Cansado da noite que se passou, nós fomos dormir quando o dia já estava às claras. Quer dizer, acho que apenas eu fui dormir! Não sei de que maneira, mas o Pedro acordou antes de mim e preparou nosso café da manhã, dispôs em uma bandeja e foi me servir na cama. Contudo, se engana quem pensa que foi algo caprichado. Ele apenas colocou quatro bananas, duas maçãs e dois achocolatados em um prato e levou para mim.
- Meu café especial para você! - disse colocando o prato ao meu lado.
- Mas nada do que está aí foi você preparou! - digo entre algumas risadas. Ele me rebate.
- O importante é a intenção! - nisso ele estava certo. Encosto-me na parede de modo a ficar sentado e ele faz o mesmo.
- Que horas são? - pergunto meio perdido no tempo.
- Acho que onze, não tenho certeza! - responde ele para mim.
- Achei que fosse mais tarde! Vou voltar a dormir, ainda estou exausto! - digo sincero.
- Ah! Deixa de ser preguiçoso! Por que não vamos à praia? Já faz um tempo que não vamos! - propõe.
- Vou pensar! Mas... por que agora você não chega mais perto? - digo malicioso. Ele demora uns segundos, mas assim que entende dá um sorrisinho de lado e devagar, aproxima seu rosto do meu e me beija.
- Urgh! Você me babou todo! Está parecendo uma lhama! - reclama e eu rio daquela bobagem.
- Fresco! - enquanto comíamos o que ele trouxe, conversávamos sobre coisas aleatórias. Estava dando altas gargalhadas com as histórias de alguns dos seus "rolês" com seus amigos da faculdade. Ainda não tínhamos falado sobre mais cedo, mas acho que nem precisaria. Estávamos leves e felizes.
- Deixa eu atender "rapidinho", amor! - diz ao ouvir seu telefone tocar.
- Amor, é? - pergunto surpreso e com um meio-sorriso.
- É! Amor! - confirma ele, dando-me mais um selinho e se levantando e indo em direção a janela para atender sua ligação. Nos minutos seguintes, desfoco minha atenção dele e procuro pelo meu celular, que logo o encontro repousando na minha mesa de cabeceira. Leio algumas notificações e respondo algumas mensagens e sem perceber, entretive-me conversando com alguns colegas.
- Oli, eu tenho que ir... - diz Pedro. O ar de leveza que ele tinha minutos atrás, já não estava mais presente. Ele parecia tenso.
- Como assim? Aconteceu alguma coisa? - deixo meu celular de lado para ouvi-lo. Seu semblante era de preocupação.
- Não... quer dizer... aconteceu, mas não é nada importante! Está tudo bem! Eu falo com você mais tarde. - tenta explicar. - Onde estão minhas calças e minha carteira? - pergunta.
- Não sei, mano! - digo verificando se eu estava sentado em cima, até que localizei no chão ao lado da cama. - Aqui! - falo, entregando para ele.
- Obrigado, neném! - ele se aproximou um pouco mais e me encarou. Deu-me mais um beijo, dessa vez curto e então vestiu-se. Colocou sua carteira em seu bolso e se encaminhou para a porta - Tchau! - ele diz.
- Tchau! - despeço-me. Mas, embora ele tivesse dito que estava tudo bem, fiquei com um mau pressentimento. Sentia que algo mais sério devia ter acontecido, ou será que eram apenas meus neurônios atuando para me deixar paranóico? Argh! Tento relaxar um pouco. Seja lá o que fosse ele iria me dizer depois. Aproveito que ainda era cedo e tiro o restante da tarde para dormir.
Sou acordado horas depois. Dessa vez pela minha mãe que invadiu meu quarto gritando, querendo saber se eu estava vivo.
- Acorda, menino! Vai hibernar, é? - falou exasperada, enquanto abria as minhas cortinas e puxava meus lençóis. - Vamos comer! Pedro falou pela manhã que você estava de ressaca e que tinha vomitado e tudo! Já está melhor? - pergunta me encarando na sua típica pose materna com as mãos nos quadris, esperando minha resposta. Eu mal tinha aberto os olhos. Resmunguei alguma coisa que nem eu mesmo entendi direito, mas pergunto meio intrigado:
- Quem falou isso? - queria ter certeza do que ela havia dito. Afinal, por que o Pedro diria isso para minha mãe?
