Eu era viciado em trabalho, até que uma viagem mudou completamente a minha vida. Eu já trabalhava em um escritório de consultoria fiscal, um dos maiores do Brasil e da América Latina. Cresci rápido na empresa, em 7 anos já tinha alcançado o cargo de Consultor Pleno, ganhava bastante para o meu padrão de vida, mas tudo isso teve um preço. Nesses 7 anos se eu tirei 15 dias de férias foi muito. Em parte, pela pressão no trabalho que me era exercida, em parte pela minha própria ganância em querer crescer rápido na carreira. Eu me dedicava integralmente ao meu trabalho, trabalhava de 10 a 16 horas por dia, incluindo finais de semana. Até que tudo veio abaixo.
Era um dia normal no trabalho, como qualquer outro, estressando como qualquer outro. Eu fui até a copa pegar uma xícara de café, a terceira do dia, quando tive um ataque nervoso. Derrubei a xícara de café no chão e meu corpo começou a tremer involuntariamente. Eu não conseguia comandar minhas ações para me abaixar e pegar os cacos do chão, não conseguia fazer nada. Renan, meu colega de trabalho que estava também na copa, foi quem me socorreu e chamou ajuda. Fomos direto para o hospital, onde eu recebi o meu diagnóstico. O que eu tive, na verdade, foi um burnout, um distúrbio psíquico causado pela exaustão emocional de um trabalho desgastante. O meu caso foi amplamente comentado na empresa. Com medo de outros funcionários terem crises similares e isso poder aumentar a quantidade de processos trabalhistas, a empresa revisou da noite para o dia as suas políticas de RH. Com isso, eu recebi a notícia que iria tirar férias compulsórias, porém, como eu já havia acumulado mais de 800 horas extras apenas no ano passado, essas férias se prolongaram por 5 meses.
5 meses! Isso mesmo, fui mandado para casa para repousar durante 5 meses. Para alguém que trabalhava sem parar desde os 18 anos, isso parecia uma eternidade. Na primeira semana, até que foi um pouco relaxante não fazer nada. Porém, já na segunda semana o tédio me consumiu por completo. Eu percebi, então, que eu não tinha vida social nenhuma. A última vez que havia transado com alguém tinha mais de 1 ano, e eu estava ocupado demais para sentir falta disso em minha vida. Todos os meus amigos da faculdade haviam se afastado de mim, eu já não os via desde a minha formatura.
Um dia, na segunda semana, recebi uma ligação da minha mãe. Falamos sobre tudo o que tinha acontecido, e como agora eu estava de molho por tanto tempo em casa. Minha mãe disse que eu não podia ficar assim, enclausurado tanto tempo, vendo a vida passar, eu precisava fazer algo, como uma viagem. Uma viagem, essa parecia ser uma boa ideia. Mas não havia nenhum lugar que eu tivesse vontade de conhecer. Ao longo desses 5 anos eu viajei bastante, dentro e fora do país. Porém, tudo a trabalho. Eu não sentia vontade de ir para mais alguma metrópole global, ver tanta gente caminhando entre tantos arranha-céus. Eu precisava de um local de tranquilidade e paz, e eu só conseguia pensar em um lugar: Sana.
Sana, também conhecido como Arraial do Sana, era uma região de Macaé, cortada pelo rio Sana que dá nome ao local e muito conhecido pela sua beleza natural e cachoeiras. Eu adorava ir para lá com o meu pai nas férias, mas havia mais de 10 anos que eu não ia lá. Eu não conseguia pensar em nenhum outro lugar que pudesse me trazer paz de espírito como Sana, então foi para lá que decidi ir.
No dia seguinte, já havia feito minhas malas, coloquei tudo no carro e parti em uma viagem de 165 quilômetros do Rio para lá. A viagem foi bastante tranquila, sem muitos percalços. Chegando lá, tratei de procurar uma pousada. Era início da alta temporada, no começo de dezembro, quando as pessoas vinham aproveitar o verão. A cidade não estava tão cheia, mas sabia que iria ficar. Dirigi pelas ruas da cidade até que achei uma pousada que me parecia boa. Ela tinha uma arquitetura da época imperial, parecia tão antiga quanto a própria cidade, porém muito bem cuidada, de uma forma que parecia tão nova quanto os grandes casarões que vi na chegada à cidade.
