[...]
Foi bom. Eu precisava sofrer sozinho e deixar a chuva esfriar minha cabeça. “Nenhuma máquina funciona bem com o processador quente”, pensei. Após um tempo ali um ódio racional tomou conta de mim. Meu cérebro já voltava a trabalhar estrategicamente e eu precisava agir. Bruno e seus amigos precisavam ser punidos, especialmente Bruno. Levantei-me e estava extremamente tenso, senti ossos estalarem quando movimentei meu pescoço. Tirei minha camisa e voltei para a área onde Nanda, Valkíria, Lucinha e mais alguns me esperavam em silêncio. Fui até um tanque de roupas e torci minha camisa. Logo, Lucinha me ofereceu uma toalha que agradeci e me sequei. Nanda tinha os olhos vermelhos de chorar e me olhava em silêncio. Já tinha visto aquele olhar antes, frio, distante, calculista, não a agradava nada. Não era como o olhar vazio que viu no escritório do bar naquela noite, mas era tão perigoso quanto.
Quiseram me oferecer roupas secas, mas eu estava tão necessitado daquele banho que a água fria não me incomodava. Ainda assim seria uma grande sacanagem andar pela casa da Lucinha ensopado. Nanda acabou me devolvendo a camisa do Iron Maiden e vestiu uma outra fornecida pela dona da casa. Como ela não tinha uma calça que me servisse, ofereceu-me uma legging. "Hummm. Vai ficar uma graça!", disse alguém do grupo. Aquilo me fez sorrir e todos os demais também, mas óbvio que não aceitei. Me virei, tirei minha calça, enrolei a toalha na cintura e torci minha calça no tanque de lavar roupa, pendurando-a num varal para “dar uma enxugada”. Nanda se aproximou:
- Você está pensando em fazer uma besteira...
- Não. Não estou. - Respondi, despistando o óbvio.
- Você parou de chorar de uma hora para a outra e eu conheço teu olhar. Estamos juntos há muito tempo. - Insistiu.
- Se você me conhece, então sabe que vamos discutir se você continuar nessa conversa.
Ela abaixou a cabeça e vi que tinha exagerado:
- Desculpa. Só não acho justo aquele filho da puta ficar impune! - Continuei.
- Você já deu uma surra violenta nele! Quase o matou. Esquece disso. A gente toca a vida. Eu só preciso de você comigo.
- Tem certeza de que não quer denunciar ele? - Perguntei já sabendo a resposta.
- Tenho. Não quero! Ninguém precisa saber do que aconteceu. Não posso deixar isso prejudicar a gente e as meninas. - Seus olhos se encheram de lágrimas novamente: - Se você não quiser ficar comigo por eu estar suja, eu vou entender, mas não vou fazer isso com elas.
A abracei e aquele ódio começou a me incendiar novamente, mas eu sabia que agora não poderia me entregar. Eu precisava me manter racional para fazer pagá-lo. Se não fosse através de uma denúncia, eu procuraria outros meios.
Uma parte da turma acabou indo embora, mas os demais improvisaram, mesmo dizendo que não queríamos, um churrasquinho. A chuva insistia em cair, então colocaram a churrasqueira na área de serviço/lazer do quintal e todos se espalharam pela casa, se revezando em nos dar atenção. Parece que não queriam nos deixar sós. Até que foi bom, porque desviaram o foco do que havia acontecido e nos mergulharam num mar de estórias deles. No fim, acabaram nos convidando para entrar no moto clube deles. Eu nunca tive moto, apesar de achar lindas as Harley Davidson. Insistiram tanto que disse que iria pensar.
No meio da tarde voltamos para casa. Nanda ainda sonolenta na segunda balançada do carro dormiu. “Melhor assim”, pensei. Naqueles 70/80 km de distância até nossa casa, fiquei procurando, imaginando formas de dar a devida punição aqueles filhos da puta. Com a cabeça ainda quente não conseguiria encontrar a melhor forma.
