No sábado de manhã, estava sentado no banco aguardando meus pais virem me buscar. Meu pé já havia apresentado profundas melhoras, mas mesmo assim, não quis abusar. De fato foi melhor eu ter tomado o analgésico, pois só consegui dormir bem quando este fez efeito.
Elias estava comigo, me fazendo companhia, até que seus pais chegaram. Minha mãe já havia me avisado que tinha pego trânsito no caminho, por conta de um acidente na pista, então relaxei e aguardei. O clima estava ótimo. Cairia muito bem uma praia, mas pra mim, seria somente o video game mesmo.
Nesse instante, Soares apareceu e sentou ao meu lado.
- Fala aí, perna de pau. Como está?
Eu sorri. Preferia 'Capitão', até 'Mendes', mas não escolhiamos nossos apelidos. E Elias havia me garantido aquele ao me por em meu lugar no futebol.
- Melhor - informei - E o Pedro?
- Terminando de arrumar a mala. Esqueceu de fazer ontem
- Vão passar juntos e fim de semana?
- Melhor não - declarou - essa prova é muito importante e quero começar a cair nos estudos hoje mesmo.
- Entendo. Vai dar tudo certo - e pus a mão em seu ombro.
- Valeu.
E ficamos calados, aquele silêncio incômodo. Era difícil estarmos só nos dois, normalmente sempre tinhamos a intermediação de Siqueira ou Pedro
Não tinha muito assunto naquele momento, então resolvi puxar um e brincar.
- E aí, levou o Pedro no grilhão alguma vez? - perguntei com um olhar de esgoela.
Soares riu.
- Sabe que nem tive cabeça - admitiu - Mas, nem sei mais...
Parou a frase no meio e eu pensei se deveria ou não incentivar a continuar.
- Algum problema? - obviamente eu continuei
- Não, problema não... Só... Às vezes fico me perguntando se tô forçando demais a barra com ele...
Eu ergui uma sombrancelha e esperei. Acho que era a primeira vez que via Soares em dúvida sobre alguma coisa.
Ele me olhou e riu
- Amo o Pedro. E gosto de nossa relação como está. Mas as vezes penso 'caramba, vamos nos casar' e sabe... Fico pensando no nosso jeito de nos relacionar e vem a dúvida.. 'sera que daria certo continuarmos com isso' ?
Eu pensei um pouco
- E porque isso agora? - achava estranha sua dúvida, assim de repente. Sentia que tinha algo mais ali.
- Não sei.
- Vocês não se enganam. Gostam das mesas coisas. Confiam um no outro. Qual o problema com quem transam? - e lembrei do meu tio - prefiro isso do que fazer pelas costas. E não tenho ilusões com Pedro. Pode ser tímido pra muitas coisas, mas de santo não tem nada
- Eh - e ficou sem graça.
- Você me disse uma vez que sabia o que queria - lembrei - algo mudou?
- Não - agora senti um pouco de convicção na sua voz. - As vezes tenho medo do Pedro não gostar tanto quanto eu... Digo... Eu já fiz muita coisa aqui nesse colégio. Sem ele, sabe. Ele sempre levou de boa. Nunca reclamou e acho até que gosta das minhas historias. Mas ele mesmo nunca tentou nada sem mim...
Ele não estava sabendo articular as palavras. Tentei ajudar
- Você acha que vai ficar com ciúmes? Quando se formar e ele ficar aqui sem você? - arrisquei, mas sem nenhuma crença de que tinha acertado.
- Não é bem isso... - ele sorriu sem graça, olhando o nada. - posso te contar um sonho que eu tive? Mas fica entre nós.
- Claro.
Ele riu, ainda sem jeito. Não cansava de me surpreender com as pessoas dali. Suas facetas, suas intimidades. Quando eu achava que conhecia bem um, ele se mostrava alguém diferente em novas circunstâncias. Soares sempre se apresentou como bem resolvido, mas até ele tinha dúvidas em seu relacionamento.
- No meu sonho, eu e Pedro já estávamos morando juntos. Eu voltava do trabalho e... Bem... Ele tava com outro cara... Eu flagrava os dois, na minha cama... O Pedro pelado, de bruços... Um cara que devia ter o dobro do tamanho dele. Negro igual ele... O cara metia muito. Castigava meu marido e... O Pedro gemia alto, gemia mais do que gemeu comigo a vida toda...
Eu esperei paciente ele terminar a história. Acho que finalmente estava entendendo o 'X' da questão. E vendo que ele não parecia querer concluír, resolvi dar meu palpite.
