Julho e eu crescemos juntos. Ele morava no mesmo bairro, mas nos conhecemos mesmo na escola. Sua mãe o criava sozinha, não sei exatamente o porque, nem ele nunca tocou no assunto. Nunca demonstrou sentir falta de um pai, o que indica que nunca conheceu um.
Na escola nos tornamos melhores amigos. Assistíamos os mesmos desenhos, as mesmas mochilas de personagens. No recreio gostávamos de bater card e jogar bolinha de gude. Depois chegaram os videogames, e com isso as visitas. Eu ia pra casa dele, e ficava até minha mãe começar a ligar pra eu ir embora. Ele ia pra minha casa, e às vezes até dormia lá. Não demorou até nossas mães fazerem amizade, e começarem a fazer coisas de mulher juntas, como compras, cabelo, maquiagem e unha.
Eu e Julho tivemos uma amizade bastante sadia. Até chegarmos à puberdade. As vezes em meio a uma brincadeira de lutinha, ou de futebol, as interações ficavam… Um tanto quanto diferentes.
Um dia decidimos ver filmes de terror. Ele foi dormir lá em casa. Tive pesadelos a noite. Ele acordou preocupado. Perguntou se eu queria deitar com ele. Eu fui. Em dado momento, acordei aninhado no peito dele. Ele com a mão na minha cabeça, os dedos entrelaçados nos meus cabelos. O corpo dele tinha um engraçado cheiro de conforto.
Fomos ficando mais próximos. E passando cada vez mais tempo juntos.
Ao final do ensino fundamental, como em todas as escolas, começaram as conversas de quem queria ficar com quem. Cada vez mais casais ficavam se beijando as escondidas atrás de alguma árvore próximo a escola. Várias garotas, senão todas, queriam ficar com o Julho. Algumas tiveram essa sorte. Ele dizia que muitas queriam ficar comigo, também, mas eu sempre dizia que não ficaria com ninguém apenas por ficar. Tinha que ter sentimento. E ele me chamava de viadinho, em resposta. Fingíamos uma briga, trocávamos insultos, e ficava tudo bem depois.
Aos 14 anos de idade, pouco antes de entrar no ensino médio, passamos um natal juntos. A família dele bebeu demais, e não notou que uma garrafa de vinho havia sumido do armário…
Dizia ele que estava acostumado a beber nas festas de família. Ficamos no quarto vendo videoclipes, bebendo, e vendo vídeos engraçados. A família dele dando altas risadas no andar de baixo, e nós dando risadas no quarto. A medida que a garrafa ia ficando mais vazia, as risadas iam ficando mais frequentes. Dezembro, verão, vinho… calor. Eu tirei a camisa e fiquei de shorts. Ele fez o mesmo. Começamos a falar das garotas da escola, ver fotos, e trocar mensagens. Ele dizia que até o fim da noite arranjaria uma garota pra mim.
E a Larissa?
Tem mau hálito.
A Fabi é mó gostosa.
Verdade, todos os garotos da rua disseram que ela beija bem, e faz muito mais com a boca. Não tô afim de provar boca de pinto dos outros.
Mais respeito com a garota. O que você acha da Stefanie?
A Stefanie é bonitinha. Fizemos uma prova juntos uma vez. Mas eu mal conheço ela, não quero dar meu primeiro beijo em alguém que não conheço.
PRIMEIRO BEIJO?!
PORQUE VOCE TÁ GRITANDO???
AH NÃO! Fala sério?!
O que?? Eu sabia que não devia ter te falado.
É muito mais grave do que eu pensei!! Vamos resolver isso agora! Condições desesperadoras, exigem medidas desesperadas. Minha prima tá lá embaixo. Você conhece ela, já vi vocês de conversa várias vezes! Ela já falou bem de você! Certeza que ela topa!!
Não, cara. Deixa pra outro dia. A gente já bebeu o vinho quase todo!
Exatamente! Toma, bebe mais um pouco que você cria coragem! Vai, vira! Vira! Vira! Vira!
Ele colocou a taça na minha boca e foi virando. Não tive escolha. Ou engolia, ou sujava a roupa nova de natal. Engasguei. Ele riu. Deu um tapinha de brincadeira na minha cara. O quarto estava girando. Eu queria vomitar.
Agora! Vamos chamar a Letícia! - ele se levantou, animado.
Não! - Segurei o braço dele, e mantive a cabeça abaixada, tentando ficar bem.
Vamos, cara! A Letícia é firmeza! Você vai ser da família! É agora ou nunca!! Vai ficar esperando até quando?? Vai ganhar o primeiro beijo de presente de natal!! Ele se soltou do meu braço e foi em direção a porta.
Já falei que não!! Porque você tá insistindo tanto nisso?? - levantei, cambaleando, atrás dele. Ele abriu a porta, o sorriso travesso, a expressão determinada. Eu bati a porta antes que ele saísse. Ele tentou pegar meu braço. Eu empurrei ele. Ele me empurrou de volta. Iniciamos mais uma briga. Estávamos acostumados. Nunca machucamos um ao outro. Procurávamos imobilizar um ao outro, apenas. Ele era mais forte, mas eu era mais rápido. Mesmo bêbado, derrubei-o no chão. A essa altura quase não conseguimos segurar o riso. Subi em cima dele, ele deitado entre minhas pernas. Minhas mãos sobre os braços dele, prendendo-o ao chão. Nossos olhos se encontraram. O sorriso travesso dele se desfez. Eu não sabia o que estava acontecendo. Vendo-o ali, imóvel, a boca ainda mais vermelha pelo vinho contrastando com o branco da pele… Só tinha uma certeza em mente.
