. (Parte 1)
Nessa cidade geralmente faz calor essa época do ano. No entanto, sinto como se um temporal gelado caísse lá fora. Até posso ouvir o vento arremessar gotas frias de chuva contra o vidro da janela da sala. Minha mãe me olha melancólica e triste, enquanto chamo o uber para vir me resgatar de volta para a luz.
- Quando chegar, você pode entrar no condomínio e me aguardar. Estou no bloco à direta.
- Boa noite. Ok.
O motorista pareceu bom.
Ainda no elevador, meu sangue volta a passear apressadamente pelas veias, como uma matilha desajeitada de filhotes de cachorro, recém liberta do canil.
“Corolla preto. Ótimo. Pelo menos essas máscaras contra esse maldito vírus servem de mordaça para calar esses motoristas tagarelas.”
-Maycon? – perguntei, após conferir o nome na tela do celular.
-Bruno?
Entro no veículo desajeitadamente, mas sem perder minha classe.
“Eu adoro esse nome, Maycon...”
O carro desliza pelo asfalto. Com as janelas abertas, posso sentir o vento quente da liberdade.
- Você mora aí há bastante tempo, não é?
- Er...sim...?
Na verdade, é a casa da minha mãe, onde eu cresci.
-Está lembrando de mim? Com essa máscara é difícil reconhecer as pessoasSou o Maycon.
Dei de ombros. “Eu sei lá quem é Maycon!” – pensei. Alguns instantes depois, das cavernas mais profundas e dolorosas da minha memória, sai a lembrança de um jovem mestiço de pele clara, com um corpo invejavelmente definido, braços grossos e musculosos, peito aberto e desenhado como uma escultura de caramelo, um par de mamilos pontudos cuidadosamente depositados acima de um tórax inflado, abdômen que expunha sem vergonha incontáveis gominhos hipertrofiados, tudo isso envolvido em uma pele de doce de leite aveludado e fosco. Eu devia ter apenas 12 anos naquela época e já me arrepiava sem explicação, do meu ponto de vista inocente, ao admirar o corpo masculino de Maycon. O oposto dele, magro, fraco e tímido, eu tinha medo e atração pela sua macheza. Acredito que ele deveria ter 5 ou 7 anos a mais do que eu.
- Lembrei! Nossa! Quanto tempo! Como você está?
Nunca havíamos sequer nos cumprimentado na vida. Apesar de ele nunca ter sido mau comigo, seu grupo de amigos era cruel. Eu tinha pânico dos meninos mais velhos e torcia para que eu não fosse a próxima vítima, o objeto de humilhação e divertimento da turma dos fortes que jogavam futebol e transavam com as meninas. De alguns eu confesso que não consegui escapar, mas ele, naquele momento meu motorista de uber, foi, como eu pensava até então, apenas indiferente à minha existência.
O papo e meus pensamentos fluíameu nunca mais vi o Carlos. Ele era muito comédia.
“Era um homofóbico de merda. Isso sim!” – Pensei.
- Sim, ele era engraçado mesmo. – Respondi, entretanto.
- Hã?
-ELE ERA ENGRAÇADO MESMO – disse-lhe mais alto.
- Essas merdas de máscaras atrapalham a voz de sair. Eu quase não te escuto daí de trás.
- SIM. É MESMO.
- Peraí.
De repente, Maycon saiu da via, subindo na calçada da rua com as duas rodas da direita do veículo. Um motorista irritado buzina, repreendendo a manobra imprudente do meu motorista.
- Tomar no cú, viado! Eu dei seta! Cuzão!
“Eu ainda tenho que ouvir essas coisas. E essa agora?” – pensei, recompondo-me do susto e soltando devagar o apoio de braço ao qual tinha me agarrado, para não ricochetear como uma bola de pinball no banco de trás.
- Desculpa.
Apenas acenei em resposta.
- Senta aqui na frente. Daí de trás não consigo te ouvir direito.
Por alguns instantes fiquei congelado, tentando recordar-me do momento em que minhas respostas monossilábicas poderiam ter significado para Maycon que eu queria conversar.
Ele apenas parado, aguardando que eu mudasse de lugar.
“Ai, meu Deus, me ajuda.”
Encarou-me, questionador. Respirei fundo e, não sei se por um medo que sempre tive de caras como ele, ou se para não parecer antipático, mudei de lugar.
O assunto continuou. Eu, monossilábico e com as mãos suando.
O carro para no sinal e ele se vira para mim. Percebo que me olha de cima a baixo. Sinto que estou ficando ofegante, mas mantenho a minha cabeça voltada para frente, implorando aos céus para que o sinal abra e que ele não perceba como estou constrangido.
- Você está diferente – disse-me ele bem devagar.
- Você também – respondi no tom mais grave que minha voz poderia alcançar naquele momento.
