Escrito por Santino Peixoto:
Sou péssimo para consolar os sofredores. Tenho vontade de rir, não de uma maneira pejorativo, saí naturalmente. Só que ao ver o Sérgio ali, arrasado e seus melhores amigos curtindo a festa de formatura, sei lá, não pareceu a coisa certa. Entramos no quarto e sua mala estava na cama. Ele contou que o professor já havia marcado sua viagem para Manaus.
Em silêncio, deixei minha mochila no chão e terminei de arrumar a mala. O Sérgio ficou a todo momento sentado na cama, olhando as fotos de sua mãe. De repente, escutei a voz de Carla, mãe do Sérgio, saindo do celular. Tentei ser forte, entretanto, um turbilhão de momentos invadiu minha cabeça e as lágrimas saíram com facilidade.
— Por que você está chorando? — perguntou Sérgio em um tom ríspido.
— Desculpa. — falei limpando às lágrimas. — Eu só...
— Você não precisa ficar com pena de mim, Santino. — Sérgio pediu deixando o celular na cama e levantando.
— Sérgio. Para. Eu não posso te deixar! — gritei e ele ficou assustado.
— Como assim?
Eu não sabia como contar sobre a minha relação com a Carla. Sentei na beira da cama e comecei pelas visitas que fiz no hospital do câncer. Mostrei algumas fotos e vídeos que estavam armazenados no meu celular. O Sérgio ouvia a história atentamente, ficou boquiaberto.
Foram dois anos acompanhando a Carla nas visitas. Dois anos assistindo uma luta árdua que ela travava contra essa doença maldita. Posso afirmar que a mãe do Sérgio foi uma guerreira do início ao fim. Lágrimas escorreram pelo rosto do meu colega. Ele se ajoelhou no chão e chorou igual uma criança.
— Sérgio. — soltei sentindo uma necessidade de abraça-lo. — Eu sinto muito.
Não pensei. Apenas o abracei. Queria transferir todo o meu pesar naquele abraço. O Sérgio era do meu tamanho, o seu queixo se alojou no meu ombro e conseguia ouvir sua respiração pesada. Falei algumas palavras de consolo, mas não queria ficar no clichê. Então, apenas o deixei ter o seu momento de luto.
O professor entrou no quarto, então, levantamos rápido. Ele avisou que o voo do Sérgio havia sido marcado para às 6h. Pedi permissão para voltar com o Sérgio, afinal, prometi para Carla que ficaria ao lado dele nesse período tão delicado.
— Ok. Vou remarcar o seu voo. Agora, comam alguma coisa e vão descansar. A van chega às 4h30. — orientou o professor.
— Tudo bem, professor. Obrigado. — falei o levando até a porta.
Sérgio continuava calado. Reflexivo. As lágrimas continuavam a descer pelo seu rosto. Olhei para o celular e nenhuma mensagem do Kleber, então, o deixei na escrivaninha e pedi o jantar pelo telefone do resort. Eu não sei como conversar com o Sérgio, parece que qualquer coisa que sair da minha boca vai ser uma tremenda besteira.
O garçom bateu à porta e entregou os pratos que solicitei. Arrumei tudo da melhor forma que pude. Peguei no ombro do Sérgio que estava na sacada olhando para o mar. No primeiro instante, ele se negou a comer, porém, o convenço que a melhor coisa a fazer é descansar, pois, o dia seguinte seria longo.
A janta do resort tem um gosto tão artificial. O camarão é borrachudo e o arroz empapado, não sou fresco com alimentação, mas aquilo era inaceitável. Percebi que o Sérgio não tocou no seu strogonoff. Será que estava tão ruim quanto o meu pedido? Após o jantar, guardei todos os pratos na pequena cozinha que existe no quarto. Tá bom, pequena é elogio.
— Sérgio. Acho que você deveria dormir. — sugeri.
— Eu não consigo, Santino. Fico pensando na merda de filho que eu fui. — ele disse chorando.
— Ei. Para com isso. A Carla sabia o quanto você a amava. Mesmo com a distância que você criou. — tentei consola-lo, mas com um pequeno puxão de orelha.
— Será que ela sofreu? — o questionamento quase não saiu. Sérgio soluçava bastante e suas mãos tremiam.
— Não é hora de pensar nessas coisas. Por favor. — pedi.
