido quando eu aguerridamente o impedia e dificultava sua investida.
- Eu devia te dar uma surra por estar agindo assim comigo! – esbravejou.
- Faça isso se quiser! Se vai te fazer sentir melhor, faça o que quiser.
- Não vou te dar esse gostinho! Não sou mais um moleque para me deixar levar no papo. – retrucou zangado.
Ele saiu desapontado de cima de mim, frustrado por não conseguir aliviar a pressão dos culhões, suportando a dor daquela rigidez insatisfeita de seu falo. Deixou-se cair ao meu lado sem dizer mais nada, enquanto massageava o sacão para acalmar os testículos ingurgitados. Eu também permaneci em silêncio, meu coração batia acelerado no peito que ainda arfava com toda aquela agitação. Só o fato de não ter sido violado foi o suficiente para me tranquilizar. Minha tática havia sido mais eficaz do que eu imaginara e, embora eu soubesse que daquela vez a vitória tinha sido minha, não me atrevi a joga-la em sua cara. O Ormus passou a noite deitado ao meu lado. Acordei algumas vezes sentindo o cacetão rijo dele alojado no meu rego quente, mas como ele não tentava fazer nada, eu o deixei ali. Devo confessar que era inquietante estar naquela situação. Era como se eu estivesse à beira de um precipício e, ao menor movimento, pudesse despencar num mergulho sem volta para o fundo do vale. Ainda era madrugada quando acordei sem a presença dele na minha cama. O quarto recebia a primeira luz do alvorecer, meu rego continuava pegajoso pelo fluído que vertera da pica do Ormus, e eu me perguntava o que me movera a ser tão desprendido com a minha virgindade. Foi inquietante descobrir que eu apenas a preservara para outro homem, um homem que ainda mexia com meu imaginário, um homem que era só mistério, um homem chamado Tedros.
Eu estava na cozinha, onde já não deveria ir depois que resolveram me afastar da criadagem com a qual eu tinha intimidade demais para a nova posição, bisbilhotando atrás de alguma coisa para saciar, não uma fome propriamente dita, mas uma ansiedade que me corroía; quando a Tobata entrou ofegante à minha procura.
- Você não tinha sido alertado a não frequentar mais essa ala do castelo? O que faz aqui? Estou a mais de uma hora no seu encalço. – despejou ela, mal conseguindo coordenar a tomada de ar e a fala.
- Ninguém precisa saber que estou aqui. O que tem de tão urgente para me falar? – retruquei.
- Você já soube o que aconteceu com o Ormus? Viu o que fizeram com ele? – pelo desespero dela, senti que boa coisa não era.
- Não. Desde o passeio de ontem a tarde que não o vejo. – menti.
- Então venha comigo, e prepara-se para ver o estado lamentável em que ele está. – sentenciou ela.
- O que foi que ele aprontou dessa vez? – questionei, acompanhando-a na mesma correria desatada com a qual ela havia chegado, e agora me puxava consigo.
Mal reconheci os traços da fisionomia do Ormus debaixo dos hematomas e inchaços que desfiguravam seu rosto. Havia ferimentos espalhados pelo corpo que jazia quase inerte sobre um leito improvisado nos aposentos da família do conselheiro seu pai. Um médico e uma curandeira tratavam de aliviar seus gemidos, enquanto a mãe desesperada implorava pela vida do filho.
- Quem fez isso com ele? – perguntei aflito, diante dos gemidos de dor que saiam da boca deformada do Ormus.
- Não sabemos. Foram dois camponeses que o encontraram esta manhã fora dos muros do castelo quando vinham entregar suas mercadorias. – respondeu-me o pai.
- Alguém deve ter visto alguma coisa. Já perguntaram aos guardas das ameias? Se o levaram além dos muros é impossível alguém não ter visto. – questionei.
- Ninguém viu nada! Só percebemos esta manhã que ele não havia dormido em seu quarto. Devem tê-lo capturado na noite passada. – respondeu a mãe, entre soluços.
Não fora na noite passada, disso eu tinha certeza, pois ele a havia passado comigo, roçando o caralhão dentro do meu rego e tentando enfiá-lo no meu cuzinho, mas disso ninguém podia saber. Olhei para a Tobata, parada junto a porta, estudando cada um dos meus movimentos. Eu até podia ler em seu olhar acusatório – vocês estiveram se estranhando ontem à tarde, até onde vai sua culpa nisso? – embora não tenha feito nenhum comentário sobre o que tinha acontecido durante o passeio da véspera.