Estacionei o meu carro e fui até a recepção, onde a avistei pela primeira vez. Uma jovem garota, de cabelos castanhos avermelhados, com uma roupa bem singela. Uma camiseta vermelha, deixando levemente à mostra a alça de seu sutiã branco, sem ser nada vulgar, e um short jeans desfiado nas pontas. Ela estava debruçada sobre o balcão, mordendo um lápis entre os seus lábios finos, porém atraentes, enquanto tentava descobrir as respostas de uma palavras-cruzadas no jornal. De cabeça baixa, ela não notou a minha presença até eu me aproximar do balcão, quando ela levantou a cabeça para me olhar, e pela primeira vez pude ver aqueles olhos amendoados castanhos, grandes e de uma atração magnética, era impossível não olhar para eles quando ela te olhava. Ao mesmo tempo, seu olhar passava um ar de ingenuidade que eu nunca havia visto antes.
Ela me cumprimentou e perguntou o que eu desejava. Quando disse que queria um quarto, ela se virou e gritou, chamando o seu pai. De trás de uma porta saiu Seu Guto, um homem de meia idade com uma presença invejável. Tinha braços parrudos como de um marinheiro, e uma barriga avantajada como de um também, além de um bigode grosso que cobria toda a sua boca, embaixo de um nariz grande e redondo. Tinha sobrancelhas quase tão grossas quanto o seu bigode e o cabelo preto já assumindo tons grisalhos. Ele veio me atender com a maior educação e simpatia que um homem de sua humildade poderia oferecer. Quando ele perguntou quanto tempo eu pretendia ficar, ele tomou um susto com a resposta.
- 3 meses!? Você deve ser bem maluco de ficar aqui por 3 meses. Com certeza vai ser o hóspede mais longo que já tivemos.
Seu Guto falava gesticulando com as mãos, como um bom Italiano que logo constatei que era.
- Dinheiro não é problema, se é o que está pensando. Posso deixar adiantado o valor da hospedagem, se quiser. Eu só preciso desse tempo aqui mesmo.
Enquanto conversávamos, a garota nos olhava, mais para mim que para o seu pai, enquanto desviava sua atenção de volta às palavras cruzadas. Seu pai então anotou as minhas informações em um caderno de hóspedes e entrou novamente na porta atrás da recepção. A garota logo então puxou assunto comigo:
- Presidente americano com 9 letras, começando com R. Sabe dizer? - Ela perguntou a mim, enquanto mastigava o lápis, que já pude perceber que já estava todo carcomido.
- Roosevelt, talvez.
Ela começou a escrever enquanto pronunciava o nome, porém acabou escrevendo errado.
- Não, não é Russevelt, é Roosevelt. R-O-O-S-E-V-E-L-T.
Ela então corrigiu escrevendo por cima, e logo se apresentou. Seu nome era Lúcia, filha de Seu Guto. Trabalhava na pousada junto com o pai e a meu ver não havia tanto trabalho assim, principalmente antes da alta temporada. Seu Guto voltou com a chave do meu quarto e pediu para Lúcia me acompanhar. Subimos a escada até o segundo andar, e então paramos em frente a um quarto no final do corredor.
- Você deu sorte. Veio antes da alta temporada, quando está tudo vazio e vai ficar com o melhor quarto até o fim do Carnaval. - Disse Lúcia.
- Por que esse é o melhor quarto?
- Porque é ao lado do meu.
Lúcia deu um leve sorriso e entregou as chaves na minha mão e então desceu novamente as escadas. O quarto em si não era nada luxuoso, porém bastante aconchegante, com uma cama de casal, um armário e uma cômoda vazia e uma televisão de tubo em cima da cômoda, além do banheiro onde havia uma banheira que parecia quase tão antiga quanto a própria casa, e quase tão bem cuidada quanto.
