OI, GALERA. TUDO BEM? PASSANDO AQUI PARA ENTREGAR MAIS UM EPISÓDIO E AGRADECER TODO MUNDO QUE ACOMPANHA A HISTÓRIA.
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A primeira lembrança da minha vida? Rosa cantando "Cartola", enquanto me fazia dormir. Aquilo se tornou um elo de ligação entre nós. Ela sempre teve uma paciência descomunal conosco, principalmente, se tratando do Lukas.
A primeira vez na creche fiz um escândalo horrível. A Rosa com toda sua paciência me pegou no colo e cantou "O Mundo é um moinho", seu sotaque marcante e a melodia doce conseguiram operar um milagre e eu entrei sem mais dramas.
Fiquei imóvel ao vê-la desmaiada no chão. Papai e Lukas a levaram para o quarto, enquanto isso, mamãe ligava para o médico da cidade. Ele demorou 30 minutos para chegar. André saiu para abrir o portão da fazenda.
A situação foi tão tensa que ninguém percebeu que ele estava em casa e usando minhas roupas. O Quintino também ficou inquieto, afinal, graças ao meu primo, conseguimos acudir a Rosinha. Ninguém conseguiu dormir, ficamos na sala aguardando o médico verificar o motivo do desmaio de Rosa.
Febre! A temperatura da Rosa aumentou de tal forma que o corpo não aguentou. Ele entregou alguns remédios para a mamãe, que pegou o celular e anotou os horários para medicar a Rosa. Fiquei por perto, não queria perder nenhum detalhe, não confiava muito na Dona Hellena com prazos que não fossem profissionais.
Por coincidência, a equipe do laboratório chegou para colher o nosso material. Doutora, que coisa mais dolorida, a moça introduziu uma vareta de plástico no meu nariz e retirou a mucosa, sim, isso foi antes dos testes rápidos chegarem no Brasil. O que alguns meses de diferença fazem, não é mesmo? Todos nós fomos testados, incluindo, os funcionários.
Tive o prazer de ver o teste da Rêh, saiu até um pouco de sangue, o pensamento tem poder, né? Eu sei, posso parecer um pouco maldoso agora, mas Dô, a culpa foi dela. O resultado demoraria um dia para ficar pronto, enquanto isso, a gente teria usar máscara, a equipe nos forneceu algumas, mas o papai também encomendou outras.
Nos reunimos no escritório, o meu pai falou sobre um possível contágio em nossa casa. O Lukas andava de um lado para o outro, parecia chateado. Ele mostrou o perfil do DJ, o mesmo que tocou em casa. Havia uma postagem, na qual, o homem confirmava o exame positivo para o Covid-19.
— Você foi uma irresponsável, garota! — Ele gritou, tendo que ser controlado pelos meus pais.
— Ei! Sem acusações. — Interveio minha mãe. — Não é um momento de briga.
— O Lukas tem razão. Maldita hora que a Regina veio para cá. Se acontecer alguma coisa com a Rosa, eu nunca vou te perdoar. — Falei me aproximando de Rêh, que chorava copiosamente.
— Higor! Lukas! Calados. — Pela primeira vez, o meu pai gritou conosco.
O papai não é de explodir, na nossa casa, ele sempre foi o mais tranquilo. Eu não conseguia olhar para a Regina. Lembrei do dia da festa, da forma como ela menosprezou a situação. Coloquei a máscara e entrei no quarto da Rosa. Sentei numa poltrona e uma onda de emoções atingiu meu coração.
As lágrimas não tiveram dificuldade para descer, o estresse era grande demais. Só de pensar em perder alguém tão importante para mim, fazia o meu estômago doer. A Rosa é mais que uma empregada, ela é simplesmente tudo, o meu sol, meu chão e minha mãe.
Do lado de fora, a vida acontecia normalmente. Pela janela, vi o André carregando uma caixa para o estábulo. Caramba, com toda essa confusão esqueci dele. Perdido em meus pensamentos, quase não escuto a Rosa chamar por mim.
— Oi, Rosinha. — Disse me aproximando e pegando na testa dela.
— Eu preciso fazer o almoço. — Ela falou tentando se levantar.
— Ei, não se preocupa. A mamãe está cuidando disso. — Expliquei. — Toma um pouco de água. — Peguei a jarra de cerâmica, despejei a água no copo e ofereci para a Rosa.
Queria muito transferir todos os sintomas da Rosa para mim. Eu era jovem, tecnicamente, aguentaria o Covid-19 no meu corpo. A Rosinha estava com um vestido florido, que a mamãe comprou na Islândia. Seus cabelos presos em um coque. Ela parecia tão frágil, mas a serenidade continuava ali.