Fiquei de joelhos na frente do Sérgio, que estava sentado na cama, e tirei suas sandálias azuis. Ele usava apenas o roupão do resort e um shorts do piu-piu. Levantei e ofereci a mão para Sérgio. De início, ele rejeitou, porém, sou insistente e não saí do lugar. Esperei mais um pouco e tive a resposta que esperava. Ele pegou na minha mão.
Nem em um milhão de anos pensei em viver esse momento. O Sérgio e eu, de mão dadas, como se fossemos amigos. Nem parecia o cara que transformava minha vida em um inferno.
— Vamos deitar, por favor. Você precisa descansar. — pedi mais uma vez, mas o levando para o lado direito da cama e fazendo ele deitar.
— Você... você... — ele soltou, quase que não consegui ouvir.
— Eu?
— Nada não.
— Pode falar.
— Santino. Você pode dormir aqui? — ele perguntou sem olhar para mim.
— Claro que sim. — falei indo pelo outro lado e deitando na cama.
— Você está cheirando ao mar. — comentou Sérgio rindo e chorando.
— Tá tudo bem. Eu estou aqui. — limpando às lágrimas do Sérgio.
Quem diria. Eu deitado do lado do meu inimigo e dividindo uma dor tão forte. Por causa do dia agitado que tive estava caindo de sono, adormeci primeiro que o Sérgio. De repente, uma luz forte me trouxe a realidade. Abri os olhos e encontrei o Renan na porta do quarto. Saiu sem fazer barulho, pois, o Sérgio continuava dormindo.
Expulsei o Renan do quarto. O idiotava estava bêbado e fazendo piadas de mal gosto. Como ele conseguia ser tão insensível? O melhor amigo dele passando por uma situação tão difícil. O Renan entraria sem problemas no hall de "piores melhores amigos". Pensei em dar uma palavra sobre empatia, porém, o Renan está bêbado demais para tal.
— O Sérgio está te pegando? — ele perguntou, enquanto, o levo em direção ao elevador.
— Cara, cresce. A mãe do Sérgio morreu. — disse, chamando o elevador, sem paciência.
— Eu tenho provas. — ele balbucia e levanta o celular.
— Idiota. — soltei, o jogando dentro do elevador.
Agora podia entender melhor o comportamento do Sérgio. "diga-me com quem andas e eu te direi quem tu és", esse ditado nunca fez tanto sentido. Voltei para o meu quarto e arrumei às malas. Verifiquei meus documentos e os organizei dentro da mochila. Resolvi tomar um banho, desde quando voltei da praia que não troquei de roupa.
Entre o shampoo e o condicionador, um estalo veio na minha cabeça: o Kleber. Voltei para o quarto do Sérgio, porém, a porta está trancada. Havia deixado o celular na escrivaninha do quarto dele. Vesti uma roupa qualquer e desci para a recepção do resort. Escutei uma música vindo do salão de festa, resolvi investigar.
A equipe de decoração do resort fez um trabalho lindo na ornamentação. Pequenas tochas cercavam a pista de dança, a mesa de doces mostrava toda a ostentação da festa, nem vou falar do telão que passava imagens da nossa turma. As luzes que saiam dos canhões ricocheteavam na fumaça que encobria parte do salão.
O Salão estava lotado de adolescentes exalando toda sua alegria. Parecia a cena do baile da "Carrie - A Estranha". Todos suados, bêbados e malucos. Alguns dançavam em cima da mesa, outros rebolavam até o chão. Juro que vi os professores responsáveis se beijando. Mas, uma cena partiu meu coração.
Eu vi, entretanto, não conseguia acreditar. O Kleber aos beijos com a Emilly e o Renan. Sabe, aqueles beijos triplos que confundem a nossa cabeça. A vaca da Emilly estava no meio deles, uma verdadeira rainha, e os dois palhaços eram seus súditos. O Kleber beijava o pescoço, enquanto, Renan se concentrava na boca.
Fiquei vermelho de raiva, vou em direção a eles, peguei no punho do Kleber e o levei para fora do salão. O Kleber não falou nada, apenas me seguiu. Chegamos em uma parte afastada, quase perto da praia. Ficamos os dois em silêncio, tentava encontrar as palavras certas para o sermão.
— O que aconteceu aqui? — perguntei, iniciando uma das piores conversas da minha vida.
— Estou celebrando. — ele disse de forma áspera e visivelmente embriagado.
— A Emilly. Sério?
— O Sérgio. Sério? — ele repetiu me deixando confuso.
— O que tem o Sérgio? — retruquei colocando as mãos na cintura e esperando uma explicação decente.
— Eu vi a foto de vocês abraçadinhos na cama.