Ao longo dos dias eu fui me situando na pousada. Havia só outros 3 funcionários cuidando além de Lúcia e Seu Guto. Normalmente Lúcia ficava na recepção, lendo, fazendo palavras-cruzadas ou qualquer outra coisa para se distrair. Mas também ela costumava arrumar as mesas para o café da manhã, e às vezes cheguei a vê-la ajudando a camareira também. Com o passar dos dias, os hóspedes também foram chegando. Muitas famílias e crianças começaram a frequentar os quartos, mas saíam cedo para aproveitar as cachoeiras e a cidade. Durante o dia, a pousada parecia tão deserta quanto o dia em que cheguei.
Um dia, resolvi sair. Chegando no meu carro, me deparo com Lúcia, caminhando para fora da pousada.
- Pra onde você vai? - Ela pergunta.
- Até o Centro.
- Poderia me dar uma carona?
- Sem problemas, entra no carro.
Fomos dirigindo o trajeto todo quase em silêncio, chegando próximo ao Centro, Lúcia finalmente diz alguma coisa:
- Então, pretende ficar trancado no seu quarto durante 4 meses?
- Não. Eu ainda tenho muito tempo, dá pra curtir a cidade com calma.
- Posso te perguntar uma coisa? Por que decidiu vir pra cá e ficar tanto tempo assim?
- Quanto ao tempo, eu tirei umas férias no trabalho e precisava de um lugar para relaxar. Então decidi vir aqui porque... Porque eu costumava vir pra cá com o meu pai quando era criança. Mas fazia muito tempo que não vinha.
- E por que faz muito tempo?
- O meu pai morreu, e desde então eu não voltei mais aqui.
- Ah, eu sinto muito.
- Não, tudo bem. Já faz bastante tempo, eu tinha só 10 anos. Mas acho que já superei. Eu só queria vir aqui pois é um lugar que me traz uma certa paz e tranquilidade.
- Eu te entendo, também perdi a minha mãe cedo também. Bem, eu fico ali.
Lúcia apontou para uma farmácia na praça. Estacionei e ela saiu. Do lado de fora ela se debruçou do lado do vidro e falou:
- Eu vou ser rápida. Se quiser me esperar, eu posso te fazer companhia, onde quer que você vá.
- Não deveria voltar para ajudar o seu pai?
- Deveria, mas e daí? Você vai me dedurar?
Dei uma leve risada com seu comentário e disse que a esperaria. De fato, a companhia de Lúcia era bastante agradável. Ela entrou na farmácia e eu acendi um cigarro para passar o tempo. Um velho hábito que havia adquirido para tentar relaxar na minha estressante rotina. Lúcia voltou em menos de dois segundos, carregando uma sacola com um monte de remédios.
- E então, aonde você vai? - Disse Lúcia, fechando a porta do carro.
- Eu não sei. Onde você gostaria de ir se quisesse passar um tempo sozinha?
- Eu gosto de ir até a feira. Por que não vamos lá?
Aceitei a sugestão e logo parti com o carro. Durante o trajeto, continuei a fumar o meu cigarro com a janela aberta.
- Você não deveria fumar. Isso vai acabar te matando. - Disse Lúcia.
- Bem, eu já quase morri mês passado. Então eu tô de boas com essa ideia. E quanto a você, comprou tantos remédios que parece que quem está morrendo é você.
Lúcia deu um leve sorriso de canto de boca e disse:
- São os remédios da pressão do papai. Ele é um homem bastante estressado.
- Eu percebo. Mas por que vir até o centro só pra comprar remédio pra pressão?
- Bem, não tem só remédio pra pressão aqui. Tem também os meus... - Lúcia parou um segundo para pensar no que ia dizer. - ...os meus hormônios.
- Hormônios é? Tá malhando?
Lúcia deu uma risada, como se não acreditasse no que eu havia dito.
- Você pode ser bem inteligente, mas não é muito esperto.