A Rêh acompanhou a Rosa no banheiro, a gente não queria deixá-la sozinha, afinal, poderia desmaiar de novo. Para o almoço, o papai preparou uma sopa de alho com agrião. Não sabia que poderia ser tão gostosa, comi acompanhado de pães torrados. Quintino estava cabisbaixo, também não dei a atenção devida para o moleque.
— Ei, você tá calado. — Puxei assunto me sentando ao lado dele.
— Sei lá. Muita emoção para mim. — Ele confessou tirando os óculos e limpando os olhos. — Você acha que estamos infectados?
— Não sei, Quintino. Queria dizer que não, mas eu não estou na minha melhor fase, sabe?
— Higor, eu estou com medo.
— Ei, não se preocupa, ok? Vai dar tudo certo, prometo! — Tentei agir da melhor forma, mesmo não tendo certeza de nada.
Outra pessoa que me preocupava naquele momento era o Lukas. A forma como ele agiu mais cedo, lembrou no dia em que eu o confrontei. Será abstinência? O Lukas teria controle sobre as drogas? Ou elas estavam controlando a vida dele?
À tarde, subi com alguns lanches gostosos e bati na porta do Lukas. Ele abriu, revirou os olhos e deitou no chão, aparentemente, fazia abdominais. Sentei ao lado dele, ofereci um fine de morango, o preferido do meu irmão.
O Lukas tinha um corpo muito bonito, as tatuagens davam um charme extra, no chão, ele subia e descia com facilidade, acho que não aguentaria mais de quatro. Ao contrário dele, sou magro demais, ombros largos e uma cabeça gigante. Tá, eu sei, não devo me depreciar, mas é a pura verdade.
Após uma conversa leve, levando em consideração a situação, mais uma vez tentei abrir os olhos do Lukas, mas quando tentava tocar no bendito assunto, ele fugia. Depois de mais uma batalha perdida, desci para passar o tempo, a Rosa descansava, e eu queria passar o tempo.
André capinava um dos cantos da casa. Vestia uma camiseta e bermuda, não se importava em ficar sujo, e na real, nem eu. Sua pele morena e seus cabelos molhados por causa do suor destacavam um sorriso tímido, mas que acabava comigo. Eu podia passar o dia olhando para o André.
— A Rosa está bem? — Ele perguntou sem olhar para mim, prestando atenção na grama que capinava.
— Medicada. Bem, ainda é cedo. André, sobre o que aconteceu ontem...
— Higor, não vou mentir. Gosto de você. Sempre gostei, mas acho que esse não é o momento para a gente conversar sobre isso. A última coisa que quero é me declarar desse jeito. — Ele falou rindo, deixando o terçado no chão e limpando o suor da testa.
— Maldito... — Soltei.
— Oi?
— Nada, nada. Eu vou... — Andando de costa e tropeçando em uma mangueira. — Opa, vou entrar. Dar uma olhada na Rosinha. Hoje a aula está cancelada, mas quero que faça todos os exercícios da página 30 a 35.
— Sim, professor! — Disse André fazendo um cumprimento militar.
Doutora, eu apaixonado! Por um homem! Sendo correspondido! Ok! Hora de surtar! Infelizmente, esse não é um momento tão propício para romances. Logo, a presença do corona vírus na nossa casa começou a incomodar. Dois funcionários de confiança, Renato e Kaleb, pediram demissão, alegaram que voltariam para Goiás, cidade natal deles.
Aquilo pegou meus pais de surpresa, afinal, o trabalho ficaria nas costas do Seu Nestor e André. Mas, sem ter o que fazer, papai assinou a demissão deles e deu uma gratificação pelo tempo de trabalho. E, agora? Pensei comigo mesmo. A situação ia ficar complicada, tudo culpa da Rêh, aquela idiota.
A coitada da mamãe, que já estava surtada, agora limpava todos os cantos da casa. Ela comprou litros e litros de álcool em gel. Incluindo, um tipo de esfregão com um compartimento para armazenar líquidos. Eu a ajudei na limpeza da cozinha. Haviam alguns móveis que não alcancei, então, subi em uma cadeira. Durante a organização, encontrei uma lista feita pela Rosa.