- Não consigo imaginar quem possa ter feito isso com ele. Ele é tão querido por todos, mesmo gostando de fazer provocações e ficar desafiando as pessoas. – argumentei. O olhar da Tobata continuava sobre mim.
- O que aconteceu depois de eu ter deixado vocês dois se socando feito duas bestas? – perguntou ela, quando saímos do quarto.
- Você não está pensando que eu tenho alguma coisa a haver com isso, está? – questionei e, sem dar-lhe a chance de responder, emendei – Eu jamais o machucara de verdade! Você sabe muito bem disso.
- Em se tratando das desavenças históricas de vocês dois eu não sei de mais nada. – respondeu ela.
- Você só pode estar louca se pensa que eu faria isso com ele. – revidei enfurecido.
- Eu já disse, não penso nada.
- Então por que está com esse olhar me acusando?
- Não delire! Não estou te culpando de nada. Mas alguém estava com muita raiva ou inveja dele para tentar tirá-lo do caminho. – afirmou ela, imaginando que chegaria a alguma conclusão a partir daí.
Foi o – tirá-lo do caminho – que me levou a uma suspeita. Deixei-a sem me despedir e sem dizer nada. Apressei-me a procurar pelo Tedros. Levei mais de uma hora até encontra-lo junto a outros líderes de seus soldados na sala das armas. A longa procura só fez aumentar a raiva que estava sentindo, pois não conseguia deixar de ver o rosto mutilado do Ormus diante dos meus olhos.
- Foi você, não foi? Foi você quem tentou mata-lo! Mas saiba que seus homens falharam, ao menos por enquanto. Por que fez isso? Porque ele o desafiou? Porque você quer mostrar a todos que é você quem manda aqui? Que raios de homem é você, capaz de quase matar um jovem que mal saiu da puberdade? – despejei sobre o Tedros, enquanto meus punhos cerrados davam golpes a esmo sobre o peito dele, diante do olhar estarrecido de seus homens.
- O que está fazendo? Do que está falando? Controle-se ou terei de fazer isso do meu jeito. – revidou ele.
- Me dando uma surra também? Ou talvez tentando me eliminar?
- Não preciso te surrar e, muito menos te eliminar para te por sob controle! – exclamou ele, segurando meus braços e me dando uma gravata.
- Me solte! Me dê uma espada e defenda-se, pois desta vez não vou deixar você sair vencedor. – ameacei. Ouvi uns risinhos sarcásticos surgirem nas bocas dos seus soldados.
- Venha comigo! E pare de estrebuchar, ou serei mesmo obrigado a tomar outras providências. – afirmou, arrastando-me para fora dali.
Mais arrastado do que caminhando, fomos parar num dos terraços do castelo. O sol estava a pino, mas não fazia calor. Nossos corpos em movimento agitado não faziam sombras no chão.
- Agora diga-me o que aconteceu. Por que está tão furioso? – a calma em sua voz me deixou ainda mais irritado.
- Cínico! Você sabe muito bem o que aconteceu. Foi você ou os seus soldados a seu mando que quase mataram o Ormus, tudo devido ao incidente da tarde de ontem. – despejei.
- Eu nem sabia que o haviam agredido. Quem sabe alguém não resolveu colocar um limite das bravatas daquele galinho de briga. – disse ele.
- Você se sentiu ultrajado com o desafio que ele lhe lançou, foi por isso que bateu nele. – afirmei.
- Isso foi ontem e diante de você. Como bem sabe bastou uma boa prensa para que ele percebesse que não teria chance alguma entrando em luta corporal comigo. Além do que, eu estava apenas tentando impedi-lo de te violentar. Se eu fosse me sentir ultrajado por qualquer garoto saído dos cueiros que blasfema contra mim, já teria cravado minha espada em milhares. – garantiu
- E não é exatamente assim que você age?
- Não! Não é.
- Nosso reino é testemunha disso. Quantos perderam a vida desde que vocês aportaram em nossa costa?
- Olhe bem para mim. Olhe! Estou mandando! Eu não mandei surrar seu amiguinho ou, seja lá o que ele for seu.
- Não quero olhar para essa sua cara cínica e criminosa. – ele riu na minha cara, com tamanha desfaçatez, que pensei em acertar-lhe um soco bem no meio da cara. Desisti por saber que não teria êxito nessa atitude.
- Agora respire fundo e me conte toda essa história. – pensei em deixa-lo falando com as muralhas, mas novamente algo naquele sujeito derrubou as barreiras.