- O Pedro! Quando foi buscar comida para você lá embaixo, eu perguntei porque você não descia. Daí ele contou que você estava tão bêbado ontem, que caiu até da cadeira do bar! - Sorri comigo mesmo. Agora eu compreendi. Ele apenas tinha inventado uma desculpa para ela.
- Está rindo do que? Acha bonito? Ficar caindo pela rua? - repreendeu-me minha mãe. - Vai! Levanta daí e vem almoçar! Já são quatro horas da tarde. Daqui a pouco escurece! - completou enquanto me virava as costas e saía. Respiro fundo e com muita preguiça me levanto para ir ao banheiro.
Olho-me no espelho, o rosto inchado de tanto dormir e começo a me fitar. Isso era algo que eu fazia bastante quando era adolescente. Lembro-me que passava horas olhando para mim mesmo pensando sobre minha vida, sobre as coisas que fiz, que eu queria mudar... Agora, o rosto que eu via não era o mesmo de antes. Nem eu já não era mais o mesmo. A vida é realmente muito louca, quando que o meu eu de três anos atrás, pensaria que algum dia, nós estaríamos, como posso dizer, envolvido amorosamente com um dos meus melhores amigos? Se alguém do futuro chegasse para mim e dissesse isso, eu gargalhava.
Sou cortado dos meus pensamentos pelo toque do meu celular. Saio em direção ao meu quarto para ver do que se tratava. Na tela, a informação de que eu estava recebendo uma chamada. Por um momento pensei ser o Pedro, mas, ao aproximar para ler, vi que era a Júlia. Resolvi não atender, pois, não estava com clima para falar com ninguém. Não que eu estivesse chateado ou bravo, não. Só havia acabado de acordar e digamos que o meu lado social não estava dominante. Deixo-o tocando e volto para o banheiro.
Mergulhei de cabeça na água e em meus pensamentos. Será que era uma boa ideia me envolver amorosamente de novo? Porque, sei lá, eu havia acabado de sair de um relacionamento e tinha muito medo que as coisas dessem errado. Eu não quero que o Pedro saía da minha vida e um envolvimento mais íntimo, se é que vocês me entendem, pode colocar nossa amizade em risco e em um pior caso, nós terminarmos tudo da pior maneira possível.
- Droga! - penso em voz alta, ao lembrar também, que o Pedro ainda não tinha se resolvido com a Carla. Embora ele disse que iria acertar tudo, não deixei de ficar apreensivo. Era nítido que o caso deles era bem mais complexo e conturbado do que parecia. Até onde eu sei, eles sempre ficaram desde pequenos e querendo ou não, tinham uma história juntos. Recordo da nossa infância, lá pelos meus oito ou nove anos, em algumas memórias fragmentadas, lembro-me dele citar a sua "namoradinha de Goiás". Claro que de acordo com que fomos crescendo, nossos gostos foram mudando e ele nunca mais vinha citando-a, até o dia em que ele chegou e nos apresentou ela naquela festa na fazenda da sua família. Será que, talvez, ele também não possa sentir algo profundo por ela?
Suspiro preocupado. Sei que não devia estar assim. Principalmente pelo fato de ainda estarmos no começo de algo além de amizade, mas eu não conseguia parar de devanear. Desde criança, sempre fora muito emotivo e sensível. Houve uma episódio, quando viajei para o sítio da família da minha mãe, onde eles criavam algumas galinhas e todo dia eles matavam uma pela manhã bem cedo para preparar para o almoço. Em um dia em que acordei mais cedo, resolvi acompanhar minha tia em um desses abates e vocês não imaginam o quanto eu fiquei desesperado quando ela cortou o pescoço da pobre e inofensiva ave. Onde eu quis chegar citando esse fato aleatório da minha vida? Bem, nem eu sei. Mas acho que, com isso vocês puderam ter noção do quanto as coisas me afetam.
Me dou conta de que estou a tempo demais com o chuveiro ligado e me sinto culpado por desperdiçar tanta água. Troco-me e sigo para o andar debaixo. Pela hora, acabei pulando minha refeição para o jantar e lá pelo final da noite, eu e meus pais pedimos pizza, e assim terminou meu dia.