Chegamos em casa, ela foi tomar outro banho e então a convidei para irmos buscar as meninas. Ela me pediu que fosse só, porque ainda não estava se sentido bem. Eu não queria deixa-la só, mas ela disse para eu ir despreocupado que ela iria somente descansar e não faria nenhuma besteira, principalmente porque não queria traumatizar as meninas. Deitou-se no sofá da sala e ligou a TV. Fui busca-las e inventei uma estória de dor de cabeça para justificar a ausência dela. Peguei as meninas, sem nem sentar para um café, coisa rara para nós mineiros, e voltamos os três. Na volta silêncio, a sala estava vazia. No quarto, nada. Banheiro, idem. Cozinha, vazia. Já estava me preocupando quando olho no quintal e a vejo aguando nossa hortinha e empurrando nossa gatinha com o pé, para que não se molhasse.
Abri a porta do quintal e encostei no batente a observando. Ela me viu e esboçou um sorriso a La Gioconda, ou Mona Lisa, como preferirem. Era bom vê-la tentando se ajustar ao dia a dia, mas era estranho que isso se desse tão rápido assim. Eu queria me vingar, digo punir o Bruno e os amigos dele, mas a saúde mental e felicidade dela eram minha prioridades:
- Que uma tal uma pizza para hoje? - Perguntei a ela.
- Oba! Pizza! - Saiu gritando minha caçula pelo quintal, correndo atrás da gatinha.
- Pode ser... - Nanda falou obviamente sem o mesmo entusiasmo.
Me aproximei e a encarei por um minuto:
- Estou bem. Não me olha desse jeito senão vou começar a lembrar de tudo. - Disse fechando o esguicho da mangueira: - Só me deixa quietinha.
No começo da noite liguei na pizzaria e, naturalmente, a caçula pediu um sabor e a mais velha, pré-adolescente que se encontrava estacionada no sofá da sala com um celular à mão, gritou que queria outro. Uma discussão se iniciou. Eu olhei para Nanda e ela me falou:
- Sabe que eu estava sentindo falta disso. - E riu um sorriso verdadeiro pela primeira vez desde os fatos.
Aquilo me aliviou a alma de uma tal maneira que comecei a pensar se seria realmente necessário punir Bruno, ou se poderíamos tão somente riscar aquela noite de nossas vidas e continuar dali pra frente.
Preferi não tocar naquele assunto mais, mas naquela noite ela dormiu um sono agitado. Revirou-se na cama diversas vezes e até falou dormindo. Numa dessas vezes identifiquei o nome do Bruno e, entre frases soltas, sem sentido, outras inaudíveis, houve sorrisos e choramingos. Isso se repetiu na outra e na outra noite. Os dias transcorriam normalmente e se ela chorava, o fazia escondido de mim. Minha filha mais velha perguntou se a gente havia brigado e, ao indagá-la do porquê daquela pergunta, me disse que sua mãe estava mais quieta, nem brigava mais com ela e passava muito tempo trancada no banheiro. Era certo que algo não estava bem.
Por sorte tenho um amigo defensor público que estava fazendo um curso de psicologia. O procurei e pedi conselho, dizendo que um casal de amigos estava passando por um problema e eu não sabia o que dizer. Expliquei por cima tudo o que tinha acontecido. Não sei se ele acreditou nessa estória de “casal de amigos”, mas me explicou que toda terapia só gera efeitos concretos se a vítima se dispõe a participar efetivamente dos trabalhos:
- Tá, mas e se a pessoa não quiser participar, há alguma forma de convencê-la? - Perguntei.
Ele passou a me explicar que não existe uma “fórmula pronta” que possa ser utilizada, porque cada pessoa é um universo único que deve ser explorado aos poucos para que ela se sinta a vontade para se abrir e colher os frutos da terapia. Falou que, como ainda era um estudante, não seria apropriado me orientar profundamente, mas me indicou um professor de faculdade que seria ótimo para me orientar o passo a passo. Eu só o ouvia e, por óbvio, ele deve ter notado que eu estava tenso:
- Você está bem, Mark? - Perguntou colocando sua mão em meu ombro.
- Tô. Tô, sim. - Respondi sem muita convicção.
- Mas sua esposa não, não é? – Insistiu.