Contei-lhe tudo o que sabia, exceto a questão de termos passado a noite juntos na cama. Mas parece que ele conseguiu ler minha mente como se fosse um pergaminho aberto.
- O que ele fazia no seu quarto a noite? Foi terminar o que não conseguiu lá na pradaria?
- Nada! Só foi implicar comigo, é a especialidade dele.
- Implicar com você ou porque você ficou comigo depois que dei uns safanões nele?
- Isso não vem ao caso!
- Você está tão empenhado em descobrir quem o agrediu. Pode me explicar por quê?
- Ora, somos amigos desde criança.
- Ou será porque você, digamos assim, gosta muito dele?
- Não sei onde quer chegar com essa conversa. Claro que gosto dele, já disse. Somos amigos de infância.
- Não me pareceu que ele te considera apenas um amigo. Eu o tirei de cima de você com o pau duro, pronto para te possuir a todo custo.
- Mesmo assim não quero que nada de ruim aconteça com ele.
- Como eu disse ontem, rapaz de sorte. Ele só não está sabendo aproveitar corretamente a sorte que tem.
- Se não foi você quem bateu nele, quem teria interesse em livrar-se dele?
- Não fui eu, acredite! Posso tirá-lo do meu caminho com a maior facilidade, sem precisar causar nenhum dano a um só fio de cabelo dele. – ao fazer a afirmação, o olhar do Tedros me penetrou com a mesma intensidade que sua espada teria feito.
- Ele não está no seu caminho. – foi imbecil de minha parte dizer isso, mas já havia escapado.
- Assim espero, mas só você pode me dar essa certeza. – eu corei feito uma criança que acaba de ser pega aprontando uma travessura. – Vou te ajudar a esclarecer essa questão, garanto que em breve saberemos quem está desejando o mal do seu amiguinho. – ele disse isso com ironia. Não me importei, desde que me ajudasse, valeria a pena ouvir esse tipo de comentário.
Toda vez que algo me afligia eu ficava rodeando o Clódio, como um cão sem dono a procura de abrigo e proteção. Ele não precisou nem de dez minutos para perceber o que eu queria.
- Ande, diga de uma vez o que quer, não tenho tempo a perder. – essa rispidez já não me incomodava, em todos esses anos sob sua tutela aprendi que ele agia assim para não deixar transparecer que seu coração amolecia cada vez que me via agoniado com alguma coisa.
- Não é nada. Será que agora nem posso mais ficar uns minutos perto de você?
- Quando um gato vem se esfregando na gente é porque tem algum interesse por trás. Ande, diga a que veio.
- O Ormus, você soube o que aconteceu?
- Não só o castelo todo, como as aldeias próximas já sabem que ele levou uma surra. Não devia ficar assim, afinal vocês sempre se desentenderam.
- Ele é um idiota, às vezes, mas eu não quero que nada de mal aconteça com ele.
- Ele ia gostar de ouvir isso! – exclamou rindo.
- Não deboche! Estou seriamente preocupado com o estado dele.
- Ele vai se recuperar, se não por ele, por você. Esteja certo que ele não vai deixar que o bárbaro consiga o que ele está tentando conseguir. – desde criança eu havia me convencido de que o Clódio era algum tipo de bruxo capaz de entrar na mente das pessoas, decifrar-lhes todos os segredos, sem que fosse necessária uma única palavra para se explicar. Eu corei, ao descobrir que ele estava sabendo muito mais do que deveria.
- Não faço ideia do que está falando!
- Sabe sim! Essas disputas ridículas entre vocês dois, desde a infância, só são alimentadas pelo desejo que ele tem de que você seja única e exclusivamente dele. Eu o eduquei com rigidez e austeridade, tentando transformá-lo num homem. Em parte consegui, tornei-o íntegro, leal, destemido, mas apenas isso não faz um homem, ao menos como deveria. Há na sua personalidade toda uma docilidade, uma necessidade reprimida de dar carinho, uma falta de instinto predatório para com o sexo oposto. Tudo isso o Ormus foi descobrindo enquanto vocês brigavam. Ao contrário de você, ele é um macho completo, que instintivamente quer dominar e possuir, que sente necessidade de copular, seja para se reproduzir, seja para apenas gozar. De um momento para o outro, ele vê surgir um rival disposto a levar aquilo que ele já considerava seu. Como você nunca lhe deu alguma garantia de ser ele o dono do território, está descuidando da própria vida para conseguir o que quer. – baixei o olhar, pois não tinha coragem de encará-lo sabendo que no fundo, a virilidade do Ormus sempre foi algo que me atraiu.
