[LGBTQ+] PANDEMIC LOVE - DIÁRIO DE UMA QUARENTENA / 13 - DEFENDA-SE COMIGO

Um conto erótico de EscrevoAmor
Categoria: Gay
Contém 2449 palavras
Data: 22/08/2020 19:07:46

"Romeu e Julieta. Bentinho e Capitu. Eugênio e Margarida. Sabe o que esses casais têm em comum? São todos oriundos de paixões impossíveis. Durante muito tempo, tentei negar algo que me consumia por dentro. Eu gostava de homens, sempre gostei, mas o preconceito falou mais alto e tive que entrar no padrão que a sociedade pregava.

Como já contei, meu pai sempre sonhou alto para a dinastia da nossa família. Afinal, ele veio de uma família humilde de Pernambuco e não queria o mesmo destino para os filhos. Que ironia, não né Querer o bem, obrigando os filhos a um futuro sem qualquer cor.

Desde sempre estudei, queria dar orgulho para o seu Ernesto Duarte. Não lembro detalhes da minha infância, mas segundo a Dona Francisca, minha mãe, nós moramos alguns anos em Arco Verde, um município pernambucano. Depois, mudamos para a capital.

Em Recife, papai conseguiu um emprego de motorista de ônibus. O primeiro a ganhar um investimento foi meu irmão mais velho, Amadeu. O garoto era chato, mas tinha uma habilidade única para jogar futebol. Meus pais viram nele uma oportunidade de ouro.

Eu por outro lado, continuei estudando. Sempre me considerei diferente dos meus amiguinhos. Enquanto eles queriam correr atrás de pipas, eu só assistia. Os corpos morenos, aquele cheiro de pré-adolescentes, os cabelos pretos ao sol, os músculos se contraindo para manter as pipas no céu. Não pertencia àquele universo, então, coube a mim, o papel de observar.

Na escola, nunca me considerei popular, mas encontrei um bom grupo de amigos. Gostava da atenção, então, após o treino de educação física, o professor anunciou que uma peça seria produzida por nós. Ele me convidou para ser o protagonista.

Naquele dia, corri para casa, era apenas um adolescente e a possibilidade de fazer algo diferente me animou. Cheguei eufórico em casa, a única que ficou feliz com a novidade foi minha mãe, aquela mulher deveria ser canonizada.

"Teatro é coisa de menina!", exclamou papai. Ele ficava mais preocupado com a performance esportiva de Amadeu. Lembro que a mamãe costurou a roupa que eu usaria na peça. Na grande estreia, todos os pais foram prestigiar seus filhos, menos o meu.

Eu não liguei, de verdade. Eu conhecia a personalidade do papai, aquele homem era tinhoso. Me saí muito bem na peça, nunca senti nada parecido, uma mistura de medo e felicidade. Só que tudo o que é bom dura pouco.

O Amadeu sofreu um acidente de ônibus e ficou paralítico. Aquilo destroçou minha família, principalmente, seu Ernesto. A cobrança do futuro da família recaiu nos meus braços. Nessa época que comecei a juntar os panfletos e criei a caixa dos sonhos.

Em casa, tive que trabalhar em dobro, além de estudar. Os meus amigos foram se afastando naturalmente, então, vivi um dos piores momentos da minha vida. Além de beber, papai ficou violento, ainda mais com o Amadeu. Como se o pobre coitado fosse culpado pelo acidente.

Me formei com as melhores notas, entrei na faculdade de direito e coloquei uma máscara de felicidade, algo que não queria. Em casa, as coisas ficavam piores, o Amadeu ficou depressivo e o papai alcoólatra. A única fortaleza que eu tinha era minha mãe, não canso de exaltar as qualidades dela.

A Universidade Federal de Pernambuco foi um divisor de águas para mim. Apesar de estudar Direito, sempre conferia as apresentações dos cursos de humanas. O bloco deles vivia na maior festa, inclusive, tinha dias que eu não voltava para casa na hora do almoço.