- Você não está com ciúmes do Pedro... - concluí em fim. Ele acenou de forma positiva.
- Quando saímos a primeira vez - continuei, confirmando que ele não queria falar nada no momento - você me contou que queria que o Pedro tivesse experiências aqui... Que ele desse pro maior número de caras... Que te contasse depois - e sorri, concluindo - pensei que você estivesse dizendo aquilo pra mim. Para me excitar ou... Pra deixar claro que não havia ciúmes entre vocês e assim eu ficar mais a vontade... Mas você estava era dizendo pra ele. Não é?
Soares me olhou e sorriu. Não soube identificar de cara, mas me pareceu impressionado.
- Nem o Siqueira sacou meu lance tão bem quanto você - disse.
- Por isso você não queria ser o superior direto de Pedro no início - deduzi
- Não queria - admitiu - eu pedi pro Siqueira ser...
Fiquei em silêncio. Ele então me olhou.
- Você não está me julgando - observou. Ainda descrente.
- E porque eu faria isso? - questionei e pus a mão em seu ombro.
- Quando eu falei pro Siqueira ser o comandante do Pedro, ele... Ele recusou... Ele disse que... Ele disse que não era certo. Que não se sentiria a vontade. Que deveria ser eu. Que eu deveria proteger ele. Ele já... Ele já comeu meu noivo na minha frente muitas vezes, mas quando eu sugeri dele ir sozinho uma vez, ele me olhou esquisito.
- Siqueira vem de uma família tradicional. Algo diametralmente oposto da minha. Mas mesmo para mim, alguns costumes daqui foram difíceis de entender no começo.
- Não tiro a razão de Siqueira. - ele mesmo explicou - Pedro é muito introspectivo. E forçar ele dessa forma... Não acho que seria legal. Mas...
- Você queria que o Pedro fosse mais ousado - concluí pra ele. - que fizesse algo pelas suas costas.
- É... Sim... É muito esquisito? - perguntou.
- Óbvio que é - e ri - Mas e daí? Você não ta fazendo mal a ninguém. Se é o seu lance, e se Pedro também curte e partilha... Não vejo problema algum...
Achei que Soares parecia não acreditar no que saia de minha boca. Ele me olhava como quem olha um objeto raro e curioso, mas ainda estava cauteloso, como se no fundo estivesse com medo de eu estar fazendo com ele algum tipo de chacota.
Parou, pensou e então continuou.
- Eu tive uma namorada... Antes do Pedro... Namoro de adolescente. Durou 6 meses apenas. Eu descobri que ela me traia com um monitor do colégio. Dez anos mais velho que eu... universitário...- ele foi falando e eu não me atrevi a interromper. Dava para ver que lutava contra a vergonha para soltar cada palavra - Eu tinha quinze anos... Ela também Foi logo antes de vir pra cá. Uma vez, eu vi o celular dela sem querer, enquanto ela estava no banho... Ela e o monitor não tinham se conhecido do colégio. O cara já era um ficante antigo. Cara boa pinta... Dirigia... Foi ele quem a desvirginou. E eu achando que tinha sido eu. Eles saiam sempre e... Continuaram saindo as escondidas enquanto ela namorava comigo. Vi as fotos que ele mandou pra ela. A maioria pelado... Na época eu não me interessava por homens .. mas até eu achei o cara pintoso... Eu... Eu lia as coisas que ele falava pra ela. Obsceno. Detalhista... Como ele se gabava de como comia ela. Das coisas que fazia com ela... Eu... Eu fiquei sem reação... Ela era uma menina certinha, de igreja. Namorávamos na casa dela, sempre com algum parente por perto... Pra transarmos foi difícil, não só pela família, mas ela mesma se fazia de dificil. E imaginar que ela fazia tudo àquilo com outro cara...
Soares respirava pausadamente, sua mente já não estava lá... Estava longe.
- Quando ela voltou do banheiro, eu larguei o celulare dela e não consegui falar... Não consegui. Sonhei muito com ela e o cara das fotos... Bati muitas pensando nas coisas que ela fazia com ele... Cada vez que eu olhava pra ela, pensava em falar... Pensava em contar que eu sabia... Mas como eu ia fazer isso? Se ela soubesse, eu teria de tomar uma atitude. Eu era um corno... Não podia ser corno manso...
Soares me olhou, olhos marejados.