- O que quer dizer com isso?
- Que não consegue entender meias palavras.
Lúcia então pegou a sacola e me mostrou uma das caixas que ela havia comprado.
- Isso aqui é estrogênio.
- Pera. - Demorei alguns instantes para finalmente entender. - Então quer dizer que você é...
- Sim, eu sou. - Disse Lúcia, me cortando.
- É sério? Nossa, eu nunca ia adivinhar.
- Tudo bem, as pessoas nunca sabem mesmo. É até melhor, assim elas não me enchem tanto. Bem, chegamos, pode estacionar em qualquer lugar.
Caminhamos então pela feira, que parecia já bastante movimentada para meados de dezembro. Várias lojas de artesanatos que Lúcia fazia questão de olhar cada um, conversar com os donos, a maioria ela já conhecia. Enquanto a acompanhava, comecei a reparar no seu andar, no jeito como ela se postava. Seu jeito exalava mais feminilidade que muitas garotas com quem já convivi, e isso me levantou uma sincera curiosidade sobre ela.
Na volta à pousada, Lúcia se despediu de mim, agradeceu a ótima tarde e foi para o seu quarto. Eu fui para o meu e me deitei na cama.
Na semana seguinte, o tédio me consumia novamente. Eu simplesmente não conseguia ficar sem fazer nada. Por mais que eu saísse para ver a cidade, tudo parecia tão morto quanto eu. Até que tive uma ideia. Fui até a recepção encontrar com o Seu Guto, e pedi que ele me desse um emprego temporário.
- Ficou maluco, meu jovem? Tá achando que vai pagar a sua estadia com trabalho aqui?
- Não é sobre dinheiro, Seu Guto, por mim, pode me contratar até de graça. Eu só não aguento ficar mais parado em casa. Posso ajudar em qualquer coisa aqui na pousada.
- Não, obrigado garoto. Já tenho que lidar com muitos funcionários, e ainda tem a minha... A minha filha. - Notei pela primeira vez que Seu Guto falava com um certo tom de desprezo sobre Lúcia. - Não tem nada que você possa me ajudar.
Lúcia, que só então percebi que ouvia a nossa conversa, se aproximou e falou.
- Espera, papai, talvez ele possa nos ajudar. Você disse que era contador, não é mesmo?
- Sim, eu sou.
- Então, papai, talvez ele possa nos ajudar com aquela questão do empréstimo.
- Que empréstimo?
- Nada não, jovem, não se preocupa não. E Lúcia, eu já falei pra você não se meter nesses assuntos!
Lúcia ignorou completamente o esporro do pai e continuou a falar comigo.
- Meu pai fez um empréstimo no banco para poder expandir a pensão. Mas bem, a minha mãe adoeceu logo em seguida e todo o dinheiro foi para pagar o seu tratamento. Agora a gente está com uma dívida que não conseguimos pagar, acumulando juros em cima de juros.
- Minha filha, já falei para não se meter nesses assuntos! Já chega, vai logo pro seu quarto! - Disse Seu Guto, aumentando o tom de voz.
- Seu Guto - falei com ele, tentando te acalmar. - Se isso for verdade, eu posso te ajudar com isso. Esse tipo de coisa é o que eu mais vi acontecer no meu trabalho. Nós podemos ver algo para ser feito.
Tentei convencê-lo e acalmá-lo da melhor maneira possível, junto de Lúcia, no final, apesar de sua teimosia natural, ele acabou aceitando ver as finanças comigo. Passamos então a tarde inteira avaliando todas as finanças da pousada. Receitas, as despesas fixas e variáveis, os impostos. Tudo estava uma bagunça, como normalmente sempre é em pequenas empresas, mas conseguimos, depois de muito esforço arrumar tudo. Seu Guto, apesar de muito educado, era um homem bastante ignorante em certos assuntos, e desconhecia bastante sobre como administrar as finanças da pousada. Mais tarde, Lúcia me contou que quem cuidava dessa parte era sua mãe, mas depois que ela se foi, seu pai não sabia lidar muito bem com números.