Lembro como se fosse hoje, em uma das performances conheci uma pessoa que mudou minha vida, o encontro aconteceu no dia 20 de março de 1978. Era um sarau de poesias, já estava familiarizado com todos os rostos dali, mas alguém chamou atenção. O aluno do quinto período de Letras, Rodolfo Albuquerque, subiu ao palco, aparentemente, nervoso e recitou uma passagem de "Romeu & Julieta".

"Quem é aquela dama, que dá a mão ao cavalheiro agora? Ah, ela ensina as luzes a brilhar! Parece pender da face da noite como um brinco precioso da orelha de um etíope! Ela é bela demais pra ser amada e pura demais pra esse mundo! Como uma pomba branca entre corvos, ela surge em meio às amigas. Ao final da dança, tentarei tocar sua mão, pra assim purificar a minha. Meu coração amou até agora? Não, juram meus olhos. Até esta noite eu não conhecia a verdadeira beleza"

Ele desceu e tropeçou no cabo do microfone, por pouco, o Rodolfo não caiu de cara no chão. O ajudei, nossos olhos se encontraram, nunca havia sentido algo assim. O meu coração bateu mais forte, a boca ficou seca e o cérebro não conseguia formular frases.

Conversamos durante horas, nunca tive uma sintonia tão grande com outra pessoa, nem mesmo, meus amigos da escola. Rodolfo era idealista, sorridente e sonhador, coisas que me apaixonei na hora. Olhei no relógio e fiquei assustado, ia perder o horário do ônibus. Então, marcamos de nos encontrar no dia seguinte.

Naquela noite, não consegui dormir. Meus pensamentos voltavam para o Rodolfo. Sete letras que mudaram a minha vida. Porém, a realidade das nossas vidas seria um inimigo sem igual. O tempo foi passando e nos tornamos melhores amigos. Viajamos, celebramos e, também, choramos juntos. Um grande companheiro, sofri demais pois os sentimentos só cresciam. Eu um homem, apaixonado por outro? Como a sociedade veria esse relacionamento?

O mundo desmoronou na minha cabeça quando o Rodolfo anunciou que estava noivo. Ele marcou o noivado com Estefane, uma conhecida de sua família. Lembro que saí do trabalho e bebi até cair no chão. Queria tirar aquele sentimento ruim do meu peito.

Enquanto sofria, o mundo em minha volta continuava. Arrumei um emprego novo que pagaria muito melhor. Comprei uma casa descente para os meus pais. A vida continuava, mesmo todos esses sentimentos me cortando as entranhas.

No trabalho, conheci uma das sócias, a Sueli. Um grande exemplo de mulher, colocava qualquer advogado no chinelo. Em uma das nossas bebedeiras de trabalho, nos aproximamos. Decidi convidá-la para o casamento de Rodolfo, que demorou quase três anos para acontecer. E, cada vez mais, os nossos laços de amizade se entrelaçavam.

Fui convidado para ser o padrinho de casamento. Eu, que estava apaixonado pelo noivo seria o padrinho de casamento. A vida pode ser cruel e injusta, não é? Chorei muito quando recebi o convite, mas coloquei a minha máscara de melhor amigo e aceitei.

O que um padrinho faz? De acordo com meus amigos, prepara uma despedida de solteiro. Mesmo contra vontade, tive que organizar uma festa. Eu devia ser a pessoa mais azarada do universo. Liguei para a boate mais famosa de Recife, lembra que isso foi nos anos 80. A boate se chamava Hippopotamus, o local mais barato que achei.

Bebidas, música e mulheres, aquele não era o meu universo. O Rodolfo também estava desconfortável, queria agarrar ele pelas mãos e sair dali. Para espantar a tristeza, pulei de cabeça na cachaça, sempre a maldita cachaça. Até que consegui superar as expectativas, organizei uma festa maravilhosa.

Nunca abracei tanto o Rodolfo. Fiz declarações de amizade e cantamos juntos no palco. Como estávamos altos por causa das bebidas, decidimos nos hospedar em um hotel. Subimos cambaleando, segurei o meu melhor amigo todo o caminho. Entrei no quarto e o coloquei na cama.