Já fazia algum tempo desde minha noite com o Pedro. Desde então, ele não havia dado notícias. Nada de mensagens, nem ligações nos últimos dois dias. Eu realmente estava preocupado. Ainda no dia anterior, havia conseguido falar com o Alex e questionei-o sobre seu primo. Ele me contou uma história pela metade, disse que houve um problema na fazenda do pai dele e que ele precisou viajar para lá novamente e eu que já estava apreensivo, fiquei mais ainda. Como assim ele precisou ir para Goiás e não me avisou nada? Tudo isso estava ficando muito estranho.
O Alex ainda me tranquilizou. Disse que não era nada grave e que o Pedro me contaria tudo com calma quando voltasse e que o fato de eu não estar conseguindo falar com ele, é que na pressa ele não conseguiu levar o celular. Fiquei com um pé atrás, mas nem para ele pedir o celular do seu pai ou de alguém emprestado para dar sinal de vida? Apesar disso, Alex ainda se encontrava na cidade. Levei-o para conhecer alguns pontos turísticos. Ele realmente era uma ótima companhia e me fez esquecer um pouco essas questões. Até seu primo voltar, eu ficaria encarregado de, segundo ele, "salvar sua férias". A Júlia nos acompanhava em todas.
- ...e então? Para onde vamos hoje à noite? - perguntava ele, em uma de nossas conversas por telefone.
- Não vou mentir, estou cansado de sair todo dia! - digo sincero.
- Aaaaa, Oli... sério? Nem para fazer um programinha mais calmo? - insiste. Eu rio pela forma dele falar.
- Se for algo mais calmo, pode ser! - me rendo.
- Então, fechou! As oito passo aí para te buscar! - disse ele.
- Tudo bem! Vou ligar para a Júlia. Até breve!
- Certo! Até... - despediu-se.
Como havia dito liguei para a minha amiga, mas para minha surpresa, a danada já tinha planos. Pelo o que eu entendi, era uma encontro. Questionei-a sobre esse seu novo caso, porém, ela não quis dar muitos detalhes. Apesar do mistério, estava feliz pela minha amiga estar tentando novamente depois do seu último relacionamento. Ela merece o melhor. Em casa, cuidei de alguns afazeres e às oito, como o combinado, eu estava pronto e o Alex já me esperava em frente a minha casa no carro que pediu por aplicativo.
- Está um gato, hein, Oli! - disse ao me ver entrando. Sentei-me ao seu lado no banco do carona e o abracei meio de lado.
- Que nada, mano! Olha você... - digo retribuindo o elogio.
- Sem modéstia! - ele ri - Qual o endereço da Júlia para dar ao motorista? - pergunta.
- Então, ela não vai porque tem um encontro! - digo e ele parece ficar surpreso.
- A Júlia? Em um encontro? - surpreende-se.
- Sim! - digo sorrindo. Quem conhecia a Júlia, provavelmente teria a mesma reação ao descobrir que ela estava tendo um encontro.
- Fico feliz por ela! Então, já que ela não vai, pode dizer nosso destino?
- Claro! Acho que você vai gostar desse! - respondo, já dizendo para o motorista para onde nós iríamos. Durante a viagem fomos conversando sobre nossas vidas, o que queríamos para o futuro, trabalho... o bom de estar com o Alex, era que a conversa fluía e eu desconectava-me do restante do mundo.
Em pouco tempo chegamos ao local. Eu tinha escolhido o "Cais à Beira Mar Rooftop". Um restaurante-bar que ficava no telhado de um prédio daqui da cidade e que tinha uma bela e maravilhosa vista para o mar. De cara, meu amigo já ficou encantado. Escolhemos a mesa mais próxima ao guarda-corpo, que nos privilegia com aquela paisagem. Naquele noite, o local não estava tão cheio, percebi que a maioria eram só casais.
Fizemos nossos pedidos e passamos a noite inteira provando diversos drinks, pois, para nossa sorte, era dia em que o restaurante estava com uma promoção de cinquenta por cento de desconto em todos eles. As horas foram passando e eu já estava bem leve. Amo o efeito que o álcool exerce sobre mim. Era uma sensação incrível de paz e neutralidade. Já se passava da meia-noite e enfim resolvemos parar. Pagamos a nossa conta e decidimos ir para casa, só que antes que eu pudesse pedir nossa carona, o Alex propôs uma caminhada na orla, e assim fizemos.