Você não queria que eu beijasse alguém? - colei meus lábios, nos dele, sugando de leve. Ele não se mexeu. Encarei como um encorajamento. O vinho me fez ir mais além. Pressionei mais meu corpo contra o dele, e arrisquei por a língua.
Era o meu primeiro beijo. Era diferente do que eu via na TV. Não vi folgos de artifício. Não ouvi sinos. Tinha gosto de vermelho, de vinho, e de infância. A língua dele não se moveu. Pelo menos não de início. Mas quando pensei ter notado ele reagindo ao beijo, ele me empurrou.
Saí de cima dele, e ele virou pro lado contrário ao meu. Ainda sentado no chão. Sem dizer nada, sem olhar pra mim. De pé, eu o encarava. Ou tentava. Porque a tontura quase me fez voltar ao chão. Eu não sabia mais como formular frases. Ele não se movia. Meu único impulso foi correr. Desci tropeçando as escadas da casa dele. A família dele se sobressaltou. Peguei minha bike, e pedalei. Pedalei como se minha vida dependesse disso. Ainda estava muito bêbado, e acabei caindo no caminho. Me ralei. Sangrei. Mas como benefício do álcool, não senti. Passei direto pelos meus pais. Eles se assustaram com a roupa suja e o sangue. Me tranquei no banheiro. Liguei o chuveiro. E pelo que pareceram horas, deixei as lágrimas se misturarem com a água escorrendo pelo meu corpo.
Meu pai deu um jeito de abrir a porta do banheiro, e me encontrou desmaiado dentro do box, com a água ainda caindo por cima de mim. Tive que contar a verdade. Ou pelo menos a melhor versão dela. Bebemos. Brigamos. Eu vim embora e caí. Minha mãe brigou muito comigo, um pouco por ter caído e me machucado por ser imprudente, mas mais ainda por ter bebido sem ter idade. E a bike ficou confiscada um tempo. Meu pai depois me confessou, de forma divertida e conspiratória, que aconteceu a mesma coisa na adolescência dele.
Julho e eu não voltamos a nos falar. Estávamos de férias da escola, o que contribuiu para a distância. Meus pais sempre perguntavam dele. A mãe dele quando me via na cidade, dizia sentir minha falta. Pedia pra eu aparecer, e reforçava dizendo que Julho estava sentindo muito a minha falta, falava até de comermos uma pizza. Com o tempo perceberam que havia algo errado conosco, mas não encheram muito, provavelmente por achar que era briga de moleque e ia passar rápido.
As aulas voltaram, e evitávamos um ao outro. Logo começaram as piadinhas por parte dos meninos e de algumas meninas que eu era viadinho. Foi um dos períodos mais difíceis da minha vida. Nesse meio tempo, me aproximei mais da Stefanie, e começamos a namorar. Ficamos alguns meses juntos, víamos filmes, séries, trocávamos carinhos, mas ela logo percebeu que as piadinhas tinham um fundo de verdade. A primeira vez que admiti meus sentimentos pra mim mesmo, foi com a ajuda dela.
Perto dos 17 anos, reuni forças que não sabia que possuía, e contei pros meus pais. Aquilo me sufocava, como se eu não estivesse vivendo a minha vida. Meu pai não acreditou de início. Mas quando percebeu que eu não estava brincando, sumiu noite afora. Minha mãe me abraçou, chorando, e disse que ia ficar tudo bem. Que ia ser difícil, mas ela sabia que eu era muito forte. E que eu sempre teria ela pra me apoiar. Meu pai não voltou pra casa naquela noite, e eu peguei no sono ouvindo o choro baixinho da minha mãe sozinha no quarto dela.
Na manhã seguinte a essa noite, acordei com meu pai, sentado a beira da minha cama. Achei que ia apanhar. Achei que ele ia mandar eu pegar as minhas coisas, e sumir. Mas ele me pediu desculpas pela forma como reagiu. Disse que era difícil pra ele, mas que eu continuava sendo seu filho, e seu amor não tinha mudado. Chorei bastante deitado no colo dele nessa manhã.
A partir daí, tudo foi mais fácil. As piadinhas na escola diminuíram. Comecei a conhecer outros garotos. Até tive alguns encontros, com direito a beijos e carícias íntimas. Mas nenhum cara me interessava… Porque eu ainda via na escola todos os dias a pessoa que me tirava do meu eixo.
Observei à distância sua voz mudar, e ela mexia comigo. Seu corpo também se desenvolveu na puberdade, e havia pelos em regiões que antes não estava ali. Eventualmente em dias quentes, o cheiro do suor dele era mais forte. Mas não cheirava mal. Tinha cheiro de algo primitivo, que mexe com nossos desejos mais profundos. Não que eu conseguisse ficar perto o suficiente pra sentir seu cheiro, mas às vezes dava sorte dele passar por mim depois do futebol. Perdi a conta de quantos sonhos diferentes eu tive, com momentos do nosso antigo cotidiano, que se misturavam com interações sexuais, e eu acordava molhado.
Mesmo no decorrer dos meses sem trocar uma palavra, trocávamos olhares. Sempre que eu chegava atrasado na aula, ele estava ali na carteira dele me observando de longe. Muitas vezes no intervalo, enquanto eu estava com meus amigos, encostado despretensiosamente em uma parede, e ele à distância com os amigos dele, nossos olhares acabavam se cruzando. Algumas vezes até nos cruzávamos nos corredores da escola ou na biblioteca, e parecia que ele ia falar alguma coisa, mas logo desistia. Ficamos alguns anos sem trocar palavra. Até o terceiro ano do ensino médio, quando o álcool se tornou mais frequente nas nossas vidas, e deu a ele a coragem necessária pra obedecer os impulsos do seu corpo.