De um jeito bastante natural, Carlos costumava se levantar mais cedo. Por volta das seis já estava de pé, uma xícara cheia de café em mãos, recostado na janela de seu apartamento que dava para a Rua da Bahia. Dali, ainda de cueca e vestindo além disso apenas uma camiseta, costumava ficar observando a rua, o vaivém de pessoas e carros a se perderem de vista. Surgindo por entre os edifícios, contemplava os raios do sol se expandindo sobre a cidade, tocando seu próprio corpo como num abraço acalentador. Pontualmente, às 6h30 ouvia o poderoso badalar dos sinos da Basílica de Lourdes e, de repente, como se se guiassem pelo som, as pessoas conferiam os relógios em seus pulsos e celulares e apertavam os passos rumo aos escritórios da região.
Carlos passava algum tempo naquela posição. Entre um gole e outro de café, observava os detalhes, as cores, os sons, os cheiros e as vibrações. Um pássaro pousado numa das torres do edifício neogótico, que hoje é o Museu da Moda, já era algo capaz de despertar um sorriso em seu rosto. Portanto, ele não meramente via o ambiente à sua volta, mas o olhava em sua amplitude, demoradamente, sempre proposto a refletir sobre o objeto que sua visão focava. Às vezes, fazia anotações e delas surgiam crônicas, contos, poemas... que soterrava nas gavetas de sua escrivaninha e não revelava para ninguém.
Feito esse ritual matinal, finalmente Carlos se sentava e começava a trabalhar em seu computador. Escrevia e revisava textos por três, quatro horas seguidas. Realizado esse trabalho, tomava um banho e ia almoçar com os amigos Gil e Miguel, outro ritual considerado sagrado para ele. Depois disso, seguia para a escola em que dava aulas e torcia para que os alunos houvessem lido os textos que solicitou – ou ao menos os resumos da internet.
Naquele dia as coisas seriam diferentes, haja vista que não trabalharia em casa no período da manhã. E Carlos, cujo organismo era regulado para despertar logo cedo, foi traído tragicamente por confiar em seu relógio biológico. O despertador do celular precisou tocar diversas vezes para que ele, enfim, acordasse, algo que fez com considerável esforço. Ainda na cama, ao se espreguiçar, recordou-se imediatamente do que havia acontecido durante toda a noite. Ele então esboçou um largo sorriso no rosto e tocou o outro lado da cama para sentir o corpo de Bernardo. Mas além dos lençóis, do travesseiro e do próprio colchão, não sentiu nada. Havia um absoluto vazio ali que também preenchia seu peito.
Enquanto Carlos dormia, Bernardo tinha se retirado sem que fosse de seu interesse acordá-lo para, ao menos, se despedir com uma ou duas frases curtas. Essa era uma verdade bastante gelada, porém inegável. No entanto, não deveria se tratar de uma surpresa para Carlos, como se isso constituísse um caso isolado, afinal de contas inúmeros caras já fizeram o mesmo. Mas, quando ele pensou melhor, se lembrou de que todos tiveram pelo menos a decência de declarar que o que buscavam era apenas uma foda. E após uma farta trepada eles se vestiam, formulavam sorrisos cretinos nos rostos e, depois de construírem desculpas esfarrapadas que não se sustentavam, voltavam para suas casas. Às vezes, ocorria de Carlos insistir e voltar a ver os mesmos caras que explicitavam seus interesses reais para com ele, mas isso se dava tão somente porque ele desejava repetir as gozadas.
“Un autre idiot pour mon dossier…”, pensou.
Cabisbaixo, sentado na cama, Carlos então arregalou os olhos e se lembrou de algo mais importante: já estava mais do que atrasado!
“Merda!”
Com um salto, Carlos ergueu-se da cama e tentou ir em direção ao banheiro. No entanto, suas pernas fraquejaram como se sucumbissem pelo peso de seu corpo. O resultado? Ele foi direto para o chão assoalhado. Mas também pudera: Carlos havia cavalgado em Bernardo durante toda a noite, e aguentar aquele pau descomunal foi uma missão que, embora tivesse concluído com muita dignidade, lhe traria algumas consequências. E rindo do próprio estado, ele se levantou e cuidadosamente foi até o banheiro, onde renovou as forças após o banho.