- O Tedros me disse que não foi ele o responsável pela agressão. – comentei, pois não saberia me opor às suas afirmações.
- Não foi mesmo!
- Como você pode ter certeza?
- Ele não tem nenhum motivo para isso.
- Foi o que o Tedros também me disse.
- Pois pode confiar nele.
- Então quem faria uma barbaridade dessas?
- Estamos enfrentando tempos difíceis. Há muitas pessoas querendo tirar proveito da situação. Foram essas pessoas que atentaram contra ele.
- Se você sabe quem são, porque não damos um jeito nelas? Eu posso te ajudar, vamos enfrenta-las. – ele sacudiu a cabeça e riu.
- Arroubos da juventude! São como o pólen carregado pelo vento, nunca sabem aonde vão chegar. É preciso mais do que cautela nesse momento.
Resolvi acatar o posicionamento do Clódio em relação a questão. Afinal, ele sempre estava certo. Fui o que aprendi durante todos esses anos.
Eu visitava o Ormus pelo menos duas vezes por dia, para saber como estava se dando sua recuperação. Também era uma maneira de aliviar sua mãe que, desde o ataque, fazia plantão ao lado do leito do único filho, que custava a recuperar a consciência. Ela não me lançava mais que um olhar exausto junto com sua fisionomia quebrantada. Eu lhe sorria, ela vinha apoiar as mãos sobre os meus ombros e deixava o quarto sabendo que seu tesouro estava em boas mãos. Eu vivia implicando com ele, mas, deitado ali cheio de ferimentos, alheio ao que estava ao seu redor, ele me parecia tão frágil quanto um recém-nascido; embora eu estivesse diante de um homem tremendamente atraente, musculoso, com a virilidade estampada em detalhes como o queixo anguloso, os braços torneados por músculos vigorosos, um peitoral largo coberto de cabelos negros, sem mencionar o imenso caralhão alojado devassamente entre suas coxas grossas. Eu segurava uma de suas mãos, enquanto acariciava com a ponta dos dedos uma pequena área de pele em sua testa que não havia sido atingida pelos golpes. Apesar de tudo, eu sentia um pouco de culpa por não ter cedido ao seu assédio, talvez se o tivesse recebido no meu cuzinho, ele não teria saído da cama para encontrar seus carrascos. Eu estava absorto, ponderando todas as nuances dessa entrega sexual quando senti a presença de alguém às minhas costas.
- Como ele está? – a voz quase sussurrada da Tobata mal se fez ouvir.
- Na mesma, eu acho. Ele ainda não recobrou a consciência, já faz três dias. – respondi, estendendo-lhe uma mão para que se aproximasse.
- A mãe dele me disse que você tem vindo pelo menos duas vezes por dia para vê-lo. Ele ia gostar de saber disso. – afirmou.
- Certamente iria dar um jeito de brigar comigo, mas como não pode, estou aproveitando para zelar por ele, uma vez que outra coisa não tenho como fazer. – retorqui. Ela lançou um olhar triste sobre nós dois.
Quando a mãe do Ormus voltou, a Tobata e eu saímos para um passeio. Caminhamos bem uma meia hora sem trocarmos nenhuma palavra. Dava para sentir que ela queria me dizer alguma coisa. O bom das amizades de longa data é que a gente aprende a identificar o que se passa na mente dos amigos.
- Diga o que está te afligindo! – exclamei, tentando encorajá-la a se abrir.
- Toda essa situação. Não estou conseguindo lidar bem com isso. – ela baixou o rosto e, mesmo assim, quase tropeçou numa toca de coruja cavada na escarpa que estávamos subindo lentamente.
- Não é do que fizeram com o Ormus que você está falando, porém não sei a que se refere.
- É tudo tão delicado, qualquer palavra mal interpretada pode colocar nossa amizade em risco e eu não quero que isso aconteça.
- A minha e a sua? Você me conhece, já deveria saber que estou sempre disposto a ouvir o que tem a me dizer. Não garanto que vá concordar com tudo, mas certamente sei ouvir.
- A de nós três.
- Como assim? Agora, definitivamente, não estou te entendendo.
- Alguns meses depois da minha primeira menstruação, que para infelicidade minha aconteceu bem diante de seus olhos curiosos, eu perdi a virgindade com o Ormus. – ela me encarou, tentando descobrir que conclusões eu estava tirando daquilo.
- E daí?