Nessa hora meus olhos marejaram e não consegui mais me segurar. Acabei contando, entre lágrimas, o que a gente havia passado, omitindo alguns fatos de nosso relacionamento que não tive coragem de falar. Ele me ouviu atentamente e perguntou se eu gostaria de conversar com o professor dele. Eu disse que sim e ele ligou no ato. Após conversarem um pouco, ele desligou e voltou-se a mim:
- Vamos lá. Ele já está nos esperando.
- Agora? Mas como? Assim? - Perguntei assustado.
- Ele disse que quer conversar imediatamente com você para que sua esposa não entre numa espiral de depres... - Parou o que estava falando: - Já falei demais. Ele vai te explicar tudo.
- Depressão? - Perguntei por ter entendido.
- Vamos lá. Vou com você.
Ele cancelou todos os seus compromissos e me colocou no seu carro. Em dez minutos estávamos estacionando na frente de uma casa. Havia apenas uma pequena placa “Dr. Josué Galeano – Psiquiatra e Psicanalista”:
- Psiquiatra!? Cara, você tá achando que é tão sério assim? - Falei: - Não posso entrar aí. O que as pessoas vão pensar?
- Você também é do tipo que acha que só louco procura um psiquiatra ou psicanalista? - Me perguntou.
Eu não sabia o que dizer e só balancei a cabeça negativamente:
- Fica tranquilo. Sei que você é reservado. Vamos entrar pelos fundos.
Nos dirigimos a um portão lateral que dava para um corredor e este para uma porta nos fundos do imóvel. Entramos e passamos por uma cozinha, subimos por uma escada até entrarmos numa sala de espera que estava vazia no momento. Ele então bateu numa porta e logo um senhor bonachão, de barba branca, semblante convidativo, aparentando uns sessenta anos, me recebeu com um forte aperto de mão, convidando-me a entrar. Olhei para meu amigo e ele disse que esperaria na sala:
- Senta, meu caro. Vamos conversar um pouco. O Paulinho me ligou e me contou por cima que a vida deu uma rasteira em você e sua esposa... - Começou.
- Doutor, eu não sei nem o que falar... - Engoli a seco enquanto me sentava numa confortável poltrona a sua frente.
Ele sentindo toda minha tensão, a experiência lhe dava gabarito para tanto, levantou-se e foi até uma mesinha próxima:
- Rapaz, eu já ia tomar um cafezinho. Aceita? - Perguntou, enquanto ligava uma máquina de capsulas.
Olhei meio que perdido para aquela máquina enquanto as luzes piscavam dando conta de que estava aquecendo seu motor e depois, me tocando de minha própria inércia, o encarei, aceitando. Logo, ele me serviu uma xícara e a si próprio, e novamente se sentou a minha frente:
- Ah, desculpe minha grosseria. Meu nome é Josué Galeano, e o seu? - Perguntou-me.
- Mark, doutor. - Respondi.
- Escute Dr. Mark. - Começou dizendo: - Posso te chamar de Mark, não é?
Eu conhecia essas táticas de aproximação simulando uma “falsa” intimidade. Também havia estudado isso na faculdade, mas ali não haveria porque recusá-la:
- Claro.
- Então, Mark, escute. É normal que você se sinta desconfortável para falar sobre um fato constrangedor, principalmente que aconteceu na sua intimidade e mais ainda quando ofende uma pessoa que você ama. - Tomou um gole, sempre me encarando, analisando minhas reações: - Não estou te recriminando. É uma reação normal do ser humano.
Eu o ouvia e tomava meu café. Por um instante ouvi um barulho baixinho de louças se tocando e aí notei que a xícara tremia em minha mão, se chocando com o pires logo abaixo dela. Encostei ambos sob minha perna tentando esconder meu nervosismo gritante:
- O importante é que você procurou ajuda. Eu entendo o sentimento de impotência que você está sentindo. Vou te ajudar, mas acho que nesse momento a ajuda deve começar por sua esposa, não concorda? - Continuou, sempre me encarando e vendo que eu continuava nervoso, perguntou: - Você se abriu com o Paulinho, seu amigo e meu aluno, e isso é ótimo. Você confia nele e ele como quase um psicólogo fez bem em me ligar ao ver que você necessitava de uma orientação mais madura. Como te disse, ele me fez um breve relato do que vocês passaram. Vamos fazer assim: se você preferir, eu posso repetir o que ele me disse e você vai complementando as informações para eu entender bem o quadro. O que você acha?