Carlos vestiu uma calça jeans slim que valorizava ainda mais sua bela bunda e, também, uma camisa com a estampa de Lampião que havia comprado numa feirinha regionalista em Recife, a qual, por sua vez, se modelava muito bem em seu corpo. Todos aqueles anos de natação na infância e adolescência tinham que servir para algo, afinal. Borrifou em seu corpo o perfume de sempre, que já estava acabando, e depois de calçar os tênis conferiu a aparência no espelho do banheiro: algumas madeixas do cabelo flamejante caíam sobre seu rosto, contrastando com os olhos âmbar que herdara da mãe. Ele era muito bonito, definitivamente.
Carlos comprou um café expresso em uma lanchonete e o tomou enquanto seguia a passos largos pela rua. Meia hora depois estava em um ônibus lotado, esforçando-se para se equilibrar com uma pesada bolsa pendurada no ombro e alguns livros em uma das mãos. Trabalharia em um grande edifício, desses envidraçados do térreo ao último andar, há alguns quarteirões de onde morava, de modo que o trajeto não levaria mais do que vinte minutos de caminhada. Contudo, Carlos não tinha nenhuma condição de ir até lá a pé. Não naquele dia, é evidente.
Quando chegou em seu destino, conferiu o endereço e adentrou o hall todo revestido de mármore e granito. Havia realizado a entrevista que garantiu aquele emprego temporário apenas há algumas semanas, logo sabia bem para onde seguir. Depois de se registrar na recepção, entrou em um dos elevadores e, poucos segundos depois, estava em um dos escritórios de uma grande construtora do estado que ocupava os últimos andares daquele edifício. Tratava-se da Construtora Moreira Lelas.
– Olá, tudo bem? – Carlos cumprimentou uma mulher loira muito elegante, vestida com um terninho rosa, que passava perto de onde ele estava. – Cheguei um pouco atrasado, mas vim dar aulas para um grupo de funcionários daqui que serão mandados pra uma filial na França, algo do tipo. Pode me dizer onde será a minha sala?
– Ah, sim. Vou mostrá-la a você, já estão todos lá a sua espera. Por favor, me acompanhe.
Carlos acompanhou a loira por alguns dos corredores formados por mesas e divisórias. Muitas pessoas trabalhavam ali, praticamente todas trajavam terno, e não demorou para que ele se sentisse subitamente malvestido. Alguns metros depois chegaram ao destino. A sala era possivelmente um dos compartimentos destinados para reuniões, com paredes de vidros que permitiam quem estivesse do lado de fora enxergar o que acontecia ali dentro.
– É aqui. Boa sorte! – Ela disse e se retirou.
Um terrível frio na barriga não impediu que Carlos abrisse as portas duplas e entrasse na sala. Imediatamente cumprimentou a todos e pediu desculpas por seu atraso. Dentro daquela sala, sentados envolta de uma mesa enorme, estava um grupo de homens e mulheres muito importantes, mas que não criaram caso por seu atraso.
– Alors ... commençons!
A aula de Carlos consistia de um curso extensivo para aquelas pessoas que já compreendiam o básico da língua francesa. Duraria quatro semanas e os encontros seriam de duas horas e se dariam nas quartas e sextas feiras. Carlos, que como quase todo mundo possuía muitas contas para pagar, aceitou o emprego de bom grado, emprego que, para sua imensa alegria, lhe pagaria muito bem. Nas duas horas seguintes daquele dia, trabalhou tópicos muito importantes ancorados em uma metodologia voltada para a oralidade. Ele não possuía a síndrome de querer agradar a todo mundo, porém se sentiu feliz quando notou que as pessoas ali pareciam gostar de sua presença e riam com suas piadas, mesmo as ruins. Um dos homens, que havia se apresentado como Marcos, inclusive causou certo constrangimento em Carlos, pois lhe encarava com muitíssima insistência, para além de ser o mais participativo e brincalhão.
Ao dar aula de língua, Carlos não se debruçava apenas nos aspectos linguísticos-gramaticais, mas gostava de recorrer à história e à cultura para potencializar a experiência e a construção dos conhecimentos. Resolveu, então, também fazer um percurso acerca da história da língua francesa, contar algumas de suas curiosidades e relações morfológicas com o português. Falou da identidade do povo, das paisagens, fábulas e literatura, assunto tão caro para ele. Por fim, ele terminou a aula com uma incrível sensação de dever cumprido. Era muito bom no que fazia, mas, evidentemente, nem sempre acontecia de ser um completo sucesso. A vida tem seus aclives e declives, e disso não dá para fugir.
– C'est tout, les gars.
Assim que se despediu de todos, Carlos fechou um de seus livros e se preparava para sair da sala quando foi interceptado por aquele homem que não desgrudava os olhos dele.
