Capítulo 15
Victor não se reconhecia na imagem refletida no pequeno espelho. Os seus cabelos, que antes tinha belos fios dourados caídos sobre a testa, agora eram pequenos pelos nascendo no couro cabeludo. Do lado esquerdo da cabeça, pontos da cirurgia cicatrizavam se assemelhando a uma roupa remendada. O seu belo rosto, que antes tinham expressões vivas e alegres da juventude, agora expressavam cansaço, com olheiras profundas, as faces magras e a pele pálida.
Contudo, o que mais o incomodava não era a aparência enferma, e sim o fato da mão direita perder a capacidade de se movimentar, e assim perder não poder exercer a arte que mais ama, que era desenhar.
Nos desenhos que Victor se expressava. Ele adorava passar horas desenhando lugares e pessoas marcantes em sua vida. Sonhava em um dia se tornar um ilustrador de HQs ou livros.
Andréia e o médico o consolavam, dizendo que com o tempo e fazendo as sessões de fisioterapia ele poderia recuperar os movimentos da mão e voltar a ter uma vida normal.
_ O importante é que você está vivo, meu amor. Esse é um milagre que deve ser comemorado._ dizia Andréia entre carinhos e beijos.
Victor se esforçava para ver o ocorrido nessa pespectiva otimista, mas no fundo não conseguia aceitar que foi vítima de uma maldade humana tão absurda.
Para ele era aterrorizante saber que quase teve a vida ceifada, e cujo o agressor e o motivo da agressão eram desconhecidos por ele. Esse terror foi o motivo dos pesadelos que tinha constantemente. Sonhava que uma sombra negra o atacava em meio a escuridão e que, por mais que corresse não conseguia fugir. Acordava apavorado, suando e trêmulo, gritando pela mãe, que dormia ao seu lado como acompanhante no hospital.
Ver o sofrimento do filho, era para Andréia algo angustiante. Desejava trocar de lugar com ele para aliviar o seu sofrimento.
Ivan não teve coragem de visitar o garoto nos primeiros dias em que o loiro saiu da UTI e foi para enfermaria.
Temia olhar para Victor e vê-lo como um espelho refletindo a sua alma maligna. Ivan não queria ver o resultado da sua maldade e saber que foi capaz de provocar sofrimento a alguém inocente.
Todavia, não negligenciou o protegido. Todos os dias ligava para Andréia e o hospital para saber notícias do quadro de saúde de Victor.
Por mais que quisesse correr da face de Victor, o menino estava em seus pensamentos e sonhos diariamente. A consciência de Ivan o atormentava cobrando que deveria ver o menino e pedir perdão por sua atitude maléfica.
Depois de dias, resolveu encarar os seus medos e decidiu ir até o hospital para visitar Victor.
Foi preciso domar o medo para entrar naquele hospital. Mas o peso da consciência não o deixou desistir.
Na porta do quarto havia uma mulher de meia idade vestida
com saia longa, blusa de mangas compridas e os cabelos presos num coque.
A mulher trazia nas mãos um livro de capa preta e letras douradas escrito "Bíblia sagrada". Era dona Jacira, uma evangélica conservadora vizinha da família de Victor.
Ivan não se sentiu confortável perto da mulher. Ela não tinha uma boa impressão sobre pessoas religiosas, devido ao preconceito que muitas destinam à pessoas como ele.
_ A paz do senhor.
Ivan respondeu o cumprimento com o balançar da cabeça. Como ateu, para Ivan palavras referindo a qualquer coisa ligado à religiosidade não fazia sentido.
Ele estranhou não haver nenhum familiar para o horário da visita.
Andréia saiu do quarto cumprimentando os dois. Para Ivan ela deu um sorriso espontâneo.
_ Que bom que você veio!
Andréia o abraçou carinhosamente de uma forma espontânea. Ela sentia por ele um enorme carinho e gratidão por tudo que fizera por Victor.
Contudo, Ivan não se sentiu confortável com a demonstração de afeto da mulher, pois ele não estava acostumado com essas atitudes. Afeto e carinho não eram comuns na família Matarazzo. Raúl sempre disse que sentimentalismos era coisa de gente fraca e Sônia gastava todas as suas demonstrações de carinhos para os amantes, não sobrando nada para o filho.
_ Vocês podem entrar. O Victor está esperando. Mas, vocês não se incomodam de eu dá uma saidinha? Eu preciso ir à cantina para tomar um cafezinho. Estou morrendo de dor de cabeça.
_ Sem problemas, minha querida. Vá com Jesus.
Por mais que soubesse que era Ivan que estava arcando com as despesas do hospital, Victor não se sentiu confortável ao ver o empresário entrando no quarto.
O garoto não conseguia entender o porquê da ajuda de Ivan, mesmo sabendo que ele nunca demonstrou simpatia pela sua pessoa.
No entanto, Victor reparou que Ivan não o olhava como antes, com um olhar carrancudo e desprezível. Havia nos seus olhos uma tristeza profunda e uma leve ternura e isso tocou o coração de Victor.
Entre os dois havia timidez. Os cumprimentos foram secos "Boa tarde", "Como vai?", "estou bem." Pareciam dois estranhos que acabaram de ser apresentados.
Dona Jacira abraçou e beijou o rosto de Victor com um sorriso petrificado e os olhos arregalados como uma fera preste a dar o bote numa presa.
_ Como é bom saber que você está bem. Graças ao nosso senhor Jesus Cristo você está vivo, menino!