Eu apenas concordei timidamente:
- Então, me interrompa sempre que quiser me corrigir ou complementar alguma informação, ok?
Balancei a cabeça positivamente outra vez:
- Você e sua esposa saíram para uma noitada, num local diferente e decidiram fazer uma brincadeira entre vocês, entrando separadamente num ambiente para curtirem um show como fossem solteiros. Então, depois de um tempo, se encontrariam e se paquerariam, como se fosse um primeiro encontro novamente, correto?
Eu abaixei a cabeça porque sabia que aquela não era a verdade:
- Daí ela foi abordada por um terceiro e inadvertidamente acabou aceitando uma bebida adulterada, drogada falemos a verdade óbvia que você já sabe por sua própria experiência profissional, e acabou sendo conduzida a um outro ambiente, longe de sua vista e proteção, e foi violentada, correto?
Eu esfregava minhas mãos, nervosamente. Meus olhos se encheram de lágrimas e ele puxou seu banco um pouco mais para perto e colocou as dele sobre as minhas:
- Fica calmo. Precisamos revisitar esses momentos para podermos superá-los e faremos isso juntos. Preciso te preparar porque se para você está sendo difícil, muito mais deve estar sendo para ela. - Disse no melhor estilo paternal possível.
Eu comecei a chorar nesse momento e ele pegou um lenço, me entregando:
- Entendo a dor que está sentido. Esse sentimento de impotência...
- Doutor. Eu sou o culpado de tudo! - O interrompi.
- Não. Não é. Não se culpe pelo que aconteceu. Vou te explicar tudo, com calma...
- Essa não é toda a verdade! Não é nem o começo da verdade. - Falei, interrompendo-o novamente, enquanto enxugava uma lágrima: - A estória é bem mais complexa que isso. Eu não tive coragem de contar tudo para o Paulinho.
Ele se recostou em seu banco, me encarando atenciosamente:
- Me conte desde o começo, então. Deixe-me entender tudo para poder ajuda-los.
Comecei então a contar tudo, tudo mesmo. Desde quando nosso relacionamento havia dado uma esfriada e eu fui procurar na internet meios de esquentá-lo novamente, quando tive contado com o mundo dos relacionamentos liberais. Falei da minha fantasia ou fetiche “cuckold” e como havíamos começado. Nossas brincadeiras, o exibicionismo dela, o rodeio, o policial, a praia, da Laura, etc. Ele me ouvia atentamente, agora entendendo que a questão era bem mais profunda.
Cheguei então a fatídica noite e expliquei sobre a aposta que ela havia me proposto e de como as coisas foram se desenrolando, do áudio com a ameaça do Bruno e da situação como a encontramos. Disse também que depois disso eu apaguei e só voltei a mim quando já estava fora do bar. Ele ouvia tudo atentamente. Deixou que eu colocasse tudo para fora:
- Por isso a culpa é minha. Seu eu não tivesse convencido ela a entrar nesse meio, nada disso teria acontecido. Estaríamos em casa felizes, sem traumas, com nossas filhas... - Falei, enxugando outra lágrimaou estariam divorciados. - Completou ele
O encarei surpreso com aquela hipótese:
- Como é que é? – Perguntei.
- Ora, Mark, a vida não é um livro que possua regras certas ou caminhos a serem seguidos para garantir a felicidade de uma relação. O ser humano é muito complexo. Dizer que seguir este ou aquele caminho, este ou aquele padrão, é forma de se obter a felicidade, é simplificar demais as variáveis que enfrentamos todos os dias. Pense bem, você mesmo disse que procurou na internet forma de esquentar um casamento que estava frio, sem vida, chato. Ora, se você, se vocês, não tivessem tomado as atitudes e vividos as experiências que viveram, que certeza você tem que ainda estariam casados?
Aquele ponto de vista me atingiu em cheio. Nunca tinha parado para pensar que nosso estilo de vida poderia ter salvado nosso casamento:
- Quer dizer que o estilo de vida que nós adotamos, esse relacionamento liberal, salvou nosso casamento? - Perguntei.