– Se me permite dizer, você é o melhor professor de francês que eu já tive. Et c'est la plus belle aussi.
Carlos não negou um risinho com o comentário.
– Obrigado...
Marcos era a perfeita definição de um deus do ébano: negro, alto, forte e muito gostoso. Tinha os olhos castanho-escuros e lábios grossos que, de repente, fez a boca de Carlos secar. E era dono dos sorrisos mais bonitos que Carlos já vira, além de marcarem uma ligeira malícia em consonância com seu cavanhaque. O terno que vestia tinha um caimento perfeito em seu corpo, de tal modo que parecia ter sido encomendado sob medida. Seus sapatos estavam rigorosamente engraxados, sem quaisquer máculas, especialmente diante dos tênis All Stars sujos de Carlos. Os cabelos black levavam um corte undercut e o brinco de uma das orelhas tinha engastada uma pedrinha que Carlos podia jurar se tratar de um diamante.
– Não disse nada mais do que a verdade – e, revelando isso, ele pegou uma das mãos de Carlos e a beijou.
– Porra, não acredito que você fez isso – Carlos revelou e, por um segundo, achou que fosse desfalecer ali.
– Não vejo problema algum – Marcos refutou. – Aliás, poderia fazer isso o dia inteirinho. Sua pele é bem macia, sabia disso? – Completou e, em seguida, formulou um de seus sorrisos arrebatadores.
Carlos sentiu-se envergonhado e sua pele corada denunciava bem isso. Pois então tentou mudar de assunto, o que escancarou ainda mais o seu constrangimento diante do que estava acontecendo:
– Então... feliz por ir pra Paris? Com tudo pago tem que estar, né.
– Não irei para Paris. Ao menos não nessa ocasião.
– Uai, mas e os outros? – Carlos questionou, intrigado.
– Eles irão. E certamente estão felizes por trabalharem na Cidade Luz com tudo pago pela empresa. Mas não trabalho aqui desempenhando a mesma função que eles.
Carlos, que não estava entendendo nada, deixou que ele prosseguisse em explicar:
– Meu pai é o dono dessa empresa. Sou um dos diretores. Agora sem querer ser estraga prazeres, e longe de mim ser isso já que sou assumidamente hedonista, mas logo, logo vai haver uma reunião aqui – afirmou naturalmente, como se o que havia dito não fosse nada de mais. Era apenas podre de rico, mas isso parecia ser irrelevante para ele, ao menos era o que indicava o efeito de suas palavras.
– Tudo bem, já tenho que ir mesmo – assentiu Carlos saindo de seu transe.
Seguiram para o lado de fora. Carlos rumou em direção aos elevadores com Marcos lhe fazendo companhia.
– Só não entendi o motivo de ter assistido minha aula. Digo, você não precisa disso.
– E acha mesmo que eu iria perder a oportunidade de bancar o Hercule Poirot e te espionar?
– Só que Poirot é belga e não francês.
– Certo, me pegou – Marcos admitiu e publicou em seu rosto outro daqueles seus sorrisos conquistadores. – Bem, às vezes as coisas são meio chatas por aqui. E também confesso que gosto de avaliar pessoalmente a competência dos funcionários que contratamos.
Carlos, que também não esperava por aquilo, indagou com leve nervosismo:
– E você gostou da aula que preparei?
Marcos respondeu categoricamente:
– Já disse que é o melhor professor de francês que já tive. Mas aposto que perguntou isso só pra me ouvir admitindo isso de novo, senhor Narciso.
– Juro que não! – Carlos disse e se viu rindo com o que foi dito por Marcos. – Você é engraçado.
– Graças a Deus. Pensei que fosse dizer fofo, aí eu teria que esconder minha cabeça dentro de uma sacola.
– E ligeiramente convencido, também – Carlos brincou.
– Meu querido, eu não sou “ligeiramente” nada. Quanto mais cedo notar isso, melhor será para nós dois.
Ao ouvi-lo declarar isso, com tão natural convicção, foi um ato instintivo para Carlos olhar para o chão como que para fugir da vergonha. Contudo, seus olhos pararam nas calças de Marcos, mais especificamente focalizaram o volume generoso de seu pau. Não fez isso com uma intenção maliciosa, mas Marcos aproveitou-se da situação e apertou seu membro.
– Pre...ciso ir – Carlos disse gaguejando. – Foi um prazer conhecê-lo, Carlos – acrescentou transbordando de excitação.