Ele estava apagado, porém, lindo. Passei a mão direita em seus cabelos, rosto e boca. Os traços fortes do Rodolfo me chamavam a atenção, a boca dele carnuda, eu não consegui, perdi o controle e o beijei. Olhei para ele, e quis morrer, o Rodolfo estava acordado.

Tentei falar alguma coisa, mas ele me puxou e tascou um beijo cinematográfico em mim. Se existia alguma linha naquele relacionamento, nós esquecemos e a ultrapassamos. O Rodolfo beijava bem, um gosto de álcool com coxinha. Um beijo delicioso. Nos entregamos ao momento, cruzamos a maldita linha.

Poderia fazer o bebum e esquecer tudo que houve entre nós, mas não consegui. Lembrava de cada beijo, toque e sensação. O Rodolfo ficou estranho comigo por semanas. Na frente da Estefane, ele colocava a máscara de melhor amigo, quando estávamos a sós, nenhuma palavra. Eu fiz o estrago, ele colocou gasolina. Quem tinha mais culpa?

Em casa, a pressão crescia, afinal, terminaria a faculdade e não tinha arrumado uma noiva. Meus pais conseguiram várias pretendentes, inclusive, o Amadeu engravidou uma delas e precisou casar.

Terno? Ok. Gravata? Ok. Anéis? Ok. O pior momento da minha vida aconteceu. Tive que olhar o Rodolfo casar. Segurei o choro várias vezes. Eu o amava. Não tinha nenhuma dúvida, ele foi a primeira pessoa com quem tive uma relação. O coração estava destruído, mas o sorriso no rosto, de orelha a orelha. Sentei em uma mesa com alguns parentes do Rodolfo, ao meu lado direito, Sueli. Conversamos bastante, já que o meu melhor amigo me evitava.

Queria ir embora, mas ainda tinha uma sessão de fotos dos padrinhos do casamento. Fui ao banheiro da casa de evento, olhei no espelho e vi o reflexo da derrota. Só, que para a minha surpresa, Rodolfo entrou e fechou a porta. Ele estava transtornado, os olhos marejados e suado, ele se aproximou e me beijou, igual ao dia da despedida de solteiro, um beijo visceral e apaixonado.

O afastei, questionei o que estava acontecendo entre nós. Ele não soube responder, uma mistura de medo e tristeza, aquilo eu conhecia bem. Decidimos nos encontrar em outra situação, a Estefane não merecia aquilo. Nós dois, apaixonados? Pensei comigo mesmo. Não queria viver uma vida fantasiosa, escondida. Era o momento ideal de assumir às rédeas da minha vida.

Só que o álcool aconteceu na minha vida. Sempre esse maldito. A Sueli e eu, depois da recepção do casamento, fomos a um bar. Entre uma cerveja e outra, nos beijamos. A boca dela era diferente, macia e com gosto de morango. Tive uma reação inesperada e acabamos indo para a cama. Foi incrível, o que aquilo significava? Gostava de mulheres ou homens?

Começamos a sair, e por um bom tempo, esqueci o fantasma do Rodolfo. Ele também se mantinha ocupado, o casamento e o lançamento do seu primeiro livro, um romance policial intitulado "Cárceres do Destino". Fiquei feliz, e claro, adquiri uma cópia e comecei uma coleção de livros dele. Todos estão na biblioteca da fazenda, um refúgio que criei para retornar ao passado.

Enfim, alguns meses se passaram e uma notícia virou meu mundo de cabeça para baixo, a Sueli ficou grávida. Fizemos uma cerimônia simples para os padrões da época, apenas nossas famílias e amigos, incluí o Rodolfo, mas ele estava em turnê de lançamento do livro. Também consegui realizar o grande sonho do meu pai, só que ele não chegou a conhecer a neta, faleceu por complicações do álcool.

Naquele ano, consegui uma promoção irrecusável, porém, a vaga era em São Paulo. Pensei bastante antes de aceitar, na verdade, queria conversar com o Rodolfo. Ficávamos horas no telefone, mas nunca tocávamos na nossa relação, apenas sobre o trabalho, família e política. Eu não me importava, só queria ter ele próximo.