- Quero dizer que o estilo de vida que vocês adotaram aqueceu seu relacionamento e criou uma nova cumplicidade entre vocês reforçando o laço que já os unia. Vocês, com isso, aprenderam a ser mais parceiros, tanto que vinham praticando, evoluindo, inovando na forma e nos parceiros...
Eu não sabia o que dizer. Tomei mais um gole de meu café e continuei o encarando. Ele vendo que tinha fisgado minha atenção continuou:
- Não estou dizendo que esse modo de vida vá garantir que seu casamento irá durar para sempre. Mas a vida é assim: estamos sempre em movimento, acertando, errando, aprendendo, nos adaptando. Talvez amanhã vocês decidam não continuar juntos ou talvez vivam casados pelo resto de suas vidas, mas isso será decorrente do vínculo que os une e não da forma como enxergam e mantém seu relacionamento.
- Eu estava pensando em propor para ela pararmos com esse estilo de vida. Agora já não sei mais o que pensar...
- Essa é uma decisão que caberá a vocês tomarem como um casal. Mas agora precisamos ajudá-la a superar o trauma que ela certamente sofreu.
“Trauma!”, essa palavra doeu na minha alma:
- Tá. Vamos dizer que o senhor esteja certo e o relacionamento em si não tenha causado isso. Ainda assim eu fui culpado? Eu poderia ter brigado, ligado para a polícia, feito alguma coisa para evitar que ela chegasse a passar pelo que passou?
- Esse seu sentimento de impotência, eu entendo bem. Imagino o que se passa na sua alma. Levará um tempo para você superá-lo, mas ainda assim a culpa não é sua. - Tomou mais um gole de café: - Veja bem: vamos supor que você tivesse brigado realmente com os seguranças, tentando entrar à força no backstage para tentar encontrá-la, salvá-la. Por mais forte que você seja, com certeza lá não havia somente um segurança, estou certo?
- Sim. Havia vários.
- Então... Imagina se nessa briga, eles tivessem te apagado e te jogado em um lugar qualquer, e que você somente voltasse à consciência tempos depois, o que você acha que teria acontecido com sua esposa?
Levei uma mão à boca, surpreso com o ponto de vista:
- Eu prefiro nem imaginar. Ela me disse que se lembrava apenas do tal Bruno tê-la penetrado quando eu arrebentei a porta.
- Pois é. Ela foi violentada? Sim, é claro. Não interessa se fez sexo oral, vaginal, anal, se houve ou não penetração. Você é advogado e sabe bem o que estou falando. A partir do momento que ela foi dopada e lhe retiraram a capacidade plena de discernimento, de se manifestar contra ou a favor da relação sexual, o estupro já é presumido, não é isso mesmo, doutor?
Ele já sabia que eu era advogado e conhecia melhor que ele as implicações jurídicas da questão:
- Sim, mas ainda assim...
- Ainda assim você a salvou do pior. - Ele me interrompeu: - Tudo conspirou para que você chegasse naquela hora e aquela hora foi o máximo suficiente para você evitar que ele fosse estuprada de uma forma mais violenta ainda, se é que é possível mensurar o ato da violência em si. Mas pense: eram três ali com ela. Se ela te falou que ele havia sido o único a penetrá-la e tinha começado naquele momento, então os outros dois não chegaram a fazer isso, correto?
- É. Eu acho que não. Pelo menos foi o que ela me falou que lembrava.
- Então. Ela sofreu uma violência? Sim, claro. Horrível, injustificável, mas poderia ter sido pior...
Nessa hora me virei para uma parede tentando absorver todas aquelas informações, aquele ponto de vista e ainda assim não me parecia correto. Eu não conseguia aceitar que um “estuprinho” seria melhor que um “estuprão”:
- Mark... Mark! - Ele chamou minha atenção: - Tudo bem aí?
- Doutor, eu não concordo com isso. Não dá pra aceitar isso, nem mesmo que ter sofrido uma violência seja melhor que ter sofrido três.
- Ótimo! Isso prova que você possui um senso de moral equilibrado e justo, mas o que está cegando sua análise agora é o amor que te une a ela. Claro que nenhuma forma de violência é boa, mas nesse caso em específico pode servir de gatilho para eu utilizar com ela, visando minorar a importância do ato em si. Se irá surtirá efeito, só com o tempo e muita conversa, saberemos.
