A caminho da festa, Caio sentia-se abençoado por poder desfrutar daquilo que sempre sonhou. Era um jovem do interior, recém-chegado na Cidade Maravilhosa. É verdade, estava de férias (leia-se conhecendo a cidade e alguns moradores), mas daqui a algumas semanas, como firmado pelo pacto feito entre ele, pai e tio (ele estudaria Agronomia, o pai pagaria os custos de vida dele, o tio ofereceria um lugar para morar e comer), seria mais um morador, como aqueles que a TV gosta de mostrar em novelas; cheio de sonhos e objetivos para cumprir, fugindo dos deslumbramentos da cidade.
Fuga essa que não deu certo graças a religiosidade do tio e uma moça que somente poderia ser do próprio Paraíso, perdida na Terra; Priscila. Foram convidados por um fiel da mesma igreja que Caio viria a frequentar no Rio de Janeiro (como prometido a sua mãe). E, por coincidência do Destino, ou a mando de alguma Entidade Superior, seria a mesma festa que Priscila iria.
Quando o dia chegou, sua ansiedade, provocada obviamente pelos dias de mensagens trocadas com Priscila, fez perceber algo estranho, especialmente considerando o RJ. Havia um ar de tranquilidade no clima, como um todo, (algo que carioca algum aceite que seja dito sobre sua cidade). A opinião de Caio em nada refletia a frase do garotinho estranho, mecanicamente dita:
— Tempestades de verão podem ser sofríveis.
Caio tentou ignorar o estranhamento que a frase provocou em si. Era um dia lindo de verão, pouquíssimas nuvens no céu, com direito a tudo que uma festa feita nessa estação; um pagode, o churrasco caprichado, uma piscina, mesmo que apinhada de gente (senão fosse a presença da doce Priscila, sentiria-se arrependido de não ter viajado para a praia com os primos) roupas frescas e coloridas, chinelos a vontade. E, bom, isso certamente o garotinho não entenderia, paixão; quantos grandes amores não nasceram no calor intenso de um verão? E como negar que, numa singela festa de aniversário de algum membro da igreja que eles frequentavam, surgiu um amor arrebatador, tal qual uma brisa fresca num abafo monumental.
— Ih, Caio, não liga para o Bento não! — A mãe dele, conhecida de vista das missas de domingo. — Ele passou a noite ontem assistindo uma maratona do desenho que ele ama e o personagem favorito dele fala desse jeito melancólico.
Afastou-se do garoto, ainda tentando entender o motivo daquela frase o ter afetado tanto. Talvez nem fosse tanto a fala, mas sim quem falou. Bento não parecia como as outras crianças da festa, seres de infinita energia e imaginação; ele estava apenas sentado ali, como quem não entendia o motivo de bagunça. As palavras entoadas por Bento ressoavam frequentemente em seu ouvido, por mais que ele tentasse concentrar-se na música alta tocada. Fez questão de gravar na memória que jamais deixaria seu filho (quando tivesse e, se tivesse, que fosse com Priscila) assistir uma maratona daquele desenho.
Caio estava tão distraído que não notou duas coisas importantes; a primeira era a enorme nuvem cinza-chumbo que surgiu no céu. Tão majestosa e ameaçadora que ela dispensou os avisos sonoros e retumbantes que pudessem alertar sua óbvia presença.
A segunda era o estranho sumiço de Priscila. Quando retornou a mesa, por causa do atordoamento, demorou para notar a presença dela. Então, percebeu que seu celular e suco estavam na mesa. Priscila sem o seu smartphone simplesmente era uma ideia que não combinava muito com ela, sempre ligada às redes sociais; não teria como ter esquecido. A curiosidade, bem como a necessidade de andar para afastar Bento de sua cabeça, o fizeram mais uma vez abandonar a mesa. Havia lido em alguma placa daquele condomínio a presença de uma sala de jogos. Talvez, no caminho, encontrasse Priscila, para quem sabe, iniciar o que poderia ser uma das conversas que a fez interessar-se de vez por ele (Caio sabia o quão bonita ela era, quão simpática ela demonstrava ser; Priscila vivia rodeada de homens, loucos para terem ela. Ele precisava ser o mais distinto possível para que conseguisse a atenção). Por isso, mesmo perdido, começou a caminhar.
A sala de jogos ficava logo depois dos banheiros, tanto masculino quanto feminino. Considerou aquilo um golpe de sorte, percebendo o quanto sua bexiga havia sentido os efeitos de bons 3 copos de refrigerante. Aliviado, adentrou o salão de jogos, em meio as mesas de sinuca, pebolim e afins. Por um momento, alegrou-se ao ver a imagem de Priscila refletida no espelho; não notou que a imagem dela era apenas um reflexo gravado de inúmeros instantes de deslumbramento, não condizente com a realidade que se apresentava. O cabelo liso preto estava impecável como sempre, constrastando-se belamente com a pele intacta dela. Os olhos verdes brilhavam, destacados pela maquiagem discreta que costumava usar. Durou o curto espaço de tempo de dois passos para perceber que ela não estava sozinha. Caio, mais uma vez, olhou o espelho, escandalizando-se.