Naquela altura já estavam diante dos elevadores. E Marcos, um meio sorriso libidinoso trançado no rosto, instigou que Carlos lhe desse uma de suas mãos. Outra vez a beijou assim que o rapaz de cabelos vermelhos cedeu.
– Carlos...
Aquela voz... Aquela voz potente como um trovão. Não, não poderia ser...
Carlos olhou para a frente e contemplou alguém que não pensava que iria mais ver. Não ali...
– Ei, maninho. Estou me despedindo do professor aqui – revelou Marcos espontaneamente.
Bernardo foi se aproximando e, para Carlos, seus movimentos pareciam se dar em câmera lenta. O ar ficou repentinamente gelado. O coração de Carlos começou a bater muito forte e assim que aquele homem imponente se pôs ao lado de Marcos, igualmente grandioso, ele achou que fosse passar mal.
– Esse é o Carlos – Marcos lhe apresentou. – Ele vai dar aulas aqui pro pessoal que vai pra filial de Paris.
– Já nos conhe...
– Prazer, Bernardo – cortou Bernardo imediatamente, o rosto tão sério que Carlos sentiu medo em olhá-lo e, em razão disso, tentou desviar sua atenção para Marcos, o que também lhe causava certo acuamento. E por qual motivo Bernardo havia dito aquilo, Carlos também não entendeu, o que aumentou todos os seus receios para com ele.
– Espera. Vocês se conhecem ou não? – Marcos perguntou e cruzou os braços, aguardando uma resposta.
O silêncio então recaiu, pesado e embaraçoso, entretanto Carlos abraçou aquela mentira imposta por Bernardo e expôs:
– Na verdade não. Achei que sim, mas me enganei.
Bernardo nada disse, apenas continuou a encará-lo com severidade, seus olhos profundamente azuis difundindo em Carlos bastante apreensão. Era terrivelmente bonito, de fato, mas igualmente intimidador.
– Vou estar em minha sala. Me chame quando nossa reunião estiver perto de começar.
E dizendo isso, Bernardo se retirou. Não se despediu, não despertou qualquer traço de amabilidade. Pelo contrário, preencheu de tensão o ambiente, ao menos era a impressão que Carlos teve.
– Desculpe o meu irmão. Ele é assim mesmo. Mas um dia ainda muda esse jeito – Marcos disse sentindo-se envergonhado com a atitude de Bernardo. – Bem, Carlos, também preciso ir. Mas em algum outro dia vou lhe roubar para um almoço, certo? Pelas próximas quatro semanas você fará parte dessa família, então se sinta em casa. Tem meu aval.
Carlos somente desejava ir embora dali. E Marcos poderia até ser alguém fascinante, mas tudo o que ele realmente desejava era se retirar daquele prédio – e por um instante, cogitou em nunca mais retornar. Munido de razão, ele temia que logo já não conseguiria esconder seu estado de espírito e seu rosto denunciaria a tristeza que lhe invadia.
Despediu-se de Marcos e, assim que se viu sozinho, caminhou pelas ruas da cidade com um milhão de pensamentos povoando sua mente. Um deles, porém, era o mais recorrente: por que, afinal, Bernardo fingiu não lhe conhecer? Tudo era muitíssimo confuso. Bernardo e Marcos eram irmãos, pelo menos isso era certo. E como a vida podia ser tão irônica? Mesmo para Carlos, que tanto havia estudado os mitos e a literatura grega, isso era algo que jamais formularia em seu mais expressivo momento de criatividade. Além do mais, trabalhavam na empresa na qual ele havia sido contratado, ainda que temporariamente. “Graças a Deus temporariamente”, ele pensou. Os dois eram tão opostos, mas também tão semelhantes. Por consequência disso, e muito mais, Carlos sentia uma terrível angústia preencher seu peito.
Durante toda a última noite havia transado com Bernardo, que, de um cara tremendamente agressivo, revelou-se ser até bastante carinhoso. De manhã, contudo, ele desapareceu sem qualquer aviso e, horas depois, materializou-se como um dos filhos do dono da empresa em que Carlos trabalharia. E ao refletir a respeito disso, projetou-se na mente dele a seguinte verdade: Bernardo também era seu chefe, assim como Marcos.
“Porra, vida!”
De repente, seu celular vibrou em seu bolso e começou a tocar. Carlos, preso em seus pensamentos, demorou para pegá-lo. No entanto, não reconheceu o número na tela. Ao atendê-lo, ouviu:
– Precisamos conversar.
Era Bernardo.