— A mãe dele morreu. E os dois "amigos" que ele pensou que tinha nem se importaram. — contei, fazendo aspas com os dedos na parte do amigos.
O Kleber parecia desorientado, provavelmente, passou da cota de bebida. Alguns curiosos passavam por nós, mas eu queria tirar aquela história a limpo. Se tem uma coisa que eu odeio é fofoca. Ainda mais sobre rumores que eu não criei.
— Não parecia ser apenas isso. E, aparentemente, você contou para os seus colegas que eu sou um garoto de programa. É isso que eu sou? — ele perguntou chorando.
— Olha, Kleber, eu não sei o que eles te falaram, mas aquelas pessoas não são minhas amigas...
— Você sabe como me dói ser chamado de garoto de programa. Você sabe pelas merdas que eu passei? — ele questionou me cortando.
— Eu nunca te chamaria de garoto de programa. — falei tentando tocar no rosto dele.
O Kleber se afastou. Ele começou a falar sobre o ex-namorado que tinha feito da vida dele um inferno. Uma relação completamente abusiva e tóxica. Em alguns momentos, ele mal conseguia falar, apenas chorava. O lado positivo e apaixonante do Kleber sumiu naquele instante.
— Eu até tentei dar uma chance ao amor, Santino. Mas, nós somos diferentes demais. — ele afirmou enxugando as lágrimas. — Volta pro quarto do Sérgio. Termina o que vocês devem terminar. Tenho uma festa para curtir.
— Kleber! — tentei segurar em seu braço, mas ele desvia.
— Você não deve ser visto com um garoto de programa.
E foi assim que terminou minha curta relação com o Kleber. O vi desaparecer no salão de festa que estava lotado de pessoas que eu detestava. "Eu até tentei dar uma chance ao amor", ele disse para mim. Que amor? Um sentimento que machuca. Que não nos deixa respirar. Como alguém pode querer sentir isso?
Entrei no quarto aos prantos, com certeza, parecendo um maluco. Não conseguia respirar. Deitei na cama e abracei o travesseiro. Como ele teve coragem de falar coisas tão horríveis para mim? Eu nunca teria um pensamento tão obscuro do Kleber. Ele era o sol, a luz que conseguiu iluminar um pouco da escuridão que existia dentro do meu coração.
Agora, pouco a pouco, eu sentia a escuridão voltando para o seu lugar. O amor machuca. Ele é tóxico. Eu nunca mais vou querer experimentar esse sentimento destrutivo. Afinal, além de tudo, sou um gordo que não é amado nem pelos pais. Ninguém me quer. Nunca terão interesse em mim. Acho que é isso, nasci para ser sozinho. Adormeci com esses pensamentos ruins.
Um terremoto! Levantei em um pulo. Esfreguei os olhos e percebo que era alguém batendo à porta. Ainda sonolento, saí da cama e abro. Para a minha surpresa era Sérgio. Ele continuava abatido, só que disfarçou com óculos escuros. O Sérgio explicou que partiríamos em breve.
Nem tenho como imaginar as coisas que devem passar pela cabeça dele. Vou no quarto do Sérgio e para pegar o meu celular, como sempre sem bateria. Quando as empresas capitalistas vão começar a fazer baterias mais duradoras? Deixei carregando, enquanto trocava de roupa. O look do aeroporto é um moletom preto e a única calça jeans limpa.
Verifiquei cada parte do quarto. Sou esquecido, ou seja, sempre deixo algo para trás. Posso verificar umas 100 vezes, porém, algum objetivo vai ser esquecido. Enquanto, lutava contra o tempo, percebi que nenhum amigo do Sérgio veio vê-lo.
— Santino, vou descer. O professor está nos esperando. — disse Sérgio.
— Ok. Vamos. — passei mais uma vez os olhos pelo quarto e respirei fundo.
Na estrada, pensei bastante no Kleber e nos três dias maravilhosos que passamos juntos. Acho que o Sérgio reparou minha melancolia, porém, preferiu não se intrometer. Ele já tinha seus próprios problemas para pensar. A viagem para Manaus aconteceu de forma tranquila. Na verdade, como o voo era direto deu tempo para dormir um pouco.
"Tripulação, preparar para o pouso", a voz anasalada do comandante me tirou de um pesadelo horrível. Quer dizer, ao menos eu acho, afinal, não sou de recordar dos meus sonhos e pesadelos. Limpei a baba que escorria pelo meu rosto e voltei o acento para a posição normal.