- Sim. Estou – disse batendo na barriga – Engordei. Não estou mais trincado.
- Mas os braços continuam fortes.
“Bruno, cala essa boca, pelo amor de Deus. Nós vamos morrer aqui.”
Maycon respirou fundo e olhou para frente. Eu comecei a tremer. Então ele puxou a manga da camisa e dobrou o braço direito, contraindo o bíceps. Depois esticou o braço, para contrair o tríceps e dobrou novamente, exibindo-se. Achei melhor olhar, mas rapidamente.
“Socorro! Minha nossa senhora, me salva desse macho gostoso.”
-Você acha? – Perguntou-me.
Eu só pude tornar a olhar para frente e respirar fundo e devagar. Tentando disfarçar, abri a mochila, peguei as chaves de casa e guardei no bolso. Tudo isso só para colocá-la no meu colo e esconder o volume do meu pênis ereto. Eu estava taquicárdico.
Seguimos em silêncio por aproximadamente dois quarteirões. Maycon apoiou o cotovelo esquerdo no descanso de braços da porta do motorista e levou o punho fechado à boca. Em seguida, inclinou-se levemente para a esquerda, passando a segurar o volante apenas com a mão direita, mantendo o braço esticado. Depois me olhou disfarçadamente. Eu, apesar de me manter imóvel olhando para frente, não piscava e usava minha visão periférica (super treinada, diga-se de passagem), acompanhando discretamente todos os movimentos daquele homem. Foi então que Maycon, com a mão esquerda, ajeitou o pau na calça e novamente levou a mão à boca. Olhei.
“Que maludo! Morri!”
“Ele está de pau duro! Com certeza!”
Abri mais a janela para tomar ar. Estava precisando. Resolvi puxar um assunto depois que parei de me abanar.
- E o Fabinho? – perguntei com a voz embolada – Tem falado com ele?
- Que nada! Aquela bicha sumiu do mapa! Deve ter arrumado um macho – respondeu, gargalhando.
“Que babaca!”
- Você é bem desbocado, hein? Você é assim com todos os passageiros? – disse-lhe, alterado, jogando minha mochila no chão do carro e fazendo meus típicos gestos delicados, ao mesmo tempo histéricos.
Imediatamente, Maycon ajeitou-se no banco e voltou a dirigir com as duas mãos. Abriu a boca para dizer algo, mas em seguida fechou-a. Respirou fundo.
- Desculpa, Bruno. Acabei ficando à vontade com você. É que somos amigos, não somos?
“Não.”
- Não somos? – insistiu.
- Sim, sim...
- Estou desde cedo rodando. Ralação e correria direto. Conta pra pagar...
Com isso, começou a falar sem parar dos problemas que todos temos nessa vida.
“Por que sua voz é tão gostosa, garoto?”
- ... mulher enchendo o saco...
“Ai, não. Lá vem o hétero se queixar da mulher ...”
- ... só reclama...
“Vixi.”
- Quer saber? Nem estou a fim de voltar pra casa!
“Ah, é?”
“Bruno, nem pense!”
- Meu prédio é aquele ali na esquina, depois do bar! – quase gritei.
“Amém, amém, amém, amém...”
Maycon assobiou impressionado.
- Se deu bem, hein? Prédio bacanaO jogo já vai começar.
- Sim.
- Está bom aqui?
- Está ótimo! Pode parar aqui mesmo.
- Você mora aqui?
- Ninguém nunca te disse que a curiosidade matou o gato, não?
- Obrigado pelo gato.
“Touché!”
- Falou, Bruno! Bom te ver, amigo. Boa sorte para o nosso Mengão. Mengão também?
- Claaaaaro. Obrigado. Tchau!
“ Hahahaha, você não presta, Bruno! Virou boleiro agora, por causa do seu novo amigo homofóbico? Sínico! ”
- Desculpa qualquer coi...
Já não pude ouvir o resto da frase. Mal o carro parou, saltei para fora e subi correndo as escadas da portaria.
“Ufa!”
Somente depois de um tempo após eu ter entrado no meu prédio foi que Maycon saiu com o carro.
- Boa noite, Dr. Bruno – cumprimentou-me o porteiro, que se levantava de sua cadeira, para me fazer a gentileza de abrir a porta do elevador.
- Boa noite, João. Obrigado. Tudo bem com você?
- Tudo. E com o senhor? Parece nervoso.
- Não é nada. Você acredita que o motorista do uber que acabou de me trazer é um amigo de infância que não vejo há muito tempo?
“AMIGO DE INFÂNCIA? Se eu não fosse você, eu virava a mão nesse sua cara, Bruno!”
Ainda bem que entrei no elevador sozinho, porque não pude conter uma gargalhada sonora e demorada, que, pouco a pouco, foi enfraquecendo, enquanto eu me olhava no espelho.
“Bruno, cadê a sua mochila?”
À suivre. (Continua...)