- Ao invés disso, eu fiquei observando. Pegava o celular dela quando ela não via e ficava lendo as mensagens que trocavam. A maneira como ele gostava de enfiar o pau entre os seios dela, como pegava ela pelos cabelos quando a comia de quatro. Ou como ela ficava 'bonitinha' enquanto bebia do leite dele. Eu era muito jovem... Eu não soube administrar aquilo. Contei pra um grande amigo, atrás de ajuda. Pelo menos eu pensei que fosse. Ele mandou eu tirar satisfação com ela... Não quis. Dizia que era porque a amava e tinha medo de perder. Óbvio que era mentira. O que eu queria, na verdade, era uma forma de fazer com que ela me contasse e aceitasse que eu soubesse. Eu podia ser o álibi dela. Ela dava pro cara, mas pra todos era minha namorada. Podia dar certo. Quem sabe ela me deixava assistir um dia. Uma vez peguei um video no celular dela. O canalha filmou. Não filmou o rosto dela, mas eu reconheci o corpo, em especial uma marquinha de nascença que ela tem no quadril. Ele filmava comendo ela em várias posições. E todo momento ele virava o celular pra si e sorria pra câmera. Consegui copiar o video pro meu. Assisti varias noites, me masturbando pensando que o cara tinha feito o video pra mim. 'Olha corno. Olha como eu como tua namorada. É assim que se faz'.
Soares começou a rir.
- Loucura, não é? Mas meu amigo não deixou eu continuar com aquilo. E ele não sabia da missa, a metade. Como eu não tomava uma atitude, ele tomou por mim. A confrontou, nos colocou cara a cara e naquele momento, fui abrigado a me fezer de indignado, de enojado. Disse que não podia acreditar que ela tinha feito aquilo comigo, que me sentia traído e tudo mais. Cara, como eu fui covarde. Mas meu amigo não parou por aí. Espalhou a notícia e de um dia pro outro... Tudo foi por água abaixo. Foi um escândalo para a família dela. Ela se mudou... O monitor foi demitido... E eu... E eu fiquei conhecido como o 'corno manso' da escola... Por sorte meu ciclo social do colégio era distinto do bairro... Pedro nunca soube. Nem a irmã... Na verdade, ninguém até agora.
Soares concluiu, ainda olhando o nada
- Henrique... - o chamei, pausadamente, com a voz baixa - porque você está me contando isso?
Ele me olhou, parecendo perceber só agora que eu estava ali.
- Não sei - admitiu, sem forças - nunca confiei contar essa história pra ninguém... Acho... Acho que você me parece uma pessoa confiável.
Eu fiquei verdadeiramente lisonjeado com aquela declaração.
- Obrigado pela confiança. - agradeci.
Ficamos em silêncio, depois de um tempo, vendo as pessoas passarem como se estivéssemos invisíveis.
- Você já sugeriu ao Pedro... Diretamente? - Perguntei.
- Não - confessou - Só deixei a entender... Sempre contei das minhas aventuras, na esperança de ele me contar as dele. Ele tem a senha do meu celular e eu tenho a dele olho o dele de vez em quando na esperança de achar... Mas...
- Ele não vai te trair - declarei - Não é da natureza dele... Ele te ama.
Soares apenas acenou afirmativamente. Em silêncio.
- Traição exige que alguém esteja sendo enganado. - continuei. Mais uma vez lembrando de meu tio e de Lucas. Se ele tivesse seguido conforme Lucas queria, não haveria traição. Uma vez que seria algo de comum acordo. Agora a partir do momento em que fez sozinho, sem seu conhecimento. A coisa mudou - Não há isso entre vocês. Ele sabe de tudo o que você faz e concorda e você gostaria que ele fizesse mais - fui narrando, mais para mim mesmo que para ele. Meu cérebro trabalhava pesado, como se estivesse resolvendo alguma questão complexa de prova
- Pedro já sabe que por você, ele tem carta branca para fazer o que quiser. Mas ainda sim não faz. Porquê não tem necessidade disso. Pedro é tímido tambem, sim... Mas mais do que isso... Pedro tem...
- Tem esse ar servil. - Soares foi me ajudando - Ele é daquele tipo que realmente gosta de servir. Gosta quando eu o ofereço para os outros.
- Exatamente - dei corda - ele não é do tipo que vai tomar a iniciativa. Por ele, não. Só se ele souber o quanto isso é importante pra você. O quanto realmente você quer isso.
Eu então o olhei com uma ideia pipocando em minha mente e ele sorriu.