No fim, decidimos que iríamos tentar negociar a dívida no banco, com a minha ajuda. Caso conseguíssemos, poderíamos fazer um novo parcelamento, mais em conta, que seria possível pagar com a receita que iríamos obter durante a alta temporada. No dia seguinte, fomos então ao banco. O empréstimo de Seu Guto foi em torno dos 300 mil reais, porém, com os juros amortizados, a dívida já chegava na casa dos 500 mil. Entramos então no banco e fomos falar com o gerente. Após uma longa conversa onde eu apresentei a ele minha proposta de pagamento da dívida, conseguimos reduzi-la a 250 mil reais. Bem acima da minha oferta inicial de 100 mil, porém ainda era pagável.
Ao longo das semanas de dezembro, a pousada começou a encher, já na semana do Natal, todos os quartos já estavam reservados. Os negócios iam de vento em popa e Seu Guto e Lúcia passavam o dia inteiro ocupados cuidando das estalagens. Eu passei a cuidar das finanças, controlando os gastos. Financeiramente falando, a pousada ia muito bem. Durante a noite, Lúcia se sentava comigo para estudar um pouco sobre as finanças básicas. Ela queria aprender para o dia em que eu fosse embora, também nos aproximamos bastante nesse período, até que comecei a sentir algo estranho. Perto dela, era como se um panapaná de borboletas embrulhasse o meu estômago. Eu me sentia confuso. Eu a achava uma garota muito atraente, meiga e simpática. Mas ao mesmo tempo, ainda me sentia inseguro quanto a esse sentimento. Em certa parte, por um preconceito que sequer sabia que tinha, até ter contato com alguém como ela pela primeira vez.
Na noite de Natal, Seu Guto e Lúcia me convidaram para a ceia. Sentamos nós três no refeitório da pousada, onde comemos uma grande macarronada ao invés do tradicional peru. O preto estava delicioso, Seu Guto disse que o fez à moda de Florença, sua cidade natal. Seu Guto parecia mais feliz e animado do que de costume, talvez feliz por conta da questão do empréstimo, ou simplesmente por esta ser uma data tão especial. Fato é que a felicidade de Seu Guto permitiu a ele beber duas taças de vinho tinto sozinho, e apagar o ébrio de sono antes mesmo da meia-noite. Ajudei Lúcia a deixar o seu pai em seu quarto adormecido como um bebê de 150 quilos. Depois disso, Lúcia disse que queria me mostrar uma coisa.
Ela me levou até um corredor onde havia a entrada do sótão por um alçapão no teto. Caminhamos na escuridão até ela encontrar uma porta que deu direto no telhado da pensão. Com cuidado, nos sentamos do lado de fora e Lúcia disse que ali poderíamos apreciar a vista, e ela era realmente fantástica. Do alto da pensão, era possível ver quase toda a região, desde os grandes morros verdes, que agora pareciam um mar escuro de folhas ao vento, como também as baixas casas, que traziam alguma luz, ainda que pouca àquela hora da noite. Lúcia se deitou no telhado e eu também, apreciamos a vista da noite iluminada, tão bela quanto um quadro de Van Gogh.
- Você se arrepende de algo, Marcelo? – Perguntou Lúcia, de repente.
- Eu não tenho certeza. Por quê?
- Todos nós temos arrependimentos. Dizer que não temos é enganar a nós mesmos. Afinal, que chato seria a vida sem arrependimentos, não é mesmo?
- Você se arrepende de algo?
- Sim. Me arrependo de não ter me assumido quando minha mãe ainda estava viva. Ela sempre quis uma filha, sabe? Dizia que teria algum dia e seu nome seria Maria Lúcia, como o da música, sabe? Por isso eu adotei esse nome depois da transição, eu só não gosto de usar o Maria, porque eu acho um nome muito imaculado, sabe? Maria é o nome da mãe de Deus. Eu não sou tão pura quanto ela.