- Ainda assim, doutor, eu poderia ter ligado para a polícia... - Lamentei uma vez mais.
- Verdade. E será que eles teria chegado a tempo? Você é advogado, sabe como a polícia funciona. Infelizmente nem sempre eles agem no tempo certo. Você poderia ter ligado e, no ato de aguardá-los, ela poderia ter sido violentada uma, duas, três, sabe-se lá quantas vezes. Ela seria salva? Seria. Mas a que custo.
Minhas lágrimas haviam secado. A visão daquele homem de alguma forma me deu um rumo inimaginado, mas ainda me sentia culpado:
- Doutor, vou ser bem sincero, não sei se concordo com o que o senhor está dizendo, ainda me dói imaginar tudo o que ela passou...
- Sim. Eu nunca esperei que você saísse daqui curado hoje. Sua ferida é recente, está aberta e ainda sangra, e vai sangrar muito tempo ainda. Mas eu vou te ajudar a superar essa dor e essa culpa. O importante é que você comece a repensar tudo sob uma nova ótica, esta que estou te apresentando. Com o tempo, muito café e conversa, você ficará bem.
Eu não estava convencido, mas precisava focar no que realmente interessava:
- Tá. Tudo bem. Eu me viro, mas e ela? Como posso ajudar a Nanda?
- Como ela está hoje? Como ela se apresenta para você?
- Está... Está quieta, pensativa, pouco sorri, conversa o essencial... A impressão que tenho é que ela está se fazendo de forte. Eu já estava estranhando, mas tive certeza de que algo não está certo quando minha filha mais velha veio me perguntar se nós havíamos brigado e quando perguntei do porquê da pergunta, ela me contou que ela andava muito quieta, não brigava mais com ela e passava muito tempo trancada no banheiro.
- Vocês tem filha?
- Duas meninas.
- Isso é bom. Além do seu amor, o amor pela prole mantém ela fixada na realidade. - Disse e perguntou: - Ela estaria disposta a vir conversar comigo?
- Eu não cheguei a perguntar isso para ela, doutor.
- Você deu um primeiro passo muito importante que foi procurar um profissional. Por mais que não tenha feito isso para você, a solução envolverá resolver as culpas e traumas de ambos porque são decorrentes do mesmo fato, talvez não na mesma intensidade e da mesma forma. Ainda é muito cedo e eu ainda preciso conversar com ela. - Parou, pensou um pouco e continuou: - Faça assim: num momento tranquilo, só de vocês, não de intimidade, apenas quando estiverem sós, diga que procurou um psicólogo por estar se sentindo culpado com tudo, que no fundo é verdade, pode até mesmo contar sobre nossa conversa, e diga que você se sentiu melhor. Pergunte se ela não gostaria de se abrir também.
- Eu... Eu vou tentar.
- Ótimo. - Pegou um cartão de visita sobre sua mesa e anotou um número: - Este é meu celular. Se houver algum imprevisto, me ligue, à qualquer hora.
- Doutor, e quanto aos seus honorários?
- Filho, pelo amor de Deus, não se preocupe com nada. Dinheiro não é problema. Sua estória me doeu também e eu quero ajuda-los. Depois veremos isso.
Levantei-me da poltrona, entregando-lhe a xícara vazia e me dirigi a porta. Ele antes de abri-la para mim perguntou:
- Você está pensando em se vingar, não está?
- Não... - Disse sem qualquer convicção.
- Está. Está, sim. - Colocou uma mão em meu ombro: - Por favor, me dê algum tempo para ajudá-lo a entender e superar essa dor, essa culpa. E se isso não for suficiente para demovê-lo, pense que ela precisará muito de sua ajuda, de seu apoio nessa recuperação. E vocês ainda tem suas filhas também...
Com um sorriso amarelo, despedi-me dizendo para ele ficar tranquilo. Pelo olhar dele, não ficou. Meu amigo recebeu-me perguntando se eu estava melhor e confirmei. E estava mesmo: aquelas palavras haviam aliviado um pouco minha dor. Mas agora, meu foco seria a Nanda. Ela precisava de apoio. Teria que deixar meu acerto com o Bruno e seus amigos para depois.