- Que cara é essa? - quis saber.
- Nada... - me fiz de desinteressado - Pedro gosta de ter alguém em seu controle... E não vai aceitar ninguém que não seja você. Há menos... Que você designe alguém - sugeri por alto - Sabe... Um cara maneiro... De confiança... Boa pinta - completei olhando de rabo de olho - que vai estar aqui nessa uma semana em que todos os majores vão estar fora - olhei de novo de rabo de olho.
Nesse momento, percebi que seu rosto se iluminou. Ele havia pescado a ideia.
Bem na hora, pois logo ao longe estava vindo Pedro.
- Acho que você seria uma ótima escolha - ele sugeriu.
- Você acha - me fiz de surpreso e ele riu. - Gosto muito de vocês - admiti - acho que formam um belo casal. Meio pancada, mas muito legais juntos.
Ele riu e me olhou com ternura.
- Acho bonito a maneira como vocês se olham. Mesmo no meio de uma putaria, o olhar que vocês dois trocam é diferente. É termo. É... Não sei explicar. Mesmo no meio de outros homens, como ocorreu em Verão Vermelho, vocês dois se destacam. Fica bem claro que o que vocês têm é diferente de tudo em volta.
Ele sorriu e agradeceu.
- Do que vocês estão falando - Pedro enfim tinha chegado, trazendo sua mala pelas rodinhas
- Sobre minha ausência, amor - Soares levantou e abraçou o noivo.
Nesse instante, também chegou Siqueira, nos saudando.
- Como anda o pé, Fabio?
- Bem melhor, Gabriel. Obrigado por ontem - respondi.
Ele apenas assentiu com um gesto, meio encabulado ainda. Soares o olhou de rabo de olho, mas o major percebeu.
- O que foi, major?
- Nada .. só estou passando para meu noivo as orientações enquanto estiver fora.
- Que seriam...? - Siqueira ficou curioso.
Pedro esperou, também intrigado.
- Bem. Sabe que vamos ficar fora uma semana. E nesse momento, os sargentos do segundo ano podem querer crescer as asinhas. Então, Pedro, te deixo sob os cuidados do soldado Mendes. Acho que será um bom treino para quando ele assumir a liderança daqui a dois anos.
Siqueira olhou desconfiado, mas deu de ombros.
- Não vejo ninguém melhor, de fato. Fabio... Digo, o Mendes é de longe o mais qualificado.
- Obrigado pela confiança - agradeci.
- Ouviu, Pedro. Enquanto eu estiver fora, quero que obedeça ao Mendes. Faça tudo o que ele mandar. Ele vai te proteger em minha ausência.
- Ah... Acho que entendi - ele ainda estava um tanto confuso, mas não haveria tempo de explicar. O carro com a mãe de Pedro chegou e Soares acompanhou o noivo até lá.
Siqueira sentou ao meu lado.
- O que vocês estão tramando? - Quis saber
- Confidencial, major.
Ele riu.
- Sempre com surpresas, Mendes.
E passou o braço pelo meu ombro e me abraçou. Senti que ele ia beijar meu rosto, mas não o fez, parando na hora. Abaixou a cabeça e apenas sorriu sem graca.
- Se cuida, Fábio.
- Pode deixar - senti calor. Talvez fosse o tempo mais quente - vai dar tudo certo em sua prova. Você é o melhor da turma e muito capaz. Vai tirar de letra
- Obrigado mesmo - respondeu com sinceridade - estou me preparando para ela desde que entrei nesse colégio, para ser franco.
- É seu sonho?
- Aham - ele olhou o horizonte, pensando não sei em que. Depois me olhou de novo e sorriu.
Soares voltou, mas não falou nada. Não querendo interromper.
Siqueira tirou a mão do meu ombro e se levantou.
- Vamos então - falou com Soares. - Onde está seu carro para eu ir pondo a mala?
Soares indicou e Siqueira foi indo na frente, meio apressado.
- Mendes, como é mesmo o olhar que você diz que eu tenho com o Pedro?
- O que? - estava distraído e não entendi bem a pergunta.
- Nada - corrigiu.
- O que foi Soares? - insisti, curioso e ao mesmo tempo encabulado. Só não sabia porquê ainda.
- Nada mesmo - se manteve firme - Obrigado por me ajudar a entender minha situação. Só não faço o mesmo por ti, porque acredito que no seu caso vai ser melhor que a ficha caia sozinha.
E de despediu com um sorriso e eu fiquei ali, sentado, meio perdido...