- Você é mais pura do que pensa. Deveria ver o que as pessoas são capazes de fazer por poder onde eu trabalho. Sobre ter arrependimentos, acho que o meu maior arrependimento foi ter aceitado a primeira proposta de emprego que me ofereceram.
Lúcia virou o rosto para mim, e eu virei para o dela. Seus grandes olhos sugavam a minha atenção novamente. Em meu estômago eu sentia novamente o bater das borboletas e com um simples olhar meu coração já disparava. Lúcia sorriu pra mim, seu sorriso era a coisa mais linda que eu já havia visto, mais belo que as cachoeiras da cidade.
- Você fica bem sob a luz do luar, sabia? Combina com os seus olhos. – Disse Lúcia. – Sabe, toda vez que eu olho para a lua cheia assim, eu lembro de um poema de Alphonsus Guimarães, chamado Ismália. Você já leu?
- Não. Por que você não o recita para mim?
- Bem, ele começa assim:
Quando Ismália enlouqueceu
Pôs-se na torre a sonhar
Viu uma lua no céu
Viu outra lua no mar
No sonho em que se perdeu
Banhou-se toda em luar
Queria subir ao céu
Queria descer ao mar
E num desvario seu
Na torre pôs-se a cantar
Estava perto do céu
Estava longe do mar
E como um anjo pendeu
As asas para voar
Queria a lua do céu
Queria a lua do mar
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par
Sua alma subiu ao céu
Seu corpo desceu ao mar
Enquanto Lúcia recitava, meu coração alçava voo junto ao poema. Toda aquela composição fazia esse momento parecer uma pintura romancista. Fui me aproximando cada vez mais dela enquanto os versos iam terminando, enquanto meu coração disparava mais e mais. Não havia mais razão nas minhas ações, apenas puramente o desejo. Quando Lúcia recitou o último verso, nossos narizes já se encostavam, com os nossos lábios prestes a se tocar. Só deu tempo de colocar a mão em seu rosto e então nos beijamos pela primeira vez. Nossas línguas dançavam em sincronia. Nossos lábios pareciam se encaixar com perfeição, como se tivessem sido moldados um para o outro. Um beijo doce e caloroso, como a quente noite que fazia naquele dia 24. Nos beijamos até perder a noção do tempo. E quando terminamos, Lúcia falou bem baixinho, ainda recuperando o fôlego.
- Isso foi muito bom. Sinceramente eu não achei que você me beijaria.
- Para falar a verdade, eu também não achava por um bom tempo.
- Eu entendo. É difícil para muitos aceitar. Mas é mais difícil pra mim ter que lidar. Por isso eu não conto pra ninguém.
- E por que você contou pra mim? Naquele dia na farmácia.
- Sinceramente, eu não sei. Apenas me senti mal de me esconder de você. Ter que esconder quem eu sou de verdade foi o que eu fiz durante 17 anos. E quando eu finalmente deixo de esconder, ainda preciso esconder quem eu sou de verdade. Que ironia filha da puta, não é mesmo?
Lúcia olhou para mim, seus olhos estavam marejados, ainda que houvesse um sorriso em seu rosto. Até que uma única lágrima escorreu do seu olho, no qual era limpou de imediato.
- Desculpa. Eu fico muito emotiva quando falo sobre isso.
- Tá tudo bem.
- Bem, está ficando tarde. É melhor eu ir dormir. Amanhã a gente vai preparar o café da manhã especial de Natal para os hóspedes. Papai vai fazer a receita especial de rabanada da família. Na verdade, a receita era da minha mãe, mas meu pai fala que era da parte italiana da família dele para os hóspedes acharem que a receita é melhor.
Lúcia deu uma risada com o próprio comentário, como eu também ri junto. Então, nos levantamos e descemos o sótão até os nossos quartos. Lúcia se despediu somente de longe, já abrindo a porta. Eu entrei no meu quarto e tomei um longo banho quente, ao qual eu refleti sobre tudo o que passou essa noite, essa semana, esse mês, esse ano. Foi uma noite bem difícil de dormir.
(Continua)