Corte do Sisu na UFRJ: Nota de corte média: 788 Menor nota de corte: 671 pontos (Ciências Matemáticas e da Terra)Maior nota de corte: 822 (Medicina)
A Rêh entrou na cozinha reclamando de unha que havia quebrado por causa da vassoura. Me subiu um ódio tão grande. A minha mãe contou sobre os dois funcionários que pediram demissão, ela também explicou que nós colocaríamos a mão na massa. Afinal, ninguém procurava emprego, pelo menos, foi a informação passada pelo Seu Nestor.
— Está vendo isso aqui? — Questionei a Rêh mostrando o papel.
— Não!
— É uma lista que a Rosa fez. Sabia que ela estava estudando para o Enem? Regina, você conseguiu mexer com a única coisa que é importante na minha vida. Você pode colocar meu nome nos sites de fofoca, pode tentar me humilhar, mas não mexe com a Rosa. — O discurso saiu mais profundo do que imaginei, e claro, não contive as lágrimas, malditas lágrimas.
— Higor, eu sinto muito, ok? Eu sei que não sou a melhor irmã do mundo. Mas, a Rosa é tão importante para mim, quanto é para vocês. — Ela respondeu chorando e colocando as mãos no rosto. — Eu estou arrependida.
— Então, pegue esse arrependimento e engole. Por que eu já avisei, se algo acontecer com a Rosa...
— Higor, chega. Eu não estou te reconhecendo. — Interveio minha mãe.
— A senhora não me reconheceria nem se quisesse. — Falei saindo da cozinha, deixando a minha mãe arrasada e a Rêh em prantos.
Tudo bem, Higor, desnecessário, mas o que ia fazer nessa situação? Os sentimentos estavam à flor da pele, qualquer mudança de humor trazia uma gama de sensações extraordinárias. Queria gritar, socar alguém, fazer a preocupação passar. Liguei minha playlist, coloquei o volume no máximo, e ali no banheiro, desnudo, apenas desabei.
Estava tão exausto, emocional e fisicamente, acabei adormecendo pelado na cama. Acordei no dia seguinte com uma forte dor de cabeça, parecia que um caminhão havia passado por cima de mim. Vesti uma blusa do LOL, com o personagem Yasuo estampada, um poderoso espadachim. Catei a primeira calça que vi, uma verde que usei no dia anterior. Arrumei o cabelo e desci.
Quando cheguei na cozinha, a minha família já estava lá, eles se assustaram quando me viram. Tentei chegar mais perto, mas meu pai pediu para eu não dar um passo. Eles estavam utilizando máscaras de proteção respiratória do tipo PFF2, uma das mais utilizadas para prevenir o Covid-19, de acordo com informações do Quintino.
Olhei para a mesa e observei alguns papéis, os exames haviam chegado, e pelo visto, os resultados não foram os melhores. Um médico apareceu e entregou um kit de máscaras. Tive dificuldade para abrir a embalagem, ninguém quis me ajudar. Coloquei a máscara, e precisei seguir meus pais até o escritório.
— As notícias são ruins, não é? — Perguntei, ainda tentando me acostumar com a máscara de proteção.
— Higor, filho... — Balbuciou minha mãe, tentando não deixar o nervosismo aparecer.
— Higor. — O médico tomou a dianteira da conversa. — Me chamo Herbert Villar. O resultado do seu exame para Covid-19 deu positivo.
Aquelas palavras me atingiram feito um raio lançado por Zeus. O médico continuou falando, mas depois do "deu positivo" não prestei mais atenção a nada. A minha mãe chorou e a tristeza tomou conta do meu pai. Por um "milagre" , nenhum outro membro da minha família pegou a doença. Rosa e eu, os dois únicos inocentes fomos sorteados nessa loteria de merda.
— A Rêh não pegou? — Questionei voltando a mim.
— Felizmente não, mas todos vocês vão ficar de quarentena. — Respondeu o médico, que mais uma vez tentou me tranquilizar. — Estamos contigo! Você é jovem, por enquanto, não existe motivos para preocupação.
— Garota do inferno. Enxerida. Vou cortar o cabelo dela. — Falei baixo cerrando os punhos, mas com certeza eles ouviram. — E a Rosa. A prioridade precisa ser ela. — Falei.
— Ela vai ser transferida para o Rio de Janeiro...
— Não! — Gritei cortando o médico. — A Rosa não vai sair dessa casa. — Fiquei em pé, mas não saí do lugar. Meus pais se assustaram.
— Higor, ela precisa do melhor tratamento. — Tentou dialogar meu pai.
— Não, não! — Disse andando de um lado para o outro. — Vocês sabem o que vai acontecer se levarem a Rosa para um hospital. Isso não é uma opção. — Continuei.
— O que está acontecendo? — Quis saber Lukas entrando junto a Rêh e Quintino.
— Você! — Gritei olhando para a Rêh. — Isso é tudo culpa sua, cretina!
— Desculpa. — Ela pediu chorando. — Eu não queria...
— A Rosa não vai sair dessa fazenda. Vocês tem dinheiro, não tem? Gostam de se exibir nas redes sociais com barcos, viagens e luxo. Você. — gritei olhando e apontando para a Rêh. — É uma hipócrita, escrota e narcisista, na hora que você mais precisou a Rosa estava lá. Fingir carência se escondendo atrás de festas e álcool não vai ser a solução para os seus problemas.
— Higor... — Soltou Lukas.
— O quê? O garoto de ouro! — Gritei batendo palmas. — O cara que compra os melhores carros do ano, namora todas as modelos e gasta milhões com drogas...
— Como assim? — Perguntou meu pai. — Drogas?
— É pai, o seu filhinho, o Lukas perfeito é um drogado! — Falei fora de mim. — Escuta aqui! Vou repetir mais uma vez, a Rosa não sai dessa cidade. Vocês se virem para conseguir trazer a estrutura necessária para ela se tratar aqui. Caso contrário, fico internado no mesmo hospital que a Rosa. E quem sabe não morro logo, afinal, é isso que vocês sempre quiseram, não é? — Finalizei saindo do escritório.
Tá! Fui mais uma vez desnecessário, mas todos mereceram ouvir aquelas palavras. Desde sempre, a minha família sempre colocou a indústria do entretenimento em primeiro lugar. A senhora no meu lugar faria diferente, eu sei. Infelizmente, a culpa foi a única arma que consegui utilizar.
Entrei no quarto da Rosa, já havia uma enfermeira cuidando dela, pedi licença e sentei ao lado dela. A Rosinha estava usando um pijama que comprei. Na ocasião, nós estávamos comemorando a formatura dela no EJA, uma modalidade que dá possibilidade a adultos que não tiveram acesso à educação na escola convencional, se formem.
A enfermeira, chamada Nadine, uma mulher negra, alta e magra, explicou que a Rosa havia recebido alguns medicamentos pesados. Soltei um suspiro de irritação, ainda tentava aceitar o fato que eu também estava infectado. Ela conversou bastante comigo, até que começou a fazer os exames iniciais.
Respiração, ok! Pulmão, ok! Olhos, ok! E o coração? O coração não conta, Nadine! Eu queria muito acordar desse pesadelo. Tomei algumas pílulas, na verdade, nem perguntei para o que serviam. Segui para o meu quarto, liguei a caixinha de som e soltei minha playlist "Para Não se Matar".
Não demorou muito e Dona Hellena entrou. Ela carregava uma bandeja de madeira, e em cima várias comidas gostosas. O aroma do Nescau despertou meu apetite, a barriga até roncou, mesmo condenado ainda precisava comer. A mamãe colocou a bandeja no criado— mudo e sentou mantendo uma distância.
— Higor, nós conversamos bastante, quer dizer, você instaurou uma guerra, mas a Rosa vai ficar. Eu sinto muito por tudo. — Ela falou, e meu coração doeu, pois, a culpa não era dela.
— Mãe, desculpa também. Eu não queria dizer tudo aquilo. Por favor, não faz nada com o Lukas. Ele precisa de ajuda. — Falei chorando.
— Não se preocupa. Vamos ter uma conversa ainda. Você fez a coisa certa, apenas muito performático, mas confesso que fiquei orgulhosa. Nunca te vi desse jeito. Tão decidido. — Ela disse levantando, pegando a bandeja e colocando na cama. — Agora come. E foca em ficar bom.
— Mãe, os funcionários estão bem? Alguém ficou doente? — quis saber, mas acho que fui óbvio demais.
— Filho, o André está ótimo! O exame dele deu negativo. Um verdadeiro milagre. Agora vem a parte chata.
— Chata?
— Sim, filho. Você está proibido de sair do quarto. Uma equipe vem desinfetar suas coisas. São 14 dias!
14 dias! 14 dias trancado no quarto. Eu não acredito. Queria matar minha irmã. Espirrar na cara dela. A pior parte? Tinha um assunto inacabado com o André. Que merda, Regina Duarte.
E assim começou, a quarentena dentro do isolamento social. Mas achei uma motivação para lutar pela vida, acabar com a Rêh. Eu sei, vingança não é a solução, mas a vadia merecia. Eu teria tempo suficiente para arrumar o plano perfeito.
***
"Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés"
(CARTOLA)