- Sabe, Oli... você é uma das pessoas mais incríveis que eu já encontrei nessa vida. - disse enquanto andávamos lado-a-lado. A noite fria e a brisa gelada bagunçava nossos cabelos. Encaro-o por um instante e percebo que seus olhos tinham um brilho diferente. De uma forma estranhamente boa, sinto-me arrepiar. - Também admiro a sua amizade com meu primo! Lembra um pouco nós dois antigamente. Éramos bem cúmplices, mas, ultimamente estamos um pouco distantes. Por uma parte até entendo, todos nós mudamos, não é mesmo? Ao menos ele não deixou de falar comigo... - concluiu fitando o mar meio disperso, como se estivesse indo longe em sua memória.
- É... aconteceu algo para vocês... tipo... se distanciar? - perguntei apreensivo. Por um momento pensei algo que não deveria ter pensado e fiquei com medo da resposta.
- Bem... não aconteceu nada, mas... - ele hesitou um pouco antes de prosseguir - Eu... é... nem sei como dizer isso, mas... digamos que eu não seja hétero... e o Pedro, foi o primeiro que eu confidenciais isso antes de eu contar para o resto da família.
A minha surpresa foi tanta que não consegui disfarçar. Como assim? Ele nunca demonstrou em nenhum momento que pudesse sentir atração por pessoas do sexo igual. Eu nunca, em nenhum cenário poderia imaginar que isso fosse possível.
- Nossa... - digo boquiaberto - Essa me pegou de surpresa. - rio um pouco sem graça - Você acha que foi depois disso que vocês começaram a ficar distantes? - questiono-o.
- No começo sim! Aí conheci você e a amizade que você tem com ele e não penso mais que é por isso. Na verdade é que, no fundo, acho que foi eu mesmo que me distanciei das pessoas ao meu redor por medo que eles fossem preconceituosos. É que... sei lá... eu não sou tão forte como você. Ainda tenho muito medo de sofrer represália na rua. - ele parou, um pouco sério, cruzou os braços por conta do frio e encarou seu pés. Como um homem tão grande daquele tinha medo de apanhar na rua?
- Acho que forte e eu não combinam na mesma palavra! Irmão, olha para você! Você tem quase dois metros de altura! Quem teria coragem de te bater? - ele ri - Eu acho que você devia parar de sentir medo e buscar, sobretudo, a sua felicidade. O mundo é cruel mesmo e foda-se! O que importa, é o que você decide ser importante! - aconselho-o. Ele me encara e parece pensar um pouco.
- Você está certo! Eu preciso mesmo! - ele ri, olha para seus pés novamente e me fita. Agora com um olhar terno e sereno. Chegou mais perto de mim e se inclinou. Antes que eu pudesse raciocinar, já estávamos nos beijando. Um beijo tão calmo como o ser-humano que ele era e não vou negar que foi um dos melhores que eu já tive. Meu coração batia rápido. Até que lembrei do Pedro. Gentilmente afasto-o.
- Desculpa, Oli. Desculpa. Eu sou um idiota, foi culpa daqueles drinks. Me desculpa, cara. - disse desconcertado e com um pouco de desespero. Eu sorrio de forma a deixá-lo mais confortável e diminuir a estranheza daquele momento.
- Alex, relaxa! Não precisa se arrepender! Já foi! - digo colocando a mão em seu ombro. - Nada vai mudar com isto! - tranquilizo-o. Mas na minha cabeça, um turbilhão se formou. - Vamos para casa, que isso é sono.
Por conta do horário não estávamos conseguindo carona. Então, restou-nos chamar um táxi. Estávamos exaustos e pouco tempo depois de entrarmos no carro, ele dormiu com a cabeça encostada em meu ombro. Meus pensamentos estavam a mil. A todo momento visualizava a minha situação com o Pedro e agora, esse beijo. Eu só queria viver uma vida tranquila sem preocupações, mas parecia que o universo não queria muito isso para mim.