Victor disse "amém " por educação. Ele não gostava muito da vizinha, pois a julgava como uma mulher fofoqueira e metida a moralista. Além disso, ela sempre o tratava com desdenho devido a sua sexualidade.
_ Deus é maravilhoso não é mesmo? Ele nunca nos abandona, até mesmo quando nós o abandonamos. Deus não faz distinção de pessoas. Ele ama a todos, sejam gays, lésbicas, homens e mulheres.
"Ele te salvou do Vale da sombra da morte. Te trouxe de volta à vida e está te dando uma nova chance."
Ivan não via a hora da mulher terminar a pregação e ir embora, pois queria ficar a sos com Victor para poder se desculpar.
_ Deus ama a todos. Até mesmo os pecadores, mas ele abomina o pecado.
"Meu querido, Jesus me enviou aqui nesta tarde para dizer que ele tem um propósito na sua vida. Ele quer te transformar num dos seus homens, num obreiro e pregador da sua palavra. Que o seu testemunho vai mudar a vida de muita gente.
"Mas você precisa querer. Um raio não cai duas vezes no mesmo local. Se você continuar a contrariar a deus ele pode te virar as costas e não te dar uma nova chance. O problema da morte, não é ela em si e sim as profundezas do inferno, onde almas são torturadas com fogo e gritam apavarodas e nunca são ouvidas pelo senhor."
Ivan percebeu que Victor olhava para a mulher apavorado. Como seu estado emocional estava abalado devido ao ocorrido, Victor se impressionava com facilidade.
_ O inimigo é ardiloso, meu filho. Quando você se afasta de Deus ele se apossa de ti e te leva a cometer pecados com a intenção de tomar a sua alma.
"Deus fez o homem para a mulher e a mulher para o homem. Se relacionar com pessoas do mesmo sexo é pecado e o castigo para o pecado é a morte."
Victor tremia de nervoso. Sentia a garganta seca e o coração bater acelerado. Ivan sentia uma raiva imensa crescer dentro de si cada vez que dona Jacira falava.
_ Deus te livrou da morte e pode te livrar do inferno e do homossexualismo...
_ Já chega!_ gritou Ivan._ Quem você pensa que é para torturar uma pessoa neste modo tão cruel?
_ Eu não estou torturando ninguém. Apenas dizendo o que Deus me mandou dizer.
_ Ah, deixe de loucura! Será que você não vê que o garoto está abalado emocionalmente? É cruel se aproveitar de alguém neste estado para exercer tortura psicológica e impor a sua fé doentia.
_ Olha aqui...
_ Olho porra nenhuma! Você disse um monte de asneiras e agora chegou a sua vez de ouvir.
"É cruel se aproveitar de uma pessoa para tentar apagar a natureza dela e impor os seus preconceitos."
_ Não são preconceitos. É a palavra de deus.
_ E quem disse? Um homem hétero e preconceituoso há mais de mil anos atrás? A igreja que selecionou textos para compor a bíblia? Ou esse tal de deus apareceu na sua frente e te disse isso?
"Que deus é esse que odeia as suas próprias criaturas? Que cria seres homossexuais, tanto gente quanto bichos, e depois diz : "Vocês estão errados e vão para o inferno por causa disso?" Nem um de vocês héteros sabem o que passamos. O medo diário de sermos agredidos nas ruas, das rejeições que sofremos das nossas famílias, da agonia da religião em dizermos que somos aberrações e que vamos ao inferno.
"Quantos acreditam nas merdas que vocês dizem e se refugiam numa igreja? Passam anos fazendo todos os rituais para mudarem a sexualidade e não mudam. Eles sofrem com a frustração, se sentem indignos. Muitos se matam por causa disso, você sabia?
"É claro que sabe. Mas não se importa. Pra vocês todos nós temos que desaparecer, seja na morte ou na auto negação.
"Mas eu não vou permitir que faça isso com o Victor."
_ Quem é você?
_ Eu sou como ele. Sou gay. E não sou uma aberração. E não vou ao inferno porque já estou em um. E gente como você transforma o mundo num inferno para nós. Agora saia daqui e deixe o Victor em paz! Saia!
_ Você não pode falar assim comigo.
Ivan abriu a porta do quarto e a pôs do lado de fora.
_ Nunca mais apareça neste quarto, ou vou chamar os seguranças para te colocarem pra fora.
Ivan fechou a porta com força, não dando tempo da mulher dizer uma palavra.
Para a sua tristeza, Victor chorava muito.
_ E se ela tiver razão? Não há nenhuma explicação lógica para eu ser atacado por deus sabe quem. Eu posso está pagando pelos meus erros e...
Ivan se aproximou da cama e pôs o dedo indicador entre os lábios de Victor.
_ Nunca mais diga isso. Você não está pagando por nada. Você é uma vítima.
"Infelizmente, coisas ruins acontecem com pessoas boas. E esse foi o seu caso. O que aconteceu com você foi uma injustiça. E ficar se torturando ou se culpando será muito pior.
"Você não é uma aberração. O erro não é seu, é deles, dos homofóbicos, dos egoístas, dos agressivos. Quem fez isso com você foi uma pessoa horrível, que merece o pior da vida. Você não tem culpa de nada."
Num ato de desespero, Victor buscou abrigo nos braços de Ivan. Abraçando-o com força e chorando em seu ombro, enquanto o moreno acariciava as suas costas. Era a primeira vez que Ivan se sentia conectado a alguém.