Ao meu lado, o Sérgio continuava dormindo, tão sereno, nem parecia o bully que atazanava minha vida. Preferi deixa-lo quieto. O dia séria longo e eu prometi ajudar em todos os momentos. Olhei pela janela e contemplei a cidade de Manaus por alguns minutos. Consegui reconhecer alguns pontos importantes da cidade, como a Praia da Ponta Negra e o Porto.
— Chegamos? — perguntou Sérgio me tirando do devaneio.
— Hum. — respondi fazendo um sinal de positivo com os dedos. — Estamos aterrissando. Acho melhor você ligar para o seu pai.
— A secretária mandou o itinerário. Vou direto para o velório. — ele contou pegando o celular e verificando as mensagens.
— Sérgio. Eu vou com você. Eu prometi para a Carla. — falei pegando em seu braço e apertando.
— Faça como quiser.
Respirei fundo para alinhar todos os chacras existentes dentro de mim. Afinal, lidar com o Sérgio na escola era difícil, agora imagina o Sérgio passando por uma situação tão complicada. Achei o Santino Jedi e coloquei em prática todos os ensinamentos de empatia que o meu cérebro aprendeu nos últimos anos.
Aeroporto Internacional Eduardo Gomes. Que lugar mais quente. Pelo amor de Deus, o calor produzido naturalmente por Manaus nem se comparava com o que estava dentro da sala de embarque. Nunca orei tanto para a pegar a bagagem, ainda bem que fui um dos primeiros. A mala do Sergio também não demorou.
O motorista já nos esperava no estacionamento. Ele se chamava Jambres e trabalhava para o Sérgio há alguns anos. Até levei um susto quando o Jambres deu um abraço apertado no meu colega. Desviei o olhar para não deixar a cena ainda mais estranha. Por algum motivo desconhecido, Jambres achou que seria legal pegar no meu cabelo.
Confesso que o ato trouxe um gatilho. Tive um flashback do Kleber pegando no meu cabelo. Apesar da nossa diferença de altura, ele gostava de fazer aquilo. Eu não reclamava, pois, me sentia protegido de alguma forma. Enfim, apenas lembranças que ainda ecoavam na minha cabeça.
Sentamos na parte de trás do carro. Eu não sabia como abordar o Sérgio. Afinal, os últimos anos da vida dele foram dedicados a fazer bullying comigo. Sentia raiva, porém, lembrava dos conselhos de Carla. O Sérgio teve uma mãe presente, carinhosa e guerreira, apenas não soube aproveitar essa dádiva.
Entramos direto no cemitério São João Batista, um dos mais tradicionais de Manaus. O velório acontecia em uma capela improvisada. Como o sol estava forte demais, a equipe da funerária colocou dois grandes ventiladores com umidificadores.
Não fui feito para velórios. No momento de estresse, sou suscetível a ter acessos de riso. O primeiro do dia aconteceu quando uma mulher vestida com um longo vestido entrou fazendo um escândalo. Tipo, estava um calor dos infernos e ela parecia que ia concorrer ao Oscar. Precisei sair de perto dela para evitar um vexame.
O pai do Sérgio se destacada entre os convidados. Ele ri alto de algum comentário feito pelos seus colegas de trabalho. Percebi que o Sérgio ficou vermelho, provavelmente de raiva, afinal, aquele era um momento de respeito e reflexão. Ele cerrou os punhos e andou na direção de Salomão, o seu pai.
— Ei. — falo pegando no punho de Sérgio, tentando evitar uma confusão desnecessária. — Não faz uma cena, por favor.
— Eu não vou fazer cena, Saturno. Vou cumprimentar o papai querido. — ironizou Sérgio puxando o braço que eu segurava.
O que posso falar sobre Salomão Abdalla Filho? Bem, de uma família tradicional de Manaus que perdeu toda fortuna e teve a sorte de achar alguém como a Carla. Ele era uma versão mais velha de Sérgio. Cabelos castanhos, uma barba cheia com alguns fios brancos, ombros largos e a famosa barriguinha de Chopp.
Ao ver Sérgio, o homem se transformou e começou a chorar. Ele dá um forte abraço no filho, que não retribui e sai da situação constrangedora com um forte empurrão. Salomão desequilibrou um pouco, mas manteve a pose de superioridade. Eles se encaram e o clima de rivalidade é quebrado quando alguém cumprimenta o Sérgio.