- Daí que você sabe como é o Ormus. Um garanhão sentindo o faro de uma égua no cio é mais controlado do que aquele pervertido. Eu não quis que ele satisfizesse todas suas taras comigo, me usando como se eu fosse uma rameira. Eu cedi mais algumas vezes, e esse foi meu erro. Subitamente, me vi tendo sentimentos por ele que jamais deveriam ter crescido dentro de mim. Como todo macho ele é tão tonto que nunca os percebeu ou, imaginou que estivessem aqui dentro.
- Então diga isso a ele! Sei como é um cabeça dura, mas sei que ele ficaria feliz se soubesse que você o ama.
- Eu não o amo, acho! Nem eu mesma sei por que me abalo tanto.
- Se abala com o quê? Com essa dúvida?
- Não! Com o fato de ele não conseguir tirar você dos pensamentos dele.
- O que você está dizendo? Nós vivemos em pé de guerra desde crianças. A única coisa que pode haver na cabeça dele são planos de como me irritar e me desafiar.
- Você acredita mesmo nisso? Então você é tão cego quanto ele.
- É claro que é só isso! O que mais seria?
- Se eu te disser que, por duas vezes, em que me deitei com ele, acolhi aquela monstruosidade e a deixei dilacerar minha carne, ouvi-o sussurrar seu nome antes de ele me despejar sua virilidade, você compreenderia meu dilema. – ela ficou encabulada com a revelação.
- Não é possível! Como pode? Somos como cão e gato! Eu nunca fiz nada para ele aventar a possibilidade de ter qualquer coisa nesse nível de intimidade comigo.
- Mas eu te garanto que ele não pensa assim. Ele te deseja, carnal e promiscuamente como só um macho pode desejar. – fiquei sem palavras. – O que significa esse silêncio? Chocado com o que acaba de descobrir? Conheço sua sensibilidade, e sei que você já deve ter sentido o tesão dele aflorar quando está com você. – eu concordei com um aceno de cabeça, ainda não sabia o que dizer a ela. Ponderei se deveria contar o que aconteceu na noite anterior à emboscada que o Ormus sofreu.
- Ele esteve comigo pouco antes de ter sido emboscado. Como sempre, começamos a discutir. Lutamos, ele me dominou. Quis me possuir à força. Ele já havia tentado isso naquela tarde na pradaria, quando o Tedros lhe deu uns safanões. Porém, naquela noite eu não quis lhe dar o gostinho da vitória e arrisquei. Entreguei-me sem esboçar reação, até o incentivei a me possuir. Ele ficou furioso, não era daquela maneira que ele queria mostrar sua superioridade sobre mim. Ele desistiu, contrariado e muito zangado comigo, mas ficou deitado ao meu lado, se insinuando e, aproveitando-se da proximidade do meu corpo nu. Quando acordei na manhã seguinte ele já não estava mais na cama. Não sei o que aconteceu. Só fiquei sabendo da emboscada horas depois, quando você veio me contar e cobrar explicações. – confessei.
- Ele havia me dito que tinha contas a acertar com você, e que seria aquela noite. Meu sexto sentido me disse que essas contas nada mais eram do que um encontro sexual. Por ele, não haveria nenhum problema de ele se enroscar com nós dois, de satisfazer aquele apetite carnal desenfreado em nossas carnes. Mas, eu não me vejo sendo feliz num triangulo amoroso, se é que há amor nisso, um triangulo cuja única finalidade é a lascívia impudica.
- Nem eu! Eu nunca pensei no Ormus como um homem que pudesse preencher meus anseios!
- Ele também sabe disso. E, tudo parecia estar sob controle, até esse bárbaro aparecer. O Ormus me disse que você está enfeitiçado por ele. A mais ínfima chance de que você e ele venham a se entender, foi o suficiente para o Ormus perder o controle e, o pouco de escrúpulos que tinha para não te possuir.
- Eu não tenho nada com aquele sujeito! Lembra-se que quase nos matamos, ou melhor, ele quase me matou?
- Mas não o fez, e eu consigo ver nele a mesma gana que move o Ormus para cima de você.
- Isso é impossível! Você está delirando! – eu sabia que não era, mas precisava acreditar que fosse assim. Já me bastava não conseguir tirar aquele vândalo dos meus pensamentos, agora admitir que estava sendo objeto de sua cobiça, era demais até para mim.
Deixei-a diante da porta de casa no grupamento de casas que ficavam fora dos limites das muralhas do castelo, sob um céu que ameaçava chuva. Despedi-me dela sugerindo que confessasse seu amor assim que o Ormus recobrasse os sentidos. Ela jurou que o faria, mas não havia convicção alguma em suas palavras.