Lá estava ela, Priscila. As pálpebras fechadas ocultavam o brilho de seus olhos verdes. O rosto, geralmente tão bondoso, contorcia-se extasiada, a boca escancarada manchada de batom buscava o ar para rechear seus pulmões. O pescoço jogava a cabeça para trás, mostrando uma de suas veias sobressaltando, enquanto sua garganta esforçava-se. A elegância e a graça dela, sempre visíveis, agora estavam em outro plano, plano esse que não era compartilhado pela visão de seus seios, expostos, enrijecidos, desejáveis, palpáveis. Bom, palpáveis pelo menos para aquele sentado com as pernas juntas, escondido entre as pernas abertas do corpo corpulento de Priscila, preso pelos tornozelos por sua bermuda tactel, uma cueca branca e um tênis colorido.
Não sabia o que fazer. Era algo totalmente consensual. Não queria nem que fosse percebido ali. Denunciar para os pais dela? Todos os envolvidos eram maiores de idade. No máximo, a única consequência seria um sermão do padre, uma ameaça de casamento em caso de gravidez. Mas, não era ele Caio que queria Priscila? Por que raios então empurrá-la para um desconhecido?
O escândalo da cena o congelou, perdendo a possibilidade de qualquer ação, mas fazendo-o que percebesse cada vez mais detalhes; Priscila não movia as pernas, apenas movimentava-se no colo dele, para frente e para trás, as mãos gulosas e sedentas dele segurando-a pelas nádegas, acompanhando o seu ritmo. Apurou os ouvidos e pôde distinguir alguns sons; a cadeira rangia, ele gemia, timidamente, é verdade, temeroso que alguém os flagrasse (o que com certeza o excitava ainda mais) a respiração dela acelerada pelo esforço que fazia.
Priscila percebeu a presença do ainda estancado Caio. E se aquilo fosse algo que ele pensou que os interromperia, se enganou. A bondade dela deu lugar a um lado de Priscila que Caio jamais pensou que veria (e quando imaginou, não imaginou que fosse tão voraz). Priscila cravou seus olhos verdes sedentos em Caio, pelo espelho; o brilho tão costumeiro foi substituído pelo ardor, o tesão a consumindo por inteiro. Agora, tampouco preocupava-se em ser pega; gemia de tal maneira que Caio a escutasse. Mudou também seu movimento; não esfregava-se mais, e sim quicava num sobe-desce sonoro e hipnotizador.
Caio saiu de lá um pouco antes que acabasse. Parou mais uma vez no banheiro, trancando-se; sentia um incômodo fortíssimo em sua bermuda jeans. Reconhecia a sensação dos tempos de colégio, quando era surpreendido pela aparição involuntária. Jamais havia feito, geralmente precisava apenas se acalmar e pensar em coisas repugnantes. Contudo, não conseguia reequilibrar-se. E mesmo que ele pensasse nas coisas mais repugnantes, seu cérebro havia somente uma em foco. Priscila em seu vestido vermelho florido longo, as pernas abertas, os peitos e o bumbum para fora, o rosto esculpido e moldado pelo desejo, os olhos ardentes cravejando-o, gemendo afetada pelo prazer crescente da carne. Imaginou-se ali, no lugar do felizardo desconhecido, amaldiçoando-o ao mesmo tempo que agradecia. Caio reconheceu seu próprio azar, mas descobriu sua própria sorte. Jamais pensou que seu gozo, tão prazeroso, pudesse vir atrelado a um expurgo tão repulsivo.
Saiu do banheiro depois de limpar, ou pelo menos disfarçar, todas as provas do ocorrido. A tempestade de verão assolava o churrasco, mas, como sempre, as pessoas davam seu jeito. As crianças molhadas escorregavam pelo salão de festas, enquanto os adultos conversavam animadamente. O churrasqueiro desenvolveu um esquema inteligente; levava as fatias de carne sob um guarda-chuva.
Bento estava sentado na mesa que antes era de Caio e Priscila. Parecia mais tranquilo, enquanto a tempestade caía. Quando o jovem sentou-se, ouviu o que agora reconhecia ser uma profecia:
— Tempestades de verão podem ser sofríveis. — O garoto repetiu, com simplicidade.
— Tempestades de verão podem ser sofríveis. — Caio concordou, tal qual um aluno persistente, derrubado pela tese de um mestre.
Priscila juntou-se a eles logo depois. Amava crianças, mal podia ver uma que logo tratava de dar um jeito para entrar no universo dela, como uma princesa bondosa e amável preza. Bento não era diferente. Ela perguntou sobre seu boneco favorito, e ouviu pacientemente a resposta formulada pela mente infantil, embrenhando-se cada vez mais no infinito particular do garoto. Caio, por sua vez, parecia perdido, buscando por sinais que o Céu, pintado variados tons de cinza-chumbo, decorado por raios brancos e sonorizado por retumbantes trovões.
O Céu não respondeu, pouco preocupado com problemas humanos. Mas Priscila, tal qual uma chuva repentina, disfarçada e inesperada de verão, aproximou sua boca do ouvido de Caio, sussurrando, com a força de um feitiço, o segredo oculto para marcar de vez a carne atormentada dele.
Caio estremeceu em repúdio com a ideia nada sacra num primeiro momento, pensando no que o Padre Montoro lhe diria; em seguida, pensou no milagre que seria Priscila em cima de si, afastando assim os ensinamentos cristãos. Então, lembrou Bento e sua reflexão sobre um dos maiores medos bíblicos; as tempestades de verão podem ser sofríveis. Não significa, no entanto, que devem ser uma tormenta.
Tormenta seria não viver o verão!