"Meus pêsames", "sinto muito pela sua perda" e "ela está em um lugar melhor", essas foram as frases que mais ouvi naquela tarde. Fiquei parado no meio capela improvisada, de frente para um dos ventiladores. Torcia para que ninguém viesse conversar comigo. Sou péssimo em iniciar um bate-papo, a probabilidade de alguma besteira sair da minha boca é de 100%.
O Sérgio está sentado em uma cadeira, conversando com uma senhora que tenho quase certeza que é sua avó materna. Tudo parece tão fora do lugar. Eu estou fora do meu lugar. Já estava ali há duas horas e não tive coragem de chegar perto do caixão da Carla.
A presença do caixão lembrava da dura realidade que eu tanto evitava acreditar: perdi mais uma pessoa importante na minha vida. Um colega da escolha acenou para mim. Queria ficar discreto entre os convidados, porém, uma pessoa do meu tamanho é quase um ponto de referência. O nome dele é Renato, infelizmente, não se formou conosco. Ele repetiu o terceiro ano. Era um dos poucos que me tratava como um ser humano, sem piadas homofóbicas ou gordofóbicas. Procurei uma maneira de disfarçar, mas, mesmo assim, o Renato se aproximou e puxou assunto.
— Como foi a viagem? — ele perguntou pegando no meu ombro.
— Hum. — soltei em pânico.
Não tinha ideia do que dizer. Na verdade, até que algumas coisas me passavam, como por exemplo, ter encontrado um cara legal no Ceará e perde-lo por causa de um mal entendido. Ou o fato da mãe do Sérgio, que era uma pessoa incrível, perder a luta contra o câncer e nos deixar sozinhos.
— Você ainda continua monossilábico, né? — questionou Renato soltando um riso abafado. — Vou sentir sua falta, Santino. Você é um cara legal.
— O...obrigado. — disse evitando contato visual com o Renato.
No auge dos seus 18 anos, o Renato é um cara que facilmente seria convidado para desfilar em algum evento. A musculação trouxe vários gominhos para o seu corpo. No braço, ele ostentava uma tatuagem tribal, uma espécie de mandala. Seus cabelos pretos formavam pequenos cachinhos que, na ocasião, estavam escondidos devido ao gel. Estava vestindo uma roupa agoniante para o clima de Manaus: um terno preto e calça social.
— Cara. Que calor. — falou Renato, como se tivesse adivinhado os meus pensamentos.
— Hum.
Droga. Qual é o problema, Santino? O Renato é um cara legal. Sempre procurou me defender das brincadeiras do Sérgio e Renan. Nos trabalhos em equipe, dava um jeito de ficar por perto. No início, achei que ele gostava de mim, entretanto, descobri que sua namorada era a Thamirys, uma patricinha do segundo ano.
Minha linha de raciocínio é quebrada quando vejo Sérgio se aproximando do caixão. É difícil de vê-lo daquele jeito. Tão frágil e pequeno. Se fosse em outra situação, eu ia sentir prazer, mas ele estava sofrendo a dor da perda.
O Renato puxou temas triviais, mas eu continuava monossilábico. Sempre fiquei tímido na frente de caras bonitos, acho que é uma forma de defesa. Peguei o celular e percebi que continuava descarregado, pedi licença e procurei uma tomada disponível.
De repente, senti uma tonteira e sentei na primeira cadeira desocupada que vi. Lembrei que fiquei o dia todo sem comer. Abri a mochila e encontrei duas barras de cereal que ganhei no avião. Sou surpreendido por uma voz conhecida. Tenho medo de virar e encarar o desconhecido.
— Você precisa se alimentar, Santino. — pediu Carla pegando no meu braço.
— Eu estou sonhando, né? — perguntei coçando os olhos.
— Bem, se Maomé não vai até à montanha, a montanha vai até Maomé. — ela sorriu e, mais uma vez, tocou no meu braço.
Isso é uma alucinação. Dá última vez que visitei a Carla, o seu estado era deplorável. Estava magra, com olheiras profundas e careca. Mas, ali, diante de mim, a Carla parecia cheia de vida e juventude. Usava um vestido branco, seus cabelos loiros se destacavam em um coque com trança lateral e a pele parecia brilhar.
— Ele vai precisar muito da sua ajuda, Santino. Eu não quero parecer um disco quebrado, mas apesar de parecer insensível e durão, o Sérgio é um garoto assustado e melancólico. — ela olhava para o filho, enquanto conversava comigo.
— Ele é forte. Tenho certeza que vai conseguir superar. — disse deixando uma lágrima escorrer no meu rosto. — Eu poderia ter ido no seu lugar.