Resolvemos viajar, um último momento a sós. Fomos para Porto de Galinhas, consegui emprestar a casa de um sócio da empresa. Foi instantâneo, mal chegamos e começamos a nos beijar, como dois animais no cio. Depois do final de semana, não seria apenas o preconceito que nos separaria, eu viajaria para o outro lado do Brasil.

Quase não conversamos de fato, não tinha tempo. Queria explorar e guardar na memória cada parte do corpo dele. Após a viagem, tudo voltaria ao normal, colocaríamos a máscara do cinismo. Afinal, éramos homens de família, responsáveis e íntegros. A despedida doeu, confesso, achei que conseguiria dizer adeus.

Caminhamos durante três horas, primeiro pegando a brisa do mar no rosto, depois contemplando o pôr do sol e observando as estrelas nascendo no céu. Tomei coragem e segurei sua mão, ele apertou firme, nenhuma palavra foi dita em três horas, não era necessário.

Viajei para São Paulo, trabalhei bastante, ajudei meus familiares, dei uma casa digna para minha mãe. Fiz tudo o que a sociedade mandou, fui um bom menino, mesmo com os tropeços. Anos depois, recebi a notícia que o Rodolfo havia sofrido um acidente de carro, ele não sobreviveu.

Não sabia direito o que sentir. Viajei para Recife, participei do velório e enterro, o Rodolfo teve três filhos lindos, o mais velho me assustou, ele era a cópia do pai. Tive a oportunidade de dizer o verdadeiro adeus. Chorei, lamentei e fiquei com os bons momentos. Antes de voltar, passei em uma livraria e comprei todos os exemplares dos livros dele. Queria honrar meu grande amigo.

Finais trágicos. Por que os leitores adoram os finais trágicos? O que teria acontecido se eu tivesse aberto meu coração para o Rodolfo e, ele tivesse me aceitado de volta. Nós teríamos sido felizes? Não vou ser hipócrita, amo a família que construí, amei a Sueli até os últimos dias. Sei que fui fraco, tentei provar algo que não estava ao meu alcance. Cruzei a linha e, ela decepou meu coração.

Desculpa. Minhas filhas, Hellena e Ana, quero pedir perdão se não fui o pai que vocês queriam. Graças a Deus, que vocês seguiram um bom caminho na vida. São independentes, guerreiras e realizaram o meu sonho de ter netos lindos. Tive uma boa jornada, cheia de acertos, tropeços e amores. Sim, tive uma ótima jornada.

Sobre o prêmio, não vou fazer rodeios. Dentro da biblioteca subterrânea, existe um cofre atrás de um dos quadros. Deixei alguns objetos pessoais que me ajudaram nesta caminhada. Se você achou sozinho parabéns, mas tente partilhar com os outros. E dou permissão para que você entregue essa carta aos meus familiares. Espero que tenha se divertido. Abraços."

Aroldo Duarte.

***

Não conseguia criar uma linha de raciocínio, Doutora. O meu avó era bissexual. Acho que fiquei sentado na mesma posição por horas. Reli a carta outra vez e chorei demais. Nadine até pensou que era devido ao corona vírus.

Eu tive tanta sorte de ter pais compreensíveis. Tudo por causa do vovô. A mamãe não podia ser um exemplo, mas não julgou minha decisão, mesmo pegando mal para a carreira dela. Sou um sortudo, posso amar e ser amado. Obrigado, vovô! Nunca vou esquecer. Nunca!

"Defenda-se com um sorriso que te faz bem

Defenda-se com sorriso, me ame também

Eu sei o que te toca

Eu sinto teu calor

Eu amo tudo

E tudo o que teu amor mostrou

Defenda-se da solidão que te acompanha

Defenda-se da noite escura que te estranha

Eu sou o teu amigo

Eu sou o teu amor

Eu quero ser o tudo que você sonhou"

(Pedro Quevedo)

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