— Santino. Nunca mais repita isso. — me repreendeu Carla, porém, de uma forma serena e meiga. — Você é um jovem excepcional. Olha em volta. Quantos amigos do Sérgio vieram para o meu funeral? Só você, o garoto que foi vítima das brincadeiras cruéis do meu filho.
— É que fica tão difícil. Às vezes, tenho vontade de desistir de tudo. — dessa vez, chorei bastante e nem me importei de estar falando com um fantasma.
— Eu sei que pode parecer um fardo pesado demais, Santino. Mas, você ainda vai encontrar um motivo para lutar. Eu juro. — Carla tocou no meu rosto e o beijou, me fazendo fechar os olhos.
Um copo de vidro caiu no chão e tirou minha concentração. Olhei para o lado e a Carla não se encontrava mais ali. Será que estou ficando maluco? Acho que só o tempo vai dizer. Limpei às lágrimas e levantei. Olhei em volta e não vi nenhum sinal do Sérgio. Não tem ninguém ao lado do caixão, respirei fundo e andei em direção ao corpo de Carla.
Ela está usando o mesmo vestido branco, uma linda maquiagem escondia os hematomas causados pelo tratamento. Na cabeça de Carla, alguém colocou uma linda coroa de rosas. Não consegui segurar a emoção e comecei a chorar copiosamente. Nas mãos, ela segura um rosário branco da cor do vestido.
— Eu prometo que vou cuidar dele, Carla. Pode ir. Você deve estar muito cansada, né? — perguntei limpando às lágrimas que insistem em descer. — Obrigado, por não deixar eu desistir.
O Padre chegou e deu início ao sepultamento da mãe do Sérgio. Apesar das diferenças, ele ficou ao lado do pai naquele momento tão doloroso. "Do pó viemos ao pó voltaremos", disse o Padre tentando acalentar o coração de todos que sentiriam falta da Carla. A cerimônia não demorou, logo, os coveiros selaram a última morada dela.
Após esperar mais um tempo para que o Sérgio se despedisse dos parentes, a gente seguiu para a casa dele que ficava em um luxuoso condomínio. Quase não conversamos, ainda procurava pelas palavras ideais. Eu só precisava de um banho para colocar a cabeça no lugar.
— Sérgio, vou só pegar uns documentos para o Sr. Salomão. — anunciou Jambres, saindo do carro e nos deixando sozinhos.
— Não vamos sair? — perguntei confuso.
— Eu vou. O Jambres vai te levar para casa. Não preciso de uma babá. — ele disse saindo do carro e pegando.
— Mas... — balbuciei saindo também e seguindo ele para dentro da casa. — Eu vou ficar com você.
— Santino. Eu não te entendo, cara. Eu passei os últimos cinco anos te tratando como um lixo. Das duas uma: ou você é muito ingênuo ou burro. — de uma forma agressiva, ele lançou a bolsa no sofá.
— Talvez eu seja. Mas, eu fiz uma promessa para a tua mãe. Não vou te deixar sozinho.
— Merda, Santino! — ele disse avançando na minha direção e me empurrando. — Porque você está sendo tão legal, hein? Eu não mereço! Eu não mereço.
De repente, toda a raiva se transformou em dor. Fiquei assustado com a reação do Sérgio. Ele batia no meu peito, mas não senti nada. Juntei todas as forças que existiam dentro de mim e dei um forte abraço no Sérgio que desabou em lágrimas. O meu colega, visivelmente abatido, tentava encontrar um sentido nos últimos acontecimentos.
— Tá tudo bem. Eu te perdoo. — disse, enquanto envolvia o Sérgio com um abraço.
Ficamos por um bom tempo abraçados. E com a situação do Sérgio percebi que não precisamos ser fortes o tempo todo e está tudo bem. Aquele dia me marcou de muitas maneiras, mas aprendi que devemos seguir em frente mesmo quando a vida joga pedras em nossa direção.
Estava ali pelo Sérgio. Ia ser o amigo que ele precisava que eu fosse, apesar do passado conturbado que tivemos juntos. Dependeria, exclusivamente, dele o caminho que essa relação seguiria. Não se preocupa, Carla, o seu filho estará bem vigiado.
Para encerrar os ciclos, peguei o celular e bloqueei o Telegram do Kleber. Olhei pela última vez a foto que tiramos juntos e, também, deletei. A faculdade começaria em breve e novas oportunidades apareceriam. Esse vai ser